Muito Mais que Verde e Amarelo

By euamoescrever

846 44 28

O concurso de contos Muito Mais que Verde e Amarelo tem como objetivo valorizar a cultura maravilhosa do noss... More

Edital do Concurso
Votações Abertas!
Conto 01: Frio - Neto Andrade
Conto 02: Um Novo Brasil - Oicreal
Conto 04: Irmãos de Corrida - Mota
Conto 05: Ore por Mim - Mariana Ulian

Conto 03: Cormorant, Camburão - Neto Andrade

86 2 1
By euamoescrever

Título do conto: Cormorant, Camburão.

Nome do autor ou pseudônimo: Neto Andrade.

Cidade e estado a qual a história é ambientada: Paranaguá, Paraná.

Censura do conto e o gênero literário: "14" segundo a classificação da TV: morteintencional; preconceito; prostituição; insinuação de consumo de drogasilícitas. Conto histórico baseado em fatos reais, parteatual ficcionalsumo.

Pequeno resumo do conto ou sinopse: Descrição de Paranaguá, sua geografia e algunspontos turísticos através de um de seus momentos históricos mais dramáticos edo cotidiano atual.

###

Hino de Paranaguá

Aos nossos mares vieram dantes

Antigas naus, velas possantes

30 de junho de 2016

A Casa de Choppalha é absurdamente democrática.

Seu grande letreiro é ladeado pela silhueta de dois caubóis, a cumprimentar possíveis peões clientes. Do outro lado do muro, cinco ou seis mesas de concreto perfuradas por uma cobertura de palha, qual guarda-chuva, decoradas com temas praianos e bandeirinhas de cerveja, o que se espera de uma cidade litorânea.

A Casa de Choppalha é sonoramente democrática.

Depois das cabaninhas, um espaço de três metros quadrados cercado por canhões de luz pretende-se pista de dança. No alto-falante, um pagode popular com graves tão distorcidos que mal dá para identificar. Metal? Funk? Pancadão?

A Casa de Choppalha é familiarmente democrática.

Passe pela pista e você encontra o boteco de sempre, paredes bicolores, luz muito baixa na esperança de esconder o chão manchado e os móveis e mesa de sinuca gastos. Atrás do balcão, alguém também gasto pela vida observa o vai e vem de clientes e de profissionais, mulheres de muita maquiagem e largos sorrisos, encobrindo os corpos e sonhos também gastos. E que durante a noite, sofrerão mais com o atrito, os apertos, o vai-e-vem mecânico que existe desde que o mundo é mundo.

A Casa de Choppalha é convenientemente democrática.

A esquerda, o hotel mais luxuoso da cidade, onde convenções significam muitos homens de negócios, pais de família, entrarão no bar em busca de algo que nem eles sabem o que. À direita, a ponte estreita liga a ilha com seus moradores humildes ao continente. Liga trabalhadores às mesas com esquecimento líquido. De todos os lados, fluem estudantes aprendendo sobre a vida na velocidade de seus Redbull com vodca. Senhores dos poderes executivo, legislativo, judiciário, de fato e oculto afrouxam as gravatas, pedem umas loiras. E também cerveja.

A Casa de Choppalha é democrática. E basta.

Todos podem entrar e comprar dois dos três itens essenciais para suportar a vida urbana. Só o Rock'n'roll está em falta. Alguém se sobrepõe ao barulho.

— Ih, é o Bagrinho.

29 de junho 1850

Hoje, Tobias percebe que é verdade o que ouvira ontem.

Ontem, Domingo, permitiram que Tobias acordasse um pouco mais tarde. Ainda escuro, colocou o pé descalço na estrada de terra, poeira cobrindo as pegadas frescas. Ele já em sente os espinhos e pedras no caminho, pele curtida de sol e trabalho, trabalho. A paisagem muda aos poucos, o sol aparece devagar, delineando as poucas árvores e casas do caminho. Aqui e ali, os ruídos monótonos de quero-queros e sabiás-laranjeiras. Mais uma hora, os pés deixam a terra batida, dura, e atravessam o calçamento de pedra irregular, que o dia já vai aquecendo. Durante o caminho, passam por ele algumas charretes e cavalos, carregando as sinhás e os sinhôs para um destino similar. Assim como a marcha dele e de seus companheiros o fez passar por palanquins. Muitas vezes ele carregou a sinhá e a bebê no palanquim. Davam-lhe roupas melhores para não fazer feio frente aos outros senhores, quando estava muito quente até um chapéu. E sinhá não pesava tanto assim. Agora, mais crescida, sinhá e sinhô acham que a menina pode viajar com segurança na charrete com eles. O palanquim ficou encostado na fazenda, esperando o dia que a velhice dos senhores irá fazê-lo ser usado de novo. Olhando para a direita, ele vê, lá embaixo, o rio onde criança era impedido de nadar. Quase sempre.

À sua frente, a menos de vinte passos, seu destino. As charretes e palanquins viajariam uns cem metros e tanto a mais, parando na frente da imponente Igreja de Nossa Senhora do Rosário, com sua escadaria a elevando da terra dos simples mortais e sua torre alta, pontuda, perfurando os céus e garantindo a comunicação direta com Deus. Não contente com sua altura, Nossa Senhora do Rosário parecia sempre querer crescer para trás. Para os lados. Tobias perdeu a conta de quantas reformas viu naquele lugar. Ao contrário de Deus, os homens parecem nunca estar satisfeitos com suas obras. Com algumas delas. Desviou os olhos para seu destino.

A Igreja de São Benedito dos Pretos. A fachada muito simples, a torre baixinha, humilde. Mas era a igreja deles. Era a igreja dele. Viu pelo canto dos olhos os condutores e carregadores se apressarem em cobrir o terreno que separa a igreja dos senhores da deles. Entrou.

Os bancos eram duros, de madeira rústica, com encostos que deixavam a coluna reta. A nave, pequena, com poucas janelas, deixava o clima ainda mais quente, abafado. Ainda assim, era mais conforto do que ele experimentava durante a semana. Estava ali para elevar a alma, mas não fazia mal em usufruir um pouco de amenidades para o corpo. O padre entoava frases em latim, ele se distraia vendo o caminho das gotas de suor claras sobre os pescoços escuros na sua frente, deslizando até serem absorvidas pelas grossas camisas de algodão. Quando a cantilena voltava ao português, era hora de prestar atenção.

Tobias nunca soube se o padre deles encurtava misericordiamente a missa, ou se Deus tinha algo a dizer apenas para os homens livres. Mas o fato é que havia sempre essa meia hora, quarenta minutos de absoluta liberdade entre os finais dos dois compromissos divinos. E os negros desciam a encosta íngreme para a beira do rio. As crianças se jogavam na água. Os adultos se reuniam em volta da fontinha, círculo de pedra de uns bons seis, sete metros de diâmetro, absurdamente ornada para sua função simples de dar de beber a homens, animais e navios. Ali, se refrescavam e conversavam.

"Os sinhôs estão agitados. Parece que estão afundando navios."

"Os sinhôs estão afundando os próprios navios?" Como a maioria ali, fazia parte da rotina de Tobias carregar e descarregar navios, caixas, barris e sacos. A perspectiva de falta de trabalho o animava e o fazia temer ser enviado para trabalho ainda pior.

"Não, Tobias, outros estão."

"Ouvi dizer que querem impedir a vinda de mais negros pra cá."

"Então afundam navios?"

"Afundam."

"Com gente dentro?"

"Afundam na ida, pelo que entendi."

"De qualquer forma, tem gente dentro, um navio não se move sozinho. Maldade."

"Constança, maldade por maldade, muito preto ia preferir o fundo do mar."

"Otacílio, acabamos de sair da missa. Desejar mal é pecado."

Hoje, Tobias via os efeitos da agitação que os outros escravos falaram ontem. É muito pior que ele esperava.

Bagrinho ouviu seu nome e se aproximou. Eram chegados, conhecidos. Não poderia dizer que eram amigos, bandido com amigo tem vida mais complicada e curta.

— Fala, mané.

— Aí, tamos com um esquema, quero ver se você tá dentro.

— Fala aí.

— Amanhã tem passeata contra a Dilma, vai tar todo mundo no centro e na Avenida.

Paranaguá cresceu, se desenvolveu, mas a avenida Coronel José Lobo continua sendo apenas "A Avenida", uma longa faixa de asfalto ligando o Iate Clube e a Capitania dos Portos de um lado, a armazéns do porto, do outro. O estado da pista e das calçadas varia dramaticamente conforme você se aproxima dos armazéns. A pedra portuguesa artisticamente colocada na frente dos três ou quatro pequenos prédios elegantes começa a ser tomada pelo mato e desaparece por completo na boca do porto, onde também grandes buracos aparecem no asfalto.

A avenida liga o Rio Itiberê à baía, mas divide muito mais.

— Vai rolar uns serviços bons.

— Que tão pensando? – Inquiriu Bagrinho.

Trocaram sinais para ir a um local melhor para conversar. Saíram do bar, andaram poucos metros, atravessaram a rua e se aboletaram na pracinha que circunda a antiga fontinha. Que secou, e perdeu sua função. Em frente, aterro, perdeu sua vista para o rio. Ao redor grades a isolaram do público. Só lhe restou a função de monumento isolado, em uma pequena praça, seus contornos frequentemente pintados para esconder as manchas da poluição de ônibus que diuturnamente passam por ela.

— Aí, nós dois descolamos uma Kombi, vamos nas casas bacanas perto do aeroporto. Dá para fazer a limpa em duas, três, na maciota.

— Não rola, Zé do Poço.

— Ê, vai azarar outro.

— Não rola. O troço é pela manhã, todo mundo vai ver.

— Vai dar pra trás, Bagrinho.

— Não dou pra trás. Sou de tacar fogo no mar pra comer peixe frito. Mas é furada.

— Vambora, Zé do Poço, que esse aí é arregão.

— Bora, Bagrinho, é grana fácil. Tu fica na Kombi.

— Querendo confusão não, véi.

— É? E vai viver de quê?

Bagrinho suspirou. Pouco estudo, opções limitadas. Podia ficar ao redor dos estivadores do porto. Contratados, bem treinados, pagamento melhor ainda, com seguro de tudo que é lado que costumam pagar uns trocados para gente como Bagrinho carregar e descarregar navios no lugar deles. Mas o serviço cada vez mais mecanizado, e o grupo cada vez mais fechado acabam o expurgando. Podia ficar na BR277, a rodovia que liga o porto ao resto do Brasil, e tentar pegar uns serviços de Chapa, ajudar caminhoneiros a arrumar carga, limpar carreta. Mas mesmo os Chapas estão se agrupando, organizando, mafializando. Loja? O comércio, antes dominado por turcos, "brimos", hoje se encontra na mão de chineses e sabe-se lá mais o quê. De gente da cor de Bagrinho, só querem as meninas. E mesmo essas estão em risco, com o surgimento de shoppings que preferem as mais branquinhas, dos dois lados do balcão. Fábricas, não há. Construções, poucas.

— Tem os crente.

— Na boa, Bagre. Além da mesma cor, tu é feio igual urubu. Ninguém vai te pegar pra Obreiro.

— Vamo procurar outro, Zé.

— Péra que além de ser meu parça, o Bagrinho é o cara no volante. Então?

— Quer saber? Eu dirijo a Kombi.

Tobias e outros escravos tiveram uma segunda diferente. Nada de trabalho na roça, casa ou porto. Os senhores se armaram com Rifles, pistolas de cano duplo, alguns até brandiam modernos revólveres Colt Paterson, máquinas absurdas de matar capazes de disparar cinco projéteis inclementes em seguida. Aos escravos homens, deram varas e facões. Precisavam defender a cidade, disseram. Os ingleses estavam a caminho, com navios de guerra prestes a atacar, prender navios que suspeitavam ser negreiros.

O dia foi tão agitado, com ordens sendo disparadas aqui e ali, e jagunços com rifles e chicotes na mão, de olho para que os escravos, agora armados, não tivessem nenhuma ideia, que Tobias não conseguiu raciocinar no absurdo da situação. Diziam que ele estava defendendo o Brasil, a Comarca, quando ele estava defendendo quem iria trazer mais gente como ele, para sofrer como ele.

No meio do caos, só há o caos. Tobias e outros aguardavam nos trapiches do porto, ouvindo ordens gritadas aqui e ali, no meio de armas disparadas e da ameaça permanente do navio inglês disparar seus canhões.

Até então, para Tobias, inglês era algo ligado apenas às finas roupas de seus senhores. Agora é algo gigantesco, metálico, que desliza velozmente pelas águas soltando vapor pela chaminé, dragão de pesadelos tornado real. Os senhores disparam. Navios capturados são afundados. Homens se atiram na água. A confusão é total. Aqui e ali, a pequena milícia de jovens faz planos de ir até a Ilha do Mel, se apoderar do forte e usar seus canhões contra o navio inglês no dia seguinte. O nome do navio, Cormorant, é dito com reverência, mas essa não era a informação mais importante para Tobias. Os senhores se hospedariam em casas perto da baía, para chegar cedo à Ilha do Mel. Tobias e os outros escravos ficariam em estábulos e quintais.

Inflando à brisa de monção

E, a voz dos lusos pioneiros

Bagrinho gastou parte do resto da noite conversando com a quadrilha improvisada. Queriam voltar para a Casa de Choppalha, ele foi contra. Nada de bebida, fumo, pó ou mulher – tinham que acordar cedo.

Foi voto vencido.

A poucos quilômetros dali, em uma cidade vizinha, a doçura extraída da cana descansa em barris de madeira nobre. Em alguns anos, eles serão abertos, ganharão o rótulo premiado da Porto Morretes e uma ou duas seguirá o curto caminho até o elegante bar do luxuoso hotel, onde ganhará o destaque que a melhor cachaça do Brasil merece. O que Bagrinho e os colegas bebem na Casa de Choppalha vem do Nordeste distante, destilada às toneladas em grandes tonéis industriais de inox. Serve para acalmar os nervos e afastar o sono.

Tobias não viu os senhores partirem. Não sabia que, enquanto alguns tentavam fazer funcionar canhões que foram usados pela última vez onze anos atrás. Ignorava a tensão dentro do pequeno barco que saiu da ilha em direção ao Cormorant, levando o ultimato da cidade. O documento, caprichosamente lavrado em Português, Latim e Inglês era destinado a nunca ser lido. Um tiro de pólvora seca foi a resposta do cruzador estrangeiro. O pequeno barco deu meia-volta, e os canhões da Ilha se prepararam para falar.

Isso Tobias escutou. Não viu, mas escutou durante todo o dia o estrondo de balas de canhão sendo disparadas do navio para o forte, do forte para o navio. Sem comer nada. Não podia nem ir até a fontinha matar a sede, os escravos deviam estar de prontidão para qualquer eventualidade. Mais algumas horas, e os senhores voltam, exultantes, dando conta do navio Inglês avariado, abandonando a baía. Alguns navios brasileiros afundados, se juntando a mais alguns no seu cemitério aquático. Mas outros salvos, e que poderiam seguir viagem até seus destinos. Vitória.

Mas os senhores não voltaram para casa. O coração de Tobias disparou. Ele sabia o que aquilo significava.

Zé do Poço tinha razão em muitas coisas. Bagrinho era um excelente motorista, além de esperto. Fora sua ideia de não deixar a Kombi parada, para evitar suspeitas. Bagrinho era safo, roubava as lojinhas da Rua Faria Sobrinho e não era pego. Bagrinho só não era observador.

Por isso, nem ele nem os outros viram que alguém dentro do prédio da Copel escutou a conversa na fontinha e chamou a polícia. Nem notou o policial enviado por um delegado com um pouco mais de imaginação para a Casa de Choppalha.

Por isso, seguiu com o plano. Cedo, muito cedo foi pegar a Kombi em uma das diversas casas centenárias, duocentenárias da cidade, que foram semidemolidas, janelas e portas da cuidadosa arquitetura coberta de argamassa e agora servem de estacionamento ou oficinas baratas.

Cedo, muito cedo Tobias e mais uma dúzia de escravos, os mais jovens e musculosos, embarcaram com os senhores em direção à Ilha do Mel. Não desembarcaram em lugar nenhum. Alguns enjoavam com o movimento das águas. Quando chegaram nos arredores da batalha do dia anterior, mandaram os escravos tirarem as roupas.

O Itiberê viu os primeiros

Sinais de Civilização

— Parado aí, Bagrinho. Desce do carro. Desce do carro, vamo!

Ele mal pusera a Kombi em movimento. Saindo da garagem, uma viatura do outro lado da rua. Três meganhas. Ele só com um revólver que já viu melhores dias, com três ou quatro balas, ele não consegue lembrar agora. Será que algum dos outros cagüetou? Olha pelo canto do olho para a arma no banco. Três ou quatro tecos?

— Sai do carro!

Se sair agora, vai apanhar, seguir para a cadeia superlotada, a mãe vai chorar, vai sofrer. Mas ele sobreviveria. O camburão está parado no outro lado da rua. Não tá bloqueando nada. Três ou quatro?

Bagrinho tira as mãos do volante e as ergue, devagar, para que os policiais as vejam. Um deles se aproxima para abrir a porta. Bagrinho engole seco.

E tira o pé do freio, acelera em cima do policial. Agarra o volante, vira tudo o que o grande carro pode virar. Os policiais se preocuparam em sair da frente da Kombi, olhar os outros, gritar, todas reações naturais que não incluem atirar. Como Bagrinho esperava. Engatou a segunda, rezou para que o carro acelerasse o que não podia. Um súbito ruído o fez berrar um palavrão. Não era uma bala atravessando a lataria, mas o celular. Zé do Poço, talvez avisando que os homens estavam em cima. Bagrinho ignora, concentrado na direção. Agora ele pode escutar a sirene atrás dele. Tenta raciocinar. Ele está indo em direção ao lado antigo da cidade, com suas ruas estreitas, onde com sorte passam dois carros. Pode tentar se desviar, se esconder do lado do porto, ou... ele segue em frente. As ruas são largas por mais algumas quadras, e ele toma a decisão. Iria descer em direção ao hotel chique, passar pela Casa de Choppalha, pela rodoviária e, quando a rua estreitasse, na altura do aquário, ele tombaria a Kombi, bloqueando os policiais, e atravessaria correndo a passarela, a ponte para pedestres, e se esconderia no mato da Ilha dos Valadares. Ele era bom de corrida. Podia fazer isso.

Acelerou ainda mais.

Haviam vários navios ao lado daquele no qual mandaram Tobias embarcar. Dois traziam muitos cabos, correntes.

"Prestem atenção, negros!"

Tobias mal conseguiu absorver toda a informação. Mas se aproximando da murada, olhou para baixo e confirmou. Dava para ver o navio, a água mal cobrindo todas suas partes. O senhor fala alguma coisa sobre navio vazio, afundado de propósito para não ser capturado, dá para recuperar. E, mais importante, instruções sobre onde prender os cabos e correntes.

Uma mão bateu no peito de Tobias e de alguns outros escravos.

"Vocês quatro, na água."

Tobias e os outros mergulharam. Dois brancos, marinheiros experientes, entraram na água também, e começaram a dirigir o trabalho. Pega o cabo, engata ali, passa acolá.

"Agora fiquem bem no meio."

Os dois navios presos ao naufrágio acionaram as poderosas caldeiras e começaram a se afastar. Os cabos tencionaram e mastros, cabines e tombadilhos começaram a se erguer, os escravos e marinheiros se erguendo com eles. Tobias tenta se segurar, evitar o turbilhão de ondas causado pelas furiosas hélices, a madeira e metal do navio resgatado fere sua pele exposta. Ao mesmo tempo que luta pela sobrevivência, tem que prestar atenção nas ordens.

"Vai escapar, vai escapar o cabo, negro, corre prender lá."

"Para de puxar a bombordo. Corta a caldeira!"

"Corta estibordo também! Vamos prender mais um cabo, mestre Antônio?"

"É melhor. Negro, vão jogar mais um cabo, mergulha e vai pegar!"

Depois de horas de muito esforço, o navio se equilibrou na superfície, Tobias e os outros correndo para tapar o buraco com aparas de madeira e estopa, improviso suficiente para que o barco fosse rebocado. Tobias viu o marinheiro dar uma marreta de madeira para um escravo.

"Você e eu vamos ficar cuidando do remendo, Mestre Antônio fica vigiando o barco do tombadilho. Os outros negros, voltem para sua embarcação."

Lá no fundo, Tobias reza para que eles voltem para terra. Mas, como ouviu dos senhores sobre outros navios, sabe que o perigo estava apenas começando.

Bagrinho forçou tudo que podia para fazer a curva em decida. Os pneus reclamaram alto a manobra, sentiu o dianteiro direito perder o contato com o solo pelo que pareceu uma hora. Sua mente foi invadida por preces para todos os santos que conhecia. Ainda não, agora não, se capotar aqui não tenho para onde fugir. A borracha voltou a fazer contato com o paralelepípedo na íngreme descida. Agarrou o volante, nós dos dedos brancos pela pressão, e forçou a curva para o outro lado. O lado esquerdo do veículo ficou leve, mas não destracionou. Ganhou mais umas frações de segundos de vantagem para o camburão dos policiais. Agora vem a parte mais difícil. Pegou o revólver, passou para a mão esquerda. Se não conseguir virar a Kombi de primeira, perderia velocidade e teria que tentar uma nova manobra, atirando no pneu. Difícil, difícil. A passarela entrou no seu campo de visão.

Não, os outros navios não poderiam ser resgatados. Alguns muito danificados, outros muito no fundo. Alguns estavam vazios, sem carga. Mas mesmo esses tinham itens que valiam a pena ser resgatados. Astrolábios, sinalizadores, relógios, garrafas de bebidas. Tobias recebeu a ordem de mergulhar e não se atrever a voltar de mãos vazias. Foi o primeiro mergulho de muitos.

Os paralelepípedos faziam o veículo de Bagrinho pular e querer sair da estada. Atrás, o camburão com suspensão melhor se aproximava. O revólver voltou para a mão direita e se virou para trás, atirando sem ver na direção dos policiais. O vidro traseiro estourou com estardalhaço. Os policiais instintivamente deram um toquinho no freio. Bagrinho quase sorriu, e voltou a se concentrar no caminho. E agora? Mais dois ou três tiros? Tirou tudo da cabeça, foi o máximo que podia para a esquerda. Gritando um palavrão, afundou os pés nos pedais e girou o volante para a direita. Por um instante, se sentiu no ar, os olhos tentando fazer sentido do que acontecia na sua frente. Logo, o mundo pareceu cair sobre ele, conforme seu corpo era jogado contra a porta do motorista. Dava ordens sem parar para seu corpo se mexer. Pomba, tinha esquecido de baixar o vidro da direita, sua rota de fuga. Perdeu alguns momentos preciosos abrindo a porta, não teve escolha. Disparou mais uma vez na direção dos policiais e desatou a correr. Ele esperava que a passarela estivesse cheia, para que eles não ousassem disparar e atingir inocentes. Chegou a passar pela sua mente os filmes do almoço de domingo, pegar alguém de refém.

— Para ele!

Pelo que ouviu, os policiais estavam muito longe, ele ia conseguir. Mas para quem eles gritaram? Não, pomba, não.

Girou a cabeça e viu uma viatura parada ao acaso no Aquário Municipal. Perto dela, um outro policial. Para bagrinho, parecia que ele levava a mão ao coldre em câmera lenta. Tentou correr ainda mais rápido. Jogou pessoas para o lado, alcançou o início da passarela. Trinta passos a mais e ele estaria na ilha.

Tropeçou.

Não, pensou que tropeçou. Só registrou o impacto um momento depois. Tentou se apoiar na amurada, começou a sentir algo quente escorrer em suas costas. A realização do barulho do estampido só veio depois, quando ele não sentia mais seus pés no chão. Sua visão foi preenchida pelo Rio Itiberê, se aproximando velozmente. O impacto da água. Bagrinho pensou que o abraço daquele corpo líquido, refrescante, foi a melhor sensação que já tivera na vida.

E não sentiu mais nada.

O dia avançava. Conforme iam em busca de navios em locais mais fundos, deram a Tobias e outros escravos balas de canhão, para que afundassem mais rápido. Tobias desceu pela sétima ou oitava vez. Não conseguia mais ver o fundo. Tinha que tatear pelo navio para encontrar alguma coisa. Sua mão direita ia de lá para cá, tocando a superfície irregular da natureza marinha, o liso e frio das paredes do navio, até achar algo solto. Seus pulmões começavam a queimar, exigindo por ar. Agarrou algo. Alguma coisa pequena, leve, não importa. Ele poderia subir. Largou a bala de canhão e se lançou à superfície. Duas pernadas e sua cabeça bateu em algo. Tobias lutou contra o pânico. Estava dentro de uma cabine, no escuro, sem fôlego. Tentou se localizar, por onde havia entrado? Flutuou alguns metros para a direita, para a esquerda, para a frente – ou será que era a esquerda de novo? Seus dedos sentiram uma saída – finalmente. Com pulmões em brasa, ele se deixou subir à superfície. Seu coração batia mais rápido, sua mente parecia ficar mais leve. Agora já podia ver a luz do sol. Ergueu a mão, entregando o tesouro ao senhor.

"Um garfo? Que porcaria, negro."

Tobias só queria encher seus pulmões com o arabençoado. Mas não conseguiu. Tentou de novo. Parecia que seu torso inteiroestava paralisado, coração descompassado, e a dor. Uma dor lancinante quecomeçou nas extremidades de seu corpo, e rapidamente percorreram seus membrosinteiros. Lembrou de conversas de marinheiros no porto. Ele subira rápidodemais, seu corpo reagia ao mal das profundezas. Não conseguiu pensar em muitomais. Não conseguia registrar o que os homens brancos falavam, uma mão agarrousua cabeça e tentou afundá-lo. Tobias estava além do raciocínio de voltar adescer para aliviar os sintomas. Então, não sentiu mais o desespero de nãoconseguir respirar. Não sentiu mais as dores, foi inundado por uma pazinfinita. Naquele momento, ele agradeceu aos orixás pela certeza de que, embreve, sua gente não passaria mais por aquele tipo de coisa.

Continue Reading

You'll Also Like

12.4K 107 9
Conteúdo adulto! Não recomendo para menores de 18 anos. Os textos são de minha autoria e não podem ser replicados em outras plataformas. Conteúdo de...
944K 29.5K 119
O que há de ser mais dolorido nesta vida do que um amor impossível? Há quem duvide, há quem não acredite que isso possa acontecer, mas sim, acontece...
859K 7.6K 30
+18
11.3K 1.5K 17
Ele me deixou. Jeon Jungkook me abandonou quando eu não passava de um adolescente assustado. Ele me abandonou em uma casa com um monstro. Agora, ele...