Muito Mais que Verde e Amarelo

By euamoescrever

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O concurso de contos Muito Mais que Verde e Amarelo tem como objetivo valorizar a cultura maravilhosa do noss... More

Edital do Concurso
Votações Abertas!
Conto 02: Um Novo Brasil - Oicreal
Conto 03: Cormorant, Camburão - Neto Andrade
Conto 04: Irmãos de Corrida - Mota
Conto 05: Ore por Mim - Mariana Ulian

Conto 01: Frio - Neto Andrade

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By euamoescrever

Título do conto: Frio.

Nome do autor ou pseudônimo: Neto Andrade.

Cidade e estado a qual a história é ambientada: Curitiba, Paraná.

Censura do conto e o gênero literário: "L" segundo a classificação da TV: violência fantasiosa, morte implícita sem violência; consumo implícito de droga legal. Nenhuma incidência de sexo ou palavras de baixo calão. Crônica narrativa; história baseada em fatos reais com liberdade poética.

Pequeno resumo do conto ou sinopse: O cotidiano de Curitiba, seu dialeto e moradores, através do olhar de um de seus habitantes mais famosos.

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Hoje é mais um daqueles dias. Céu escuro, chuva que mal e mal se sente, miúda, miúda mas que quando se vê, cobre tudo, mato, pedra, árvore. E o frio. Frio que gela os músculos, que não dá vontade de se mover. Meus avós falavam sobre uma terra que não era tão fria, onde o sol brilhava mais e podíamos nos aquecer. Terra de comida e espaço abundante.

Aqui, o Sol tem vontades e caprichos. Passam-se semanas sem que ele apareça, só com chuva e frio. Ou o céu pode limpar em um piscar de olhos, e o seu brilho e calor inundar tudo com força. É uma terra imprevisível. Hoje, acho que ele não vai sair. Então, saio eu. Não tenho escolha.

Cada movimento é uma tortura. Me arrasto sobre o mato gelado e escorregadio. Devagar, com cuidado. Em algum lugar acima de mim, folhas recolhem todos os pingos pequenos e os transformam em uma gota grande líquida gelada, que invariavelmente atinge minha cabeça e meus olhos. Não sou mais tão jovem, mas também estou longe de ser idoso. É o tempo, o frio danado que me tira a disposição.

Avanço em direção a uma pedra. O vento, de alguma forma, me atinge por todos os lados. Frio, frio. A pedra, pelo menos, retém o mínimo de calor. Já ouvi falar sobre isso. Que as pedras dessa terra nunca serão senão pedras. Pedras, a lua esfria e o sol esquenta. Paulo Leminski. Falam muito esse nome, por aqui. Certamente alguém importante. Me refestelo sobre a pedra, tentando absorver um pouco do calor que resta. De um lado, a uns dez, doze passos, a água só incomodada por um ou outro pingo que as árvores engrossam e algum peixe que sobe sem porquê. De outro, mais perto do que geralmente gosto, na trilha de cascalho eles passam, tagarelando.

E como falam. Falam e trotam. Não sou um ignorante. Consigo entender quase todos aqui. Quero-queros e carcarás só descem do seu latifúndio azul para comer e, de quando em quando, botar um ovo. Sem pedir licença, com a certeza esnobe que, com um bater de asa, estão livres de todo perigo, acima de todos. Babacas. As garças, essas são os únicos pássaros que respeito. Não abandonam o lugar, e imagino que detestem o frio tanto quanto eu. Temos um acordo não-verbal. Elas ficam com sua parte da lagoa, eu fico com a minha. O grande arco de pedra cinzenta, por onde o rio passa por baixo e, por cima, o estouro eterno de carros é a nossa fronteira. Quase sempre.

"Carros" é como se chamam as caixas de metal. Uma das muitas coisas que se aprende nessa lagoa. Basta ver, ouvir, vigiar. E para fazer isso melhor, não se pode respeitar muito as fronteiras. Muitas vezes eu passo por baixo do arco de pedra e avanço um pouco. Não muito. Até o primeiro arco de madeira, ali, na altura da grande caverna amarela. As garças não ligam. Elas se reúnem, mais para baixo, perto da cachoeira.

Como eu sei que há uma cachoeira se disse que nunca vou até lá? Cachorros.

As pacas e capivaras são de uma estupidez atroz. É bom que passem grande parte do dia pastando, pois daquelas bocas não sai nada que preste mesmo. Sua única qualidade é terem filhotes saborosos. As ovelhas? Não comece com as ovelhas, bichos fedorentos que se acham donas disso tudo, mas que não entendem que só saem quando eles querem, são trancadas quando eles querem.

Os cachorros, não. É um bando de cinco ou seis, vivem por aqui e contam tudo sobre os arredores. E falam sobre eles, em detalhes. Alguns descrevem maravilhas de uma vida de luxo. Que viveram com eles em cavernas confortáveis e aquecidas, com camas macias e comida a vontade. Comida que nunca provei. Galinha. Ração. Se eles são tão maravilhosos assim, porque os abandonaram? Não respondem, e continuam a elogiar. Todo cachorro que conheço é esperto, mas masoquista.

Os cachorros dizem que a lagoa é cercada de pedra trabalhada, muita pedra. Cavernas altíssimas. Muito mais do eu as seis-sete que vejo daqui. Como estrelas, dizem. E, por todos os lados, manadas de carros estourando nas trilhas cinzentas de cascalho transformado em pedra.

E os cachorros dizem que sou uma celebridade. Não entendo muito. Só sei que está frio, e tenho que me aquecer.

Me movo um pouco na minha pedra normal, que nunca foi nem será senão pedra. Isso chama a atenção deles para mim. Me olham, apontam, e me deixam estuda-los um pouco mais. Um dia vou entende-los. Já apareceram os primeiros.

— Olha lá o jacaré.

— Larg'mão, piá.

— Ali, na pedra.

— Ih, é o jacaré mesmo.

Eles não moram na lagoa, mas estão aqui sempre, sempre. Pensava que eles eram bons caçadores, pois usam um tipo de couro sobre o corpo, e conseguem trocar sempre. Os cachorros dizem que não é bem assim, que eles têm muitos desses couros chamados roupas, mas que nunca os viram caçar nada. É mais um mistério.

Sei que eles sofrem com essas "roupas". O tempo aqui muda rápido, muito rápido. Não hoje, claro. Hoje vai ser dia frio até o fim. Mas é comum vê-los reclamando.

— Pera aí, só um pouquinho, deia eu tirar aqui.

— Falei pra você não vir correr de japona. Agora vai ter que ficar segurando.

Existem muitos dias assim. O sol aparece e, antes que se note, tudo está quente, gostoso. Mesmo tendo sido chocado aqui, não me acostumo com essas bruscas mudanças.

— Mesmo tendo nascido em Curitiba, não me acostumo com esse tempo. Olha lá, o jacaré.

Curitiba. É só um dos muitos nomes desse lugar. Barigui, Barigua, Curitiba, Curita, CWB, Parque. Para mim é lagoa, mundo não conheço nada além das trilhas dos carros. E não tenho interesse em conhecer. O que os cachorros dizem, e o que ouço deles é suficiente.

Mais alguns apontam para mim, e continuam no seu trotar ou galope.

— So we met at the coffee at Mueller and... the jacaré.

— The jacaré, Almeida? Essa é boa.

— Esqueci a palavra.

— Alligator.

— Não é diferente? Alligator é uma coisa, jacaré é outra?

— Pode ser. Mas serve. Let's continue the practice.

— Hum. In the shopping, he said...

— "At the mall" he said.

— Mas você tá chato hoje, hein?

Devo ser isso mesmo. Celebridade. Também disseram que lá do outro lado, perto de um grande descampado onde os carros descansam, eles cortaram a pedra na forma de um grande jacaré. O fato de o fazerem tão longe da água, em um lugar onde nenhum jacaré iria mesmo que quisesse, mostra que eles não são tão inteligentes assim. Têm certos hábitos. Na maior parte do tempo, são trotadores. Aparecem um pouco antes do sol nascer e continuam até estar bem escuro. No começo, achava que era aqui era uma rota de migração, mas rápido notei que eles trotam em círculos. Estariam tentando emboscar as pacas? Não, trotam por trotar, mesmo. Sem correr atrás de presa ou fugir de predador. São muito estranhos.

— Vamos fazer quinze, amiga? Ontem me acabei na casa de Marcinho, tenho que queimar calorias.

— Não sei se aguento quinze.

— De boa, quatro voltas, então, e a gente anda quando você cansar.

— Mas como foi lá no Marcinho?

— Cerveja à vontade, e sabe quem apareceu por lá? A Dina.

— Louca! E aí?

Algumas vezes trotam muitos com o mesmo couro, desculpa, roupa. Deve ser uma maneira de identificar o bando.

— ... não vai ficar mesmo?

— Não, meu empresário disse que posso escolher entre o Cianorte e o Rio Branco.

— Paranaguá, né?

— Paranaguá.

— Algum está na terceirona?

— Não sei.

— E aquele lance da pensão, como fica?

— Ele disse que a gente pode fechar o contrato por menos e esconder um pouco do dinheiro. Bem pouco, pra ninguém desconfiar.

— Ela vai aceitar?

— Se mostrar pro juiz que vou ganhar menos...

— E qual você prefere?

— Tô pensando em descer pra Paranaguá... tem bastante torcida, pode fazer meu nome.

Esses trotam sempre. São da turma de quase todo dia. Porque há varias manadas deles, alguns aparecem com menos frequência.

Por exemplo, tem aqueles que chegam quando o sol está sumindo. Chegam eles e os carros, esses balindo, grasnando, cacarejando, arrulhando, zinzilulando, palreando. Não sei o som que fazem, mas o fazem muito alto. Essa manada se senta na grama, alguns tiram parte da roupa quando está quente. Muitos têm o próprio couro colorido, nas costas, ombro, peitos. Devem ser os líderes. Ficam ali, enquanto os carros bigorneiam, zumbem, mugem, bramam. Tiram e bebem um líquido de cheiro forte de uma fruta cilíndrica de metal. Falam e riem, tentando se sobrepor aos carros.

— Véi, fui no tubo do Boqueirão e você não tava lá.

— Ah, larguei o trabalho de cobrador.

— E tá onde, agora?

— Lugar nenhum, tô de varde.

— Ah, piá!

Depois de algumas horas, vão embora e a lagoa é entregue ao relativo silêncio por algum tempo.

Logo que o sol sai, uma nova manada inunda o espaço. A maioria trazendo a reboque filhotes saídos não sei de onde e ocupam os arredores da lagoa. Junto dos filhotes e genitores aparece outra manada que os alimenta. Tiram tudo de grandes caixas. Tem muita comida baseada em milho, e muita em porco. Tem pedaço de porco misturado em milho estourado, e dentro de cilindros que chamam de vina. Ouvi falar em cachorros-quentes, mas nunca senti o cheiro de cachorro morto.

Os filhotes ficam trotando para lá e para cá dois dias inteiros. Aprendi a me esconder nesses dias, pois vejo o terror nos genitores. Não entendo o motivo. Os filhotes são grandes demais, e não chegam tão perto da água. Por que iria arriscar se tenho tanto filhote de paca a capivara a disposição? Além disso, os cachorros disseram que não há nada pior que fazer mal a um deles. Contam histórias horríveis sobre qualquer criatura que ouse morder, arranhar, atacar ou qualquer outra coisa contra um deles. Não ligo. A vida na lagoa segue uma rotina fácil de entender e respeitar. Cinco dias de trotadores, um anoitecer de carros berrando, dois dias de filhotes. Repete-se o ciclo. Simples.

Hoje é dia de trotadores. Além deles, eu, as garças, os cachorros, as pacas e capivaras. E, como não estou com fome, pacas e capivaras não contam.

Mas eles ainda me surpreendem de vez em quando. Vejo alguns galopando mais rápido para longe, outros se aproximam. Um carro para perto. Muito estranho, carros não costumam sair das suas rotas de pedra. Demoro para reagir, porque eles nunca me incomodaram. E também está muito frio.

Eles se aproximam, com roupas cor de capivara. Só então entendo que algo está muito errado. Jogam algo, um pedaço de roupa escura, sobre meus olhos, tentando me confundir. Mexo a cabeça, tento sair da pedra. Vejo uma corda tentando me laçar pelo pescoço. Não devia ter ficado tão longe da água. Um deles bloqueia meu caminho. Tento assustá-lo, abrir a boca, rugir. Viro para a esquerda, tentando disparar para a água. Jogam a tal roupa de novo, e meu mundo fica preto. Preciso me acalmar, raciocinar. A água estava na minha frente. Posso continuar a me mover, mesmo que não esteja vendo nada. Mas minha indecisão fez com que eu ficasse parado um momento demais. Sinto algo apertado em volta do meu pescoço. Viro para lá e para cá, mas não tenho ideia de onde morder. Esperar, melhor esperar até que eu consiga ver onde atacar. A mesma sensação, agora na base da minha cauda. Sinto algo estranho sobre meu focinho. Parece uma roupa, mas grudenta como seiva de árvore. Ela passa sobre meus dentes e meu papo. Tento abrir a boca, espantá-la, tarde demais. Não consigo mover minha mandíbula. Sem visão e sem defesa. Meu corpo é erguido. Me debato, tento atingir algo com minha cabeça e patas, mas parece não fazer diferença. Os cachorros disseram que eles não eram bons caçadores. Disseram que só era perigo se eu fizesse algo ruim. Disseram... me sinto jogado, meu corpo bate no interior do carro. Escuto a porta fechar. Estou cercado de metal.

E está ainda mais frio. 

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