Uma Encomenda para um Novo Mu...

By Deco_Sampaio

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Tomás acorda de um coma em uma época à frente de seu tempo e descobre em 2333 um mundo renovado: o Brasil se... More

Capa Antiga
Ficha Catalográfica
Sinopse
Orelha do Livro
Apresentação
Andanças
Prelúdio
PARTE I
1. ENCONTRO MARCADO
2. MALDITAS SURPRESAS DA VIDA
4-ENIGMAS
Versão física (adquira a sua)
Disponível para Kindle
Prêmios
Sobre o Autor
Canal do youtube sobre escrita e música
Uma conversa sobre ficção científica
Recado urgente: livro de graça!

3. PERDIDO

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By Deco_Sampaio

Brasil, Rio de Janeiro, Hospital Tavares de Souza, ano de 2333.



VINTE ANOS se passaram e veio uma nova vida.

Abri meus olhos e uma luz ofuscou a visão. Não conseguia distinguir os vultos à frente e nem os sons. Tudo estava brilhante e embaçado. Não conseguia mexer o corpo, apenas os olhos. Não sabia onde estava e nem quem eu era. Sentia angústia e a mente opaca.

Aos poucos a visão melhorou e senti que podia movimentar os dedos dos pés. Veio um silêncio. Pavoroso. A imagem de uma feição feminina com olhos lúcidos e tão castanhos quanto a pele ficou nítida. Ela movia os lábios e dizia algo.

Havia pessoas vestidas de branco ao redor do meu leito, pareciam espantadas e felizes. Um homem, um médico, tomou a frente da moça, começou a gesticular e falar. O silêncio continuava a imperar.

De repente, sons surgiram fazendo um estampido agudo em meus ouvidos. Pude então compreender o que o médico dizia:

— Ele voltou!

Não sabia de que lugar eu tinha voltado, e se algum lugar realmente existia ou fazia sentido.

Fui tranquilizado com massagens e acupuntura, feita por pequenos robôs em forma de insetos. Continuei não conseguindo falar, nem me movimentar com desenvoltura. Transferiram-me para um quarto aconchegante, sarcasticamente com vista para florestas e montanhas, cheias de mistério e tristeza. Um verde que me alegrava e aterrorizava, sem motivo aparente.

Meu raciocínio era letárgico. O tempo passava como em câmera lenta. Devo ter ficado uma semana sonolento, não sabendo distinguir sonhos da realidade. Pensando bem, agora também não consigo reconhecer com exatidão as diferenças. Sonhos e realidades são, em muitos casos, aparentemente a mesma coisa.

Existe um bloqueio em minha mente, ainda existe. Mesmo aqui no deserto não me lembro de todo o meu passado. Naquele momento, no hospital, eu não tinha sequer uma lembrança sobre mim, nada, apenas sensações e informações desconexas de tempos remotos que me vinham em flashes.

O acidente, minha família, minha profissão, toda a turbulência de uma longa vida, tudo esquecido. Somente uma névoa, espessa e cruel.

Quando tive alguma melhora, colocaram-me em uma cadeira flutuante, amarraram o meu corpo nela e me levaram pelas instalações do hospital. Sim, cadeira flutuante. Vocês, meus receptores de tempos arcaicos, ficariam de queixo caído se vissem uma.

Os corredores eram iluminados e as portas, transparentes, pareciam líquidas. Vi salas para diversos tipos de tratamento. Um local organizado e limpo. O cheiro de lavanda remetia a limpeza e cuidado. As luminárias e os móveis dos quartos e corredores eram de material reciclado, percebi pelos símbolos. Tudo colorido, extravagante e flutuante.

Não aguentava o peso de minha cabeça. Fazia esforço revirando os olhos em várias direções para entender o lugar. Tontura me vinha. Sentia-me algo como uma gelatina, talvez uma lesma. Mesmo com as dores achei incrível. O enfermeiro, que direcionava a cadeira, levou-me para dentro de uma sala ampla e de decoração minimalista.

— Aguarde um instante que o doutor virá falar com você — despediu-se. Reparei que tinha movimentos robóticos e expressões que soavam falsas.

Assim que ele passou pela porta, esta se fechou automaticamente.

Uma mesa pairava no ar e hologramas com fotos do doutor e família movimentavam-se pela parede. Fascinante!

A flutuação dos objetos era causada por eletromagnetismo. Um sistema parecido com aqueles trens magnéticos do Japão do século XXI. Toda a estrutura do piso do hospital, assim como as mesas, camas, estantes, cadeiras e macas, tudo era feito com material magnético. Quando a lei de atração e repulsão dos polos atuava, essas coisas levitavam. Pelo menos foi o que me disseram.

As fotos na parede mostravam um homem beirando os cinquenta anos, austero. Palavras holográficas dançavam sobre a mesa informando: Psiquiatria avançada – Hospital Tavares de Souza – Doutor Felipe Mendes. Ouvi a porta se abrir e alguém entrar. Não consegui me virar, ainda não havia entendido o funcionamento daquela cadeira. O doutor apareceu em minha frente e me estendeu a mão. Parecia mais alto do que nas fotos.

— Olá! Prazer em te ver acordado.

— Oi.

A mão do médico ficou estendida e com concentração consegui levar a minha até a dele. Ele esperou e com um sorriso deu um aperto forte. Foi até a mesa e sentou-se em uma cadeira, que também flutuava, que de tão transparente quase não se enxergava. Fez um gesto para que eu me aproximasse. Inclinei a cabeça para a frente e a cadeira movimentou-se até a mesa.

— Como se sente?

— Confuso e com dor de cabeça — minha voz saiu tremida e rouca.

— Sabe onde está?

— Hospital Tavares de Souza — disse, lendo o holograma sobre a mesa e notando que havia impressionado o doutor.

— Sabe quem eu sou?

— Doutor Felipe — falei, deslumbrando ainda mais meu interlocutor. Movi a cabeça indicando as letras que esvoaçavam sobre a mesa. O médico percebeu o "truque" e sorriu.

— Preciso saber seu nome e endereço para avisarmos sua família.

— Não sei dizer. Não faço a mínima ideia de quem eu sou. Nem mesmo em que época estamos. Pelo que vi estamos em 2333, mas não faz sentido — falei vagarosamente, achando os meus dizeres a coisa mais estranha do mundo.

— Normal! É como prevíamos. Você está com amnésia, provavelmente temporária. Vou tentar te atualizar, prepare-se, pois serão notícias fortes — limpou a garganta e continuou — Você foi encontrado em coma há cerca de vinte anos, estamos cuidando de você neste hospital há cerca de cinco anos, ninguém conseguiu te identificar, não sabemos seu nome e não temos pistas. Suas digitais, íris e DNA não constam do sistema da polícia e você não possui um chip de identificação, e nem mesmo atualizações básicas de upgrade bio e nanotecnológico em seu corpo. Você é das antigas, meu amigo. Mas não se preocupe, gostamos de coisas antigas — deu um sorriso largo, contagiante. — Provavelmente você vai demorar para se lembrar de tudo, pois esteve em coma por um longo período. No geral seus exames mostram uma saúde perfeita. Fique tranquilo e se alegre, um milagre aconteceu.

Aquele homem era direto. Eu gostei. Apesar de tê-lo entendido senti enigmas me rondando, precisei de mais informações.

— Como assim?

— Você acordou, voltou para a vida — ele sorriu, novamente de forma ampla. — Por enquanto você vai ter dificuldades para se movimentar, mas será por pouco tempo, pois seus músculos estão bem. Você recebeu tratamento fisioterápico e rejuvenescedor intenso e de alta tecnologia enquanto esteve em coma. Aparentemente é seu cérebro que ainda não se acostumou a estar acordado. Fique tranquilo, você receberá toda a atenção necessária e vai melhorar.

As palavras do doutor me passaram confiança, mas só pude dar um sorriso tímido que fechou nossa reunião.

No meu quarto, recebi a visita da moça que vi ao acordar do coma.

— Com licença, senhor!

— Toda.

A moça aproximou-se da cama flutuante e ficou me observando sorridente, tinha os olhos úmidos. Cumprimentou-me.

— Está se sentindo melhor?

— Acho que melhor que antes — sorri com o canto da boca.

— Pelo jeito o senso de humor já está se normalizando.

— Não tenho ideia de como era meu senso de humor.

— Me desculpe! — respondeu com o semblante sério.

— Que isso! Não quis te constranger — falei com a voz trêmula.

— Senhor! Sou sua fisioterapeuta, meu nome é Julia. Estou cuidando de você há cinco anos — respirou fundo. — Preciso fazer um breve exame de rotina para darmos prosseguimento ao seu tratamento.

— Prazer, Julia. Que tipo de exame?

— Um teste elétrico associado à nanotecnologia e chips que implantamos em você. Terei um diagnóstico completo de sua condição física.

— E como vamos fazer isso?

— Feche os olhos e relaxe, vai doer um pouco, mas vai ser rápido.

— Ok.

Fechei os olhos. Julia levantou minhas pernas e inseriu a agulha de um aparelho na sola dos meus pés. Meu corpo tremulou e senti os músculos enrijecerem. Foi doloroso, mas prazeroso. O tratamento durou uns cinco minutos e vários gemidos. Quando acabou e meu corpo se acalmou ela me mostrou um gráfico holográfico com meu porcentual de massa magra e gordura, além de verificações sobre os ligamentos, ossos e circulação sanguínea.

— Pronto, acabou.

— Uau! Esse é o meu corpo? — falei olhando o holograma que flutuava no quarto.

— Sim, esse é você.

— Impressionante! Mas você disse que ia doer só um pouco — sorri.

— A dor é coisa da sua cabeça.

— Minha cabeça não se lembra de ter sentido uma dor tão intensa antes. Na verdade não me lembro de quase nada. Tudo é tão estranho. Como os hospitais podem estar tão evoluídos? Só me recordo de lotações e tragédias na saúde.

— Sua memória vai melhorar. Não se preocupe.

— Moça, me explique. Como posso estar em 2333? Tenho uma vaga lembrança que sou de 1990, ou algo assim? Sabe, não consigo ter certeza. Não existe organização de tempo na minha mente. Não lembro sequer do rosto de minha mãe, ou se tive filhos, meu nome, não lembro meu nome. Nada — o desespero ficou nítido em minha expressão.

Vi tristeza no rosto da mulher. Senti um vínculo. Empatia.

— Senhor, acalme-se. Foram vinte anos adormecido. Sua mente está confusa. A psicóloga virá conversar com você, sabemos que não há tecnologia que supere compartilhar nossos sentimentos com outro humano. E aqui no Tavares de Souza somos especialistas nisso. Infelizmente não temos registros do senhor, nem mesmo nas redes chipnanosociais, não foi possível traçar um perfil psicológico, nada. O senhor é um mistério. Assim que tivermos um diagnóstico preciso, teremos como te deixar como em um paraíso. Aguente firme, você irá se lembrar da sua vida.

A doutora tinha um olhar denso e carinhoso. Ficou me olhando por longos segundos, pegou em minhas mãos.

— Muito obrigado. Sei que sem vocês não teria sobrevivido. Quando vou poder me movimentar melhor?

— Seu corpo respondeu bem ao tratamento. Acho que o senhor praticava exercícios, até em nível profissional. Creio que ainda esse mês você vai andar e fazer muitas coisas, mas é necessário acreditar. Seu corpo precisa entender que o período de descanso acabou.

As mãos dela acariciaram meu braço.

— Finalmente uma boa notícia.

Julia me fez alongamentos e me aplicou descargas elétricas diariamente, às vezes, por horas, dia após dia. Era sofrido, mas acolhedor. Eu sentia que ela tinha uma dedicação especial ao meu caso. De maneira geral a gentileza parecia ser uma regra para todos do hospital, talvez porque a maioria dos exames e mesmo a finalização de qualquer diagnóstico viessem de máquinas, de algoritmos, ou seja, os funcionários davam o algo a mais que as máquinas não conseguiam.

Com a psicóloga eu não conseguia me abrir. Eu falava sobre liquidificadores, máquinas de lavar, ar-condicionado, de marcas de carro e chocolates. Coisas fúteis e muitas delas eu percebia que ninguém dali conhecia. Ela tentou hipnose, mas quando fazia eu entrava em uma sala escura e ficava buscando a saída, apalpando paredes sem nunca encontrar nada que fornecesse luz. Minha angústia aumentava a cada conversa. Apenas com Julia, mesmo sem trocar muitas palavras, eu me sentia tranquilo.

Naqueles dias eu ficava modorrento e pensando no vazio de não saber nada a meu respeito. Era curioso como compreendia o olhar das pessoas, até mesmo tudo que me rodeava. Como podia fazer isso com tão poucas lembranças? Sobre minha vida pessoal não me vinha nada, nem um mísero lampejo.

Buscava me entreter, esquecer que nada sabia. Com dificuldade entendi como se fazia para ligar a televisão, que se chamava hologranet. Bastava me concentrar e pedir que ligasse. Haviam extinguido o controle remoto e comemorei, creio que controles me aborreciam.

A nova tv era um aparelho menor que um cinzeiro que, quando acionada abria vários hologramas demonstrando os canais. Algo fantasmagórico. Olhando para os hologramas sentiam-se luzes lendo sua retina, e ao direcionar os olhos aos canais que lhe interessavam eles se abriam em janelas maiores.

O som não saía do aparelho, eu o ouvia dentro de mim. De início foi assustador ouvir sons que surgiam de meu interior, como se fosse um outro eu tentando me entreter. Mais tarde descobri que implantam nas pessoas nanochips com vínculos e programações de vários aparelhos de comunicação. Todos conectados à rede de internet, fazendo nosso corpo ser um grande captador de sinais.

Telefonemas, e-mails, mensagens, vídeos, tudo acontecia dentro do corpo humano, não eram necessários aparelhos. Além disso havia os chamados upgrades, biotecnologias que melhoravam a agilidade, força e inteligência das pessoas. Só eram implantados em condições especiais, não entendi direito, era muita novidade.

A internet gratuita existia em qualquer canto do mundo, devido a um projeto da Google intitulado Loon, que instalou balões na estratosfera disponibilizando um forte sinal, além de outros vindos da Tesla.

A programação dos canais era estimulante e enriquecedora. Os chamados algoritmos de entretenimento sabiam o momento certo de recomendar um programa, filme, música, livro. Trabalhavam no intuito de estimular descobertas, diversificar e aprimorar seu gosto. Os canais são elaborados por organizações que não visam ao lucro, especialistas em entretenimento, psicologia e controle de manipulação.

Imagina o absurdo disso para alguém que só se lembrava de coisas dos anos 80 e 90, do lixo da programação daquela época. Eu lembrava do programa Domingão do Faustão, das notícias escandalosas nos jornais, da praga do Big Brother. As coisas pessoais continuavam nebulosas. Como se uma neblina encobrisse tudo que era importante e deixasse aparente coisas tolas.

Havia poucas notícias ruins. Vi um breve documentário que dizia ser o Brasil o melhor país do mundo para se viver, de todos os noventa países existentes, era o mais avançado em tecnologia, principalmente biotecnologia, além disso, continuava abençoado por quantidade exorbitante de água potável, minérios e de uma imensa gama de espécies de animais e plantas, fornecedores dos recursos necessários para quase oitenta por cento de todos os produtos que existiam.

Não era desse Brasil que eu tinha recordação. Cada dia ficava mais certo que eu estava além do tempo que vivi. Estava óbvio, pois eu só me lembrava de um mundo diferente, cheio de corrupção, além de perniciosa degradação ambiental e social. Coisas que aparentemente não existiam mais.

Uma das coisas que mais me impressionaram é que se podiam entender os principais idiomas, sem legenda, não importava a língua, até mesmo coreano. As fronteiras de linguagem haviam acabado, tudo podia ser traduzido de imediato nas falas. Que maravilha! Ninguém precisava ficar anos em cursos estagnados de línguas. Era nítido que me encontrava em um mundo mais justo, tecnológico e ético. Só que minhas opacas memórias levavam-me a um passado longínquo.

Demorei a dominar o sistema eletrônico e nanotecnológico que havia em meu corpo, não tinha a memória de como gerenciá-los. Via pessoas parecendo estarem em transe, desligadas da realidade, ignorando perguntas e as coisas que estavam acontecendo à sua volta.

Julia explicou que deviam estar escrevendo mensagens, tendo aulas (planejadas por algoritmos exclusivamente para potencializar o aprendizado do indivíduo), editando filmes, vendo fotos, lendo livros, ou até mesmo falando ao "telefone". Por mais contraditório que possa parecer, não era necessário falar para a outra pessoa ouvir, funcionava como um tipo de telepatia.

Achei inconveniente toda aquela tecnologia. As pessoas podiam ficar aprisionadas ao virtual com facilidade. As pessoas variavam de atitudes de pura espontaneidade para mecânicas. Julia aos poucos foi me ensinando os principais comandos cerebrais.

Eu não tinha ninguém para ligar, para me comunicar, por isso o meu "aparelho telefônico" não me era interessante. Fiz ligações-teste para Julia. A voz macia dela surgindo como se dentro de minha cabeça foi uma fantástica sensação. Bastava pensar na conexão, e, se ela estivesse disponível e quisesse me atender, teríamos uma conversa "telepática".

Julia também me ensinou formas de deixar bloqueado o sistema, para não atender e não ver nada. Disse que na maior parte do tempo as pessoas ficavam desconectadas, pois por incrível que pareça estavam mais interessadas em estarem conectadas consigo mesmas e suas reflexões do que com o mundo virtual e os outros. Preferiam contatos pessoais ou imersivos em eventos artísticos. Todos estavam conectados, mas não lutavam por atenção, nem divulgação de produtos, porque a forma de se ganhar dinheiro não era mais a mesma. Mas não entendi bem isso.

"Tanta tecnologia enjoa as pessoas. Só que aprendemos que temos de ser um pouco máquinas para não perdermos o mundo para as máquinas", disse ela. Depois me explicou com mais detalhes a situação, disse que existia uma preocupação das pessoas serem manipuladas e engolidas pela tecnologia, pela inteligência artificial que organizava o mundo com seus algoritmos.

Colhendo informações descobri que as pessoas recebiam estímulos químicos para desapegarem de vícios em tecnologias, incentivos para um comportamento diversificado em termos de atividades e interesses culturais. Inclusive os próprios algoritmos eram criados para incentivar esse comportamento. Uma regra mundial para toda rede que trabalha com inteligência artificial e principalmente que coletava dados de usuários. Cheguei a pensar: a humanidade desse mundo seria realmente constituída de humanos ou uma espécie de androides indecisos? Quem organizava e controlava esses algoritmos?

Dúvidas e mais dúvidas, novidades e mais novidades. Estava embasbacado com tudo. A pergunta mais opressiva que me rondava era se valeria a pena saber a verdade sobre mim. Talvez, o melhor fosse ignorar o que a mente escondia e começar do zero, ser um novo eu. Por enquanto ficaria naquele limbo, aprendendo sobre aquele mundo novo.

Após pouco mais de um mês de tratamento, minha fisioterapeuta percebeu que eu poderia começar a caminhar. Para me trazer mais incentivo e convívio social resolveu que eu deveria comer no restaurante do hospital, onde os pacientes quase recuperados, médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e funcionários almoçavam todos os dias.

Ela, com toda sua simpatia, havia me informado de que eu era o paciente mais famoso do hospital e que todos torciam por minha recuperação. Por isso, anunciaria minha chegada ao refeitório e queria que eu entrasse andando. Meu cérebro certamente estava funcionando mal, pois aceitei passar por esse momento vexatório.

Julia passou pela porta automática do refeitório e com um estalar de dedos acionou o sistema de som. Sua voz então se amplificou.

— Prezados colegas, hoje é um dia importante. Nosso paciente mais famoso está de volta à vida e com movimentos plenos. Senhoras e senhores, nosso ilustre amigo — disse a bela com um sorriso luminoso e apontando para a entrada em que eu estava.

Minha pulsação acelerou ao ouvir aquelas palavras. Tantas pessoas, tanta atenção. Tentei disfarçar minha fragilidade, mas gotas de suor desciam em minha fronte. Respirei fundo, joguei a cabeça para a frente e meu corpo seguiu cambaleando. Cheguei até Julia. Recebi um abraço e apoio para continuar até a mesa que nos esperava.

O calor do corpo dela irradiou conforto, o mundo pareceu ter mais significado. As pessoas se levantaram, soaram as palmas como tambores, com expressões felizes. Agradeci com um sorriso tímido. Por dentro meu corpo vibrava como se tivesse vencido as Olimpíadas.

A comida era deliciosa e as conversas, divertidas. Ria-se muito. Estranhamente a decoração e móveis do refeitório eram rústicas, não havia nada flutuando, tudo como eu considerava normal. Belas mesas e cadeiras de madeira de lei. Havia um saudosismo na decoração de vários ambientes. "É cool ser das antigas," explicou um enfermeiro para mim. No rosto dele uma tatuagem com planetas dançava.

Olhando para todos que conversavam no refeitório percebi que, com muita facilidade, eu conseguia ler seus lábios, mesmo nas maiores distâncias. Uma habilidade que parecia vir de meu passado. Invadi a privacidade das pessoas sem pudor. As conversas eram em boa parte sobre mim. Chamavam-me por um apelido: Oco. Achei engraçado, fazia sentido. Eu sentia um vazio como se estivesse oco. Uma conversa me chamou a atenção. Um homem atlético, de aproximadamente 40 anos, com semblante soturno e uma cicatriz no rosto falava com um jovem de olhar ingênuo e uma pele tão lisa quanto a de um neném.

— Imagina, o Oco aprendeu a andar — disse o jovem.

— Talvez não seja tão oco assim — comentou o homem da cicatriz.

— Ele ainda não anda direito, mas tá bem esperto.

— Como assim? — disse o homem da cicatriz, franzindo as sobrancelhas.

— Você não adoraria ficar abraçado com aquela deusuda daquele jeito?

— Isso é jeito de falar da doutora Julia!? — sorriu — Eu adoraria, mas se eu fosse ele não faria isso com segundas intenções.

— Como é que é?

— Ele ainda não sabe um nanochip da verdade — finalizou o homem, com a expressão séria e voltando seus olhos tristes para mim.

Desviei o olhar e senti a adrenalina percorrer meu corpo.


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