Marshall & Mason - 2920 dias

By AishaFarewell

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Marshall Sullivan era o típico modelo de excelência estudantil: assídua, recordista de notas A+ e extremament... More

SINOPSE
NOTA DA AUTORA
ELA
ELE
O INÍCIO.
1 ▪ 2920 dias antes
O DIVISOR DE ÁGUAS.
O FIM.
3 ▪ 1440 dias antes
O RECOMEÇO
4 ▪ 30 dias antes
(outono de 2004)
5 ▪ 30 dias antes

2 ▪ 1460 dias antes

5K 283 115
By AishaFarewell

NA: Não vou me estender aqui, só passei pra dizer: há, Taylor Swift de novo! Comentem e digam se gostaram, por favor! (Gif da pp da Marshall apenas pra ilustrar)

I've never gone with the wind

Just let it flow
Let it take me where it wants to go
Till you open the door
There's so much more

I've never seen it before
I was trying to fly
But I couldn't find wings
But you came along
And you changed everything

(CRAZIER - TAYLOR SWIFT)

1460 dias atrás...

(Outono de 2004)

Não havia nada de extraordinário naquele dia cinza de outubro. Era apenas mais uma terça-feira no mês, acumulada num calendário de terças-feiras indistinguíveis, somando mais um dia qualquer às centenas de dias opacos que precederam aquele momento. Mas, ao contrário da palheta de cinza que adornava os dias insossos de outrora, a magnitude daquele ínfimo instante era colorida pelo vermelho profundo da beca de formatura de Marshall Sullivan. Seus cabelos acobreados quase se camuflavam ao tecido rubro das vestes, contrastando com as sardas espaçadas do nariz e a pele alva, tão branca e imaculada do bronze do sol. Seu sorriso, porém, ao contrário do tradicional rasgar de lábios, exibia um tremelique suave que ela só podia classificar como um espasmo nos músculos do rosto. Seus nervos afloravam através do batucar incessante dos dedos contra a coxa, do olhar enviesado e apressado pela multidão de companheiros de turma e daquela sensação inquietante que ela simples não conseguia sufocar...

Talvez tenha sido aquilo que mudara tudo; seu nervosismo antinatural.

De repente, aquela terça não cabia num conjunto com outras terças tão similares, frias e apáticas em detrimento daquele dia, como se todo o conceito daquele momento pudesse ser separado de tudo o que ela conhecia e acreditava até então.

Era como se, naquele instante, ela encarasse o passado e enxergasse uma pintura a óleo bastante conservada predominante apenas do vazio do preto e branco. E, então, dando-se conta da singularidade daquele recorte de tempo, tomasse um pincel em mãos e salpicasse um pouco de cor. Vermelho, vermelho, vermelho... Azul, roxo, amarelo... Tantas cores, tantas possibilidades... Uma aquarela de um novo começo.

Aquela terça já não era mais terça. Era cor, vida e assombro. Era o dia de sua formatura. "O tão esperado dia da formatura", acrescentou, com um suspiro baixo que apenas Mason foi capaz de captar, sentado rigorosamente ao seu lado na fila de formandos.

O dia que premeditava o resto de sua vida.

O dia que marcava a sua ingressão no mundo real.

A linha limítrofe entre a vida, do lado de fora da universidade de Dartmouth, e o descanso das paredes de casa, do rabo de saia da mãe ou da tutela de algum professor solidário. Sem o conforto do santuário que era seu dormitório ou o aconchego dos seus livros didáticos. Sem as muletas emocionais para apoiar suas decisões.

Daquele decisivo momento em diante, era apenas ela, sufocada pelas cidades de pedra, pelas pessoas de pedra, pelos problemas de pedra, vivendo seus dias na eterna adaptação ao seu novo estado como cidadã de pedra.

Quando olhava para trás, as lembranças do seu passado pareciam uma pintura muito familiar, mas difícil de alcançar, como se estivessem escondidas num canto recôndito e inacessível da sua mente. Era um local remoto em seu subconsciente que ela evitava visitar, com certa frequência, para não ser atingida pelo sentimento azedo associado com a maioria das recordações, que guardava com amargura num espaço restrito de sua memória. Como tinha aguentado todas as injúrias de uma infância difícil, com o peito de aço, alimentada pela possibilidade de que tudo mudaria quando atingisse a idade certa... Havia sobrevivido ao bullying, à química orgânica, às provas semestrais, a uma vida amorosa falida, alimentada pela promessa de que a vida adulta traria liberdade, apenas para ver-se parada em frente ao abismo que era seu futuro. Sentia como se crescer fosse uma armadilha.

Apesar de ser a aluna laureada, cheia de privilégios acadêmicos, Marshall Sullivan não conseguia dissociar a ideia de alcançar todos os seus objetivos do pavor de ter que caminhar com os próprios pés. Não conseguia afastar a ideia de, cedo ou tarde, teria que dar o pulo, e não sabia se havia alguém para segurá-la no final da queda.

Ao seu lado, munido com um sarcasmo característico e com um descaso único, balançando a beca nas mãos desleixadas, estava Mason Cooper, seu colega de classe e improvável melhor amigo, graduado sem créditos e nenhum título de honra. Ao contrário do receio genuíno da ruiva, M.C. exibia uma avidez eufórica para saborear o leque de oportunidades que o mundo, do outro lado das paredes frias da universidade da Dartmouth, lhe reservava. Ele tinha essa fome selvagem e dionisíaca guardada na curva do seu sorriso desleixado, completamente extasiado pelos locais inusitados que exploraria assim que o dia deitasse no poente, trazendo consigo o mistério da noite em toda sua magnitude. Assim que o sol se espreguiçasse no horizonte, ele sabia que teria aquela resolução de que seria, a partir daquele momento, um homem independente - embora essa sensação só se estendesse em termos espirituais, porque o corpóreo ainda era muito dependente da sua herança gorda. Era apenas mais um garoto no corpo de um homem, com um falho complexo de Peter Pan, armado com um diploma e com grandes expectativas de vida.

Se algum expectador de fora pudesse avaliar a paridade daquele casal de amigos, certamente achariam algum conflito de gênios fortes. Onde Marshall era dedicada, M.C. se limitava a esnobar; enquanto Marshall virava noites estudando para os exames semestrais, M.C. vertia copos durante a noitada; quando um preferia frio, o outro cismava com o calor; enquanto ela sonhava com o emprego ideal na editora ideal, ele apenas dava os ombros e aceitava qualquer coisa que lhe aparecesse; ela era obstinada, ele era conformado. Num mundo onde ele tinha tudo e ela almejava absorver tudo sob as pálpebras angustiadas. Mas, em certas ocasiões, era essa disparidade que os mantinha tão conectados. Não importava quantos defeitos eles acumulavam, um conseguia equilibrar o lado disfuncional do outro. Então, através dos quatro anos que cursaram juntos jornalismo, ambos conseguiram atenuar suas personalidades conflitantes, para um convívio mais adequado, perdendo partes podres no processo. Marshall tornou-se mais sociável, Mason tornou-se mais responsável. Marshall perdeu suas respostas rápidas, enquanto Mason colecionava batalhas ganhas. Apenas Mason conseguia sossegar a pilha de nervos que a ruiva se tornava nas épocas de provas, como apenas Marshall conseguia empurrar o garoto metido para dentro de um livro empoeirado, descascando suas camadas de superficialidade.

Eram essas pequenas coisas que iam compondo cenários de diferença.

Marshall não sabia quando havia se estabelecido aquele acordo mútuo de cumplicidade, mas sentia que, apesar das complicações e diferenças alarmantes, Mason e ela haviam concordado em se encontrarem, de alguma forma, no meio do caminho.

O problema era que, naquele fatídico dia, sua caminhada havia começado e ela estava a léguas de distância de ter qualquer vislumbre de Mason. A coisa que não queria admitir, nem para si mesma, nem submetida à ameaça de uma tortura, era que seu maior medo era se perder durante o percurso.

Sua rota já havia sido traçada. Assim que o sol a cumprimentasse no dia seguinte, tão colorido e diferente quanto aquele próprio, Marshall estaria cruzando a linha do horizonte para seu novo destino. Iria para New York, a cidade que nunca dormia, o berço dos sonhos daqueles que se permitiam aspirar uma vida longínqua e promissora, a agitada empreitada dos visionários. Mas iria sozinha. Mason, por mais que lhe relutasse admitir, havia seus próprios objetivos e só Deus sabia como ela não fazia parte do seu trajeto estreito. Havia se iludido que ambos caminhavam flanqueados, lado a lado, passo após passo, só para perceber que ele já estava dobrando a esquina da vida e que ela havia ficado atrás demais para alcançá-lo.

Mason, por outro lado, não tinha um rumo certo. A verdade era que havia aceitado um emprego de correspondente numa pequena província europeia, mas, se sua inconstância valia de algo, Marshall podia apostar que ouviria notícias suas por outras partes do globo além do endereço que ele lhe havia escrito na agenda. Aposta não era bem a palavra. Era uma sensação aguda no fundo do estômago que cutucava suas entranhas - a mesma que aflorava, no abismo da sua barriga, com cócegas esporádicas, toda vez que previa algo que era simplesmente típico de Mason. Não, não era a sua gastrite atacando. Era apenas aquela confirmação silenciosa e sábia que tinha ao afirmar veementemente que Mason não seria capaz de firmar suas raízes. Aquela certeza objetiva de que a natureza de Mason era fumaça demais para tão cedo se permitir virar sólido pela seriedade da vida adulta.

Ela estava apavorada, enquanto mastigava a beca com os dedos ágeis. Estava ali tão resoluta das suas inseguranças, espiando o sorriso sabichão de Mason com uma inveja isolada, que podia sentir o corpo tremer e se quebrar ao meio. Temia cair no abismo da vida real e ser engolida, enquanto o garoto apenas ficava ali, sentado com insolência, sorrindo para a oradora, não vendo a hora de se jogar.

Mas não era como se Mason estivesse simplesmente alheio ao colapso da melhor amiga. Ele apreciava, com extrema diversão, Marshall mordiscar o canto dos lábios num sinal óbvio de nervosismo, embora, para ele, fosse simplesmente mais engraçado fingir não notar. Ele tentava, com muito esforço, focar-se nas palavras de Amberly, a oradora da turma, mas o sorriso que o traía delatava a sua cara de pau. Apesar de capturar alguns trechos aleatórios do discurso, algo sobre construção de caráter e espírito estudantil, tornava-se muito difícil se concentrar nas sílabas estranhas quando Marshall chamava sua atenção com o batucar inquieto do seu pé.

Ele sabia que ela estava no seu limite.

Principalmente quando o silêncio do recinto a impossibilitava de gritar de frustração e o decoro do momento não permitisse que ela o batesse para descontar a irritação.

Mesmo assim, foi uma surpresa para o garoto quando a menina dos cabelos de fogo inclinou-se em sua direção, no meio do discurso da oradora da turma, a beca fazendo um sombreado nas sardas do nariz, enquanto ela pendia o rosto na altura do seu ouvido:

- Mason, me tira daqui. Me leva para um bar, para uma festa, para qualquer coisa que afaste a ideia de que amanhã eu estarei me mudando para New York sozinha. Eu não consigo ficar aqui ouvindo Amberly citar sinônimos para turma e coletividade. - a garota baixa e diminuta esbravejou com uma ferocidade que não lhe era adequada. Então, totalmente irritada pelo curso rápido que sua vida estava levando, puxou-o com força pela lapela da camisa. - Estou falando sério, Cooper. Mova seu traseiro e me tire daqui antes que eu tenha um derrame! Acho que minha família tem algum histórico cardíaco e esse ritmo frenético do meu coração só pode ser uma premonição de um infarto.

Ele avaliou a profundidade dos olhos acinzentados e desesperados da amiga, desconhecendo aquela garota frágil diante dele. Marsh nunca correria para longe de um lugar onde ela era o centro das atenções, afinal ela própria parecia uma seguidora fiel da meritocracia. Tinha o palco e medalhas como seu Santo Graal. Havia algo muito errado com a garota e ele não sabia identificar o que era, mas sabia que os olhos dela tentavam se comunicar com os seus com um nível de intimidade que ele reconhecia dos dias de convívio. Ela estava implorando. Resoluto, não pensou nas consequências da sua atitude, não ligou se estava deixando para trás familiares e amigos, que haviam vindo prestigiá-lo na sua graduação - embora, convenhamos, não houvesse muita coisa para expelir orgulho -, tampouco pensou que Marshall apenas estava hiperventilando pelo exagero, não se importou se estavam trajando suas becas e que o estardalhaço das suas saídas pudesse provocar uma comoção no âmbito. A única coisa que centrava seus pensamentos e ideias controversas era a maciez das mãos de Marshall contra as suas, conforme corriam em disparada porta afora.

A última lembrança sólida daquele dia, na mente dele, era a forma fluida como Marshall gargalhava ao retirar a bata pesada dos formandos, com um brilho malicioso no olhar.

Algumas horas depois...

Sentia-se culpada. Pela primeira vez na vida, Marshall Sullivan permitiu-se fazer algo fora do seu planejamento, saindo do script e adotando sem pudor a espontaneidade. Mas, sob a redoma das luzes opacas do bar, a liberdade nunca lhe pareceu tão amarga.

Ela estava picotando alguns guardanapos num momento de introspecção fingida, enchendo-se com autocomiseração e retaliação mental, quando Mason brincou dizendo que a liberdade se encaixava bem com seu rosto afilado, dando-lhe uma expressão leve que ela nunca havia exprimido durante todos os anos de contenção e estudos, ironizando a animação precoce da amiga. Marshall limitou-se a ignorá-lo com uma expressão de desgosto aparente, antes de voltar a mutilar os pobres papéis. Focar na própria loucura sempre foi algo que a alienou durante os anos. Ainda assim, enquanto matutava todos os contras a respeito da sua decisão precipitada (porque suas atitudes sempre eram fundamentadas na sua própria impulsividade), batucando contra a madeira polida da bancada do bar, sobressaltou-se com a quantidade de doses que o garçom empilhou na sua frente, assistindo, pelo canto do olho, Mason puxar a manga da camisa para cima, exibindo um sorriso incentivador. Ela ainda tentou abaixar a cabeça e ignorar seu olhar inquisitivo, mas Mason tinha uma aura persuasiva que conseguia penetrar até sua hipoderme, então foi fácil captar, por baixo dos fios ruivos, o questionamento mudo do garoto a respeito da sua decisão. Era como se ele perguntasse, mesmo no segredo do silêncio, até onde ela estava disposta a ir. E, com toda a tensão pelo amanhã, só Deus sabia como ela queria ir até o fim. Por isso, ao invés de retrucar alguma resposta ácida para o sarcasmo do amigo, Marshall apenas encarou um copo de tequila com intensidade, antes de capturar uma dose e se afogar.

Após a primeira dose, sentiu-se revigorada. Com a segunda, perguntou-se por que nunca havia se soltado assim. Assim que acabou a terceira já podia sentir a comichão de êxtase invadi-la por completo. Suas veias pareciam pulsar com eletricidade e seu coração queria atravessar o próprio peito! Mas foi só após a quarta que o arrependimento bateu.

Seus pais haviam vindo de muito longe para parabenizá-la, parecia errado tê-los abandonado por alguns minutos de irreverência juvenil. Seu pai havia feito um esforço extraordinário para presenciá-la e, como um parasita que se alimentava da culpa crescente da filha, insistia em lembrá-la disso durante toda ligação interurbana. Para ele, atravessar o país num grande gesto de reconhecimento paternal parecia o bastante para merecer créditos, principalmente se esse esforço valia o preço de suportar uma viagem extensa com sua ex-mulher tirana a tiracolo. Marshall gostava de pensar que todo esse surto de celebridade que o pai estava promovendo era apenas uma reação tardia a barricada do próprio casamento. Até agora já havia presenciado todas as fases pós-término, incluindo a depressão, a carência, a crise de meia idade e todas as outras etapas exaustivas. Aparentemente, agora ele estava entre alguma síndrome de vaidade e surto de modernização tardia. Ela só rezava que ele passasse direto da fase de libertinagem. Tudo o que ouvira do seu pai nos últimos tempos envolvia alguma aula especializada, flerte de academia e perfis de sites de relacionamento online. A questão era que ele estava levando muito sério essa coisa de solteirice atrasada, a ponto de restringir com bastante precisão seu tempo livre, e perder algumas horas do seu tempo com a antiga usurpadora da sua vida (vulgo sua ex-mulher, como ele constantemente tratava de usar como referência) era o equivalente a ter suas bolas esmagadas por um elefante. Já a sua mãe tinha fobia de avião, mas havia embarcado numa viagem sem garantia com o fuzil que era seu ex-marido. E agora ela os havia abandonado no limite de uma explosão termonuclear de gênios fortes. Marshall agora teria que aguentar um monólogo a respeito do teste de resistência do sistema imunológico da mãe ao ficar presa por quase quatro horas num voo com recirculação de ar e germes. Pelo menos ela havia utilizado suas milhas, senão a garota teria outro bombardeio de reclamações maternas. Sua cabeça já estava fervilhando com os diversos cenários das possíveis broncas que levaria por sua impulsividade, só que Mason, como um especialista formado na arte complexa que é a mente da pequena Sullivan, não a deixou se abater; pelo contrário: empurrou-lhe mais algumas doses, o que ela aceitou de bom grado.

Lá pela sexta dose, Marshall acabou mudando o tópico do seu debate subconsciente de reclamação paterna diretamente para a decepção da vida real, só para chegar a conclusão da estrada vazia e retilínea que havia seguido durante seu percurso. Ela ainda estava sentada rasgando guardanapos, soltando frases desconexas, enquanto Mason jogava dardos do outro lado do saguão, representando algum diálogo de filme antigo a respeito da efemeridade da vida, numa tentativa de criar alguma analogia a respeito do futuro dos dois. Então, já um tanto cambaleante, observando a curvatura das costas do garoto a sua frente, Marshall concluiu que não havia muitas vantagens em tentar se equilibrar na corda bamba da vida. Mesmo que tenha o triunfo de cruzar até o outro lado, nunca teria o privilégio de dizer que sobreviveu a algumas quedas. Nunca se permitiu sair da linha uniforme que é o seu comportamento, nunca se desligou dos problemas à sua volta, nunca permitiu que os sons ao seu redor se dissipassem em insignificância, nunca se deixou levar. Parecia que a vida tinha simplesmente escorrido para fora do seu alcance.

Talvez tenha sido a sétima dose, mas, assim que seus pensamentos caminharam até onde não deveriam ir, Marshall saltou da cadeira e se impulsionou para cima com energia.

- Eu vou ser diferente, Mason! - Marshall gritou por cima do som do bar, ignorando a multidão bêbada ao seu redor, como se aquilo fosse uma declaração óbvia resultante de um breve momento eureka. - Estou cansada de ser sempre tão... - tropeçou nas palavras, gesticulando no ar em busca de alguma realização, até finalmente estalar os dedos com uma clareza bêbada: - Certinha! Até a palavra parece cansativa! O que isso tudo me deu até agora?

- Um emprego maravilhoso numa editora famosa? - Mason perguntou cético, sem se deixar levar pelas loucuras da ruiva, bebericando um pouco da própria cerveja quente enquanto apoiava um dardo entre o polegar e o indicador. Era sempre assim: Marshall resolvia acatar novas resoluções para a vida, mas sempre desistia na primeira dificuldade. Mason não poderia ser culpado por não depositar tanto crédito nas palavras da garota, enquanto ainda tentava mirar no centro do alvo, equilibrando o dardo tropegamente.

- Bem, sim... - ela murchou com seu comentário, mas logo recobrou a perseverança, dando um soco no balcão polido ao seu lado. - Mas nada disso me deu boas lembranças! Se eu tiver filhos e eles me perguntarem sobre a faculdade, o que eu vou dizer? Desculpem, estava muito ocupada sentada, vendo minha vida passar, enquanto estudava para a prova semestral?

Ela fez uma careta, gesticulando para o ar em busca de uma reação do moreno, como se o questionamento fosse, de alguma forma, relevante para o desenrolar da noite, mas Mason apenas deu outro gole e acertou o centro do alvo. Marshall o encarou perplexa e, já meio embriagada, pisou firme em sua direção, tomando os dardos de sua mão, fazendo a cerveja do garoto respingar um pouco sobre sua camisa de algodão nova. Ela ainda o encarou com desafio, antes de lançar um dardo em direção ao alvo. Tudo isso poderia ser considerado um momento de coragem febril, se ela ao menos tivesse coordenação motora... Mas, felizmente, Mason ainda conseguiu desviar de alguns dados desavisados, fitando a ruiva com sobressalto, antes de soltar uma risada e colocar a cerveja de lado.

- Certo... Suponhamos que você resolva adotar um novo estilo radical de vida. - Mason debochou, voltando sua atenção para Marshall com as sobrancelhas erguidas, tomando o restante dos dardos da sua mão. - Vai ser que nem sua meta de ano novo?

Marshall olhou com raiva para ele e ele soube ligeiramente que atingiu seu ponto fraco. No ano novo, a garota havia feito uma promessa de que se converteria e viraria vegana, tomando o veganismo da sua colega de dormitório como inspiração. Mason é a prova sólida que a dieta de folhas durou cerca de cinco dias - longos, cansativos e impacientes dias nos quais ele teve que suportar suas mudanças repentinas de humor devido ao apetite lamurioso -, quando a ruiva cansou de viver como um coelho e se empanzinou com bacon e cheddar, num ataque feroz e esfomeado, como se fizesse séculos que não havia colocado um pedaço de carne na boca. O que, de fato, para o relógio biológico da garota, fazia.

- Aquilo não conta, Mason. Venha, me dê sua caneta. - ela pediu, recebendo a contragosto, com o protesto óbvio do garoto, a caneta esferográfica que ele carregava no bolso da calça como um amuleto indissociável. Puxou um guardanapo qualquer e começou a rabiscar algumas palavras na folha, deixando a mente divagar nas possibilidades. - Uma tatuagem. Tatuagem é muito importante. Qualquer adolescente eufórico realiza uma como um símbolo de independência.

- Você tem medo de agulhas, Marsh. - Mason relembrou, rindo às suas custas. Então, com um interesse renovado, aproximou-se da bancada e espiou o rascunho da garota, apoiando os cotovelos na mesa.

- Detalhes, Cooper, detalhes! - ela o esnobou com a mão destra. - O que mais? Quero ir para um spring break adequado, apesar de já ter passado da validade para essas coisas. Ir pra Ibiza e mostrar os peitos, talvez?

Não precisou nem verbalizar a pergunta para compreender a resposta premeditada para aquela atitude ortodoxa de Marshall ao se aventurar num pedaço de papel e caneta. "Uma lista! Óbvio que ela não controlaria a coceira dos próprios dedos por muito tempo", concluiu mentalmente. Mason já estava familiarizado com a mania quase religiosa da amiga de criar listas com resoluções que ficam perdidas pelo tempo, então seu suspiro sherloquiano acabou se perdendo na concentração da ruiva. Sabia, no fundo, que planejar cada tropeço extraía um pouco da essência de irreverência que Marshall buscava, mas seu protesto foi esmorecendo ao fitar a face concentrada da melhor amiga, perdendo-se no contorno dos seus traços absortos, até ser substituído por um fantasma de um sorriso.

- Ter uma experiência lésbica! - Mason palpitou com um sorriso malicioso, ainda encarando Marshall com um olhar deslumbrado, recebendo uma cara de nojo em resposta. - O que? As garotas experimentam na faculdade!

- Eu não vou realizar as SUAS fantasias, Cooper. São as minhas. - ela bateu com a caneta na cara dele. - Hum... Dormir casualmente com estranhos!

Ele tentou ignorar a pontada de incômodo que cutucou o fundo do seu estômago, mas a entonação determinada de Marshall tratou de elevar seu grau de tortura em, pelo menos, duas oitavas. Ela, ainda mergulhada nas próprias metas de papel, não percebeu como Mason coçou o nariz irritado, puxando a manga da camisa num gesto nervoso.

- O que? Você não faz isso? - Mason a encarou incrédulo com ironia, mas depois reconheceu com um gesto afirmativo: - Então é verdade, você é assexuada. - ele riu. Uma risada forçada e nasalada que Marshall estava alheia demais para perceber. - Afinal, Marsh, o que você pretende fazer de tão inusitado assim? Esquecer-se de pagar as contas? Usar suas calcinhas etiquetadas em dias diferentes? Doar um rim?

Ela não o respondeu de imediato, apenas limitou-se a rabiscar mais algumas metas para o futuro em aberto à sua espera, alternando sua atenção entre o guardanapo e as doses.

- Eu posso ser espontânea, Mason. - Marshall retorquiu por fim, sentindo-se ofendida. - Bom, é claro que não dá para girar uma chavinha e dizer "uau, acho que agora vou ser espontânea"...

Mason ergueu as sobrancelhas com diversão, tocando o encosto da cadeira com uma risada presa na garganta. Marshall, pela primeira vez, virou o tronco em sua direção e sustentou o desafio com o olhar firme, o que fez Mason gargalhar e erguer o indicador em haste num sinal de provocação. Ela apertou os lábios, mordendo o interior da bochecha, quando o garoto puxou a perna da cadeira em sua direção, fazendo Marshall saltar com o solavanco.

- Tudo bem, senhorita radical. - Mason estalou a língua, incentivando o momento. Marshall inquietou-se na cadeira, virando totalmente em sua direção. - Vamos imaginar um cenário hipotético. Está chovendo, você está sem guarda-chuva. Seu corpo está todo ensopado. Você corre para dentro de casa em desespero, mas... - ele ergueu o dedo. - Você não tira os sapatos!

- O que? Mas e o chão limpo?

- Você não liga para isso. - ele balançou o corpo, gesticulando com os braços abertos. - Você é espontânea! - então, com muito descaso, Mason recostou-se na cadeira. - No outro dia tem uma prova muito importante. Você tem todo um cronograma montado e distrações não são permitidas. Então, eu te ligo e aviso de uma festa daqui a três horas. O que você me diz?

- Eu rio da sua cara e desejo uma boa sorte na dependência do próximo semestre.

- ERRADO! - Mason gritou, estapeando a testa da garota com suavidade. - Novo cenário. Nós estamos passeando pelo shopping. Você tomou muito refrigerante. Só há um banheiro público nas proximidades. O que você faz? Você se arrisca numa batalha contra os germes?

- Mason, isso é ridículo. - Marshall rolou os olhos, cansada. - Nenhuma dessas situações são exemplos de espontaneidade. Acho que, pelo menos duas, podem te fazer contrair uma doença venérea.

Mason apenas riu, erguendo a mão num pedido de silêncio.

- Eu me ofereço para arrumar seu quarto. - ele recitou, soando lisonjeiro. - Mas troco a posição dos seus móveis. O que você diz?

Marshall apertou os lábios com força, tentando se concentrar, o que acabou deixando Mason preocupado com a ardência vermelha de suas bochechas. Com um sopro, a garota desfez sua expressão e sorriu angelical.

- Eu te digo que sua decoração tem um péssimo feng shui. - Marshall rebateu com exaustão. Então, cautelosamente, posicionou-se contra o descanso da cadeira e endireitou um olhar enviesado na direção do garoto. - E se, quando você estivesse dormindo, eu abrisse todas as portas do seu quarto?

Mason quase pareceu ofendido.

- Por que você faria isso? - ele questionou com ultraje, o que fez a ruiva abaixar a cabeça para rir.

- Dois podem jogar esse jogo, Cooper. - ela ergueu a sobrancelha direita de um jeito bastante intimidante, fazendo Mason engasgar com a cerveja quente.

- Eu acho que vou voltar para a sinuca. - Mason apontou a boca da cerveja para a garota a sua frente, erguendo-se. - Estou sentindo muita hostilidade por aqui. - comentou, tentando esconder um sorriso frouxo nos lábios. - Cuidado com essa caneta. Ninguém quer que você se acidente por ser tão radical.

Marshall apenas deu de ombros, ignorando o sarcasmo escancarado do amigo. Ela o observou virar de costas e se encaminhar até o outro lado do cômodo, acompanhando a oscilação da camisa de linho contra suas costas, perdendo-se, por um momento, na nostalgia da situação. Enquanto assistia de escanteio a energia ofuscante de Mason, permitiu-se abaixar a cabeça para o papel a sua frente, desligando-se do mundo ao seu redor, abafando a cacofonia de sons e emoções para fora do seu alcance.

Meia hora depois, já estava aérea quando guardou o mesmo papel - já preenchido - no bolso, procurando Mason pelo mar de gente, com os olhos espremidos de uma forma como se, caso ela se esforçasse muito, sua visão pudesse captar com mais rapidez o destaque dos cabelos amendoados na multidão preta e branca. Mason ainda estava inclinado contra um jogo de sinuca, rebatendo algumas bolas, mas seu estado estava tão lamentável que ele acabou errando a tacada. Parecia meio grogue, o que a fez se aproximar com preocupação, descartando a cerveja recém-pedida. Marshall contornou a multidão do bar e se aproximou da mesa de sinuca, encarando Mason com desconfiança. O garoto parecia anestesiado, com um sorriso mole pendendo no canto dos lábios, enquanto a encarava com uma espécie de dormência fascinada.

- Ei, Coop. - Marshall sorriu.

- Ei, Marsh. - Mason cumprimentou de volta. - Quer sair daqui?

Ela queria. Era tudo o que ela mais queria, mas, naquele instante em que seu coração martelou pela ambiguidade do momento, não se permitiu verbalizar a própria vontade. Enquanto Mason a observava assim, ligeiramente ébrio naquela atmosfera sufocante, sustentando a intensidade do seu olhar com uma sabedoria inata, ela soube que havia outras formas de comunicação muito mais transcendentais. E ela tinha certeza de que, apesar do desfoque suave no verde incessante dos seus olhos, Mason compreendeu sua resposta. Então, com um tímido crispar de lábios em confirmação, aproximou-se dele, apoiando-o pelas axilas para caminharem flanqueados até a saída.

Caminharam em silêncio até a calçada do lado de fora, próximos ao ponto de táxi, inebriados pela situação e pela companhia um do outro, sem saber com precisão se a embriaguez que os acometia era fruto do álcool ou dos próprios sentimentos conflituosos.

Mason ainda ditava o caminho, quando estendeu o indicador e chamou o táxi. Marshall apenas ficou em silêncio, recostando a cabeça nos ombros do garoto, fechando os olhos e dissipando todas suas interrogações com um único suspiro. Só por aquele ínfimo instante, permitiu-se relaxar. Naquele momento, não havia nenhum sinal daquela Marshall controladora e mandona que ela tentava, com muito afinco, controlar sob a superfície. Mason, ainda ocupado dando instruções, achou tudo silenciosamente engraçado. Mas ele ainda conseguia vislumbrar a fera por baixo da carcaça calma. Quando o táxi estacionou e o garoto estendeu o dinheiro para pagar, Marshall não exibiu nenhum protesto ou discurso feminista sobre divisão igualitária de finanças. Quando ambos saíram para abraçar a noite do exterior e Mason a guiou pela mão, Marshall não fez nenhum questionamento acusatório. Enquanto caminhava no seu encalço, Marshall pôde reconhecer com facilidade as formas da construção ao seu redor, permitindo-se um breve momento para absorver a harmonia de cores do edifício, apertando levemente a mão de Mason em alerta. O Hood Museum of Art era, de longe, seu lugar favorito de toda Hanover. Sua arquitetura neoclássica, o conjunto de contorno e traços... Tudo despertava seu interesse. Quando era caloura e recém-chegada na cidade, o museu havia sido sua primeira parada turística. E, desde então, havia se tornado seu espaço privado. Seu lugar favorito para fugir das loucuras febris do campus. Era ali onde se refugiava após uma prova estressante, uma situação dramática ou um surto emocional, era ali onde Mason a encontrava, recostada contra uma árvore velha, sentada na grama verdejante. Um tanto desconfiada com a escolha do lugar, a pequena ruiva virou-se para o amigo e o cutucou na costela como um questionamento mudo.

- Não há melhor forma de passar seu último dia em Dartmouth... - Mason começou a explicar, com as sílabas arrastadas, atravessando a grama fresca com agilidade. - Do que estar no seu lugar favorito com a sua pessoa favorita.

- Quanta modéstia, Cooper. - Marshall debochou. - Quem disse que você está no topo do meu ranking?

- O que? - Mason fingiu descrença. - Eu estava me referindo àquela estátua estranha que você idolatra da aquisição africana da coleção. Mas obrigado por me levar em consideração.

Marshall soltou uma risada sonora, empurrando o garoto pelos ombros com leveza, o que provocou nos lábios de Mason uma reação muito controversa. Aos poucos, o sorriso repuxado surgiu com cumplicidade, sustentando o brilho nos olhos verdes. Mason tocou seu ombro e a empurrou de volta, nunca soltando sua mão. Enquanto caminhavam, lado a lado, a brisa suave da noite os tomava como abrigo. Mason a levou para árvore favorita dela, aquela que ela tomava como morada nos dias angustiantes, e, aproveitando a serenidade do local como descanso, ambos sentaram-se no amparo das raízes grossas, tomando o lugar como esconderijo. Ali, encolheram-se, espremeram-se e se apertaram de uma forma que pudessem se reduzir a aquele segundo de paz, àquele último segundo de sossego e familiaridade.

- O que você espera do amanhã? - Mason murmurou baixinho, olhando para a lua. Estava tão grande e laranja que tomou seu fôlego por escassos minutos, fazendo-o apreciar o recorte minguante com adoração.

Enquanto ele perdia-se na lua, a ruiva ao seu lado perdia-se nos traços bem delineados do perfil do garoto, perpassando sua atenção pelo nariz fino, pelas sardas salpicadas, o sorriso estreito. Marshall fechou os olhos, tentando memorizar a cena com fidelidade, e repassou a pergunta mentalmente.

- Não sei. - sussurrou, por fim, com um sopro gelado que atingiu as bochechas de Mason, fazendo-o desviar o olhar do céu para fitá-la. - Eu sei o que não quero esperar.

Mason pousou sua atenção nela e, prestigiando-a com uma intensidade arrebatadora, deu seu típico sorriso lateral para o comentário evasivo da amiga.

- E o que você não quer esperar do amanhã, Sullivan?

- Eu não quero acordar amanhã e deixar tudo isso para trás. - ela comentou com timidez, virando o rosto para longe do olhar perscrutador de Mason. - Eu não quero tropeçar de cara no mundo real. Eu não quero viver uma vida cinza. - Marshall virou o rosto para ele, os olhos tão carregados que pareciam o início de uma tempestade ruidosa, e, com um sopro de um sorriso, inclinou a cabeça para o lado. - Deixe-me colocar em termos que você vá entender... - ela ponderou, cutucando a ponta do queixo com o indicador, tentando visualizar alguma referência cinematográfica que capturasse seu pensamento. Por fim, com um sorriso satisfeito, adicionou: - Eu não quero acordar um dia, de manhã, e pensar que nem John Hughes em O Clube dos Cinco.

Mason assoprou em concordância, mantendo o sorriso estático nos lábios, entendendo a referência como um cinéfilo enrustido. Marshall ergueu-se com impulso e, limpando a sujeira da calça, caminhou pela grama úmida, girando o corpo com os braços abertos.

- Porque, quando você cresce, seu coração não morre₁. - ela completou seu raciocínio, balançando em oposição à dança do vento, girando o corpo e gritando a plenos pulmões.

Mason a encarou apreciativamente, rindo fluidamente do efêmero rompante de lucidez da garota, assistindo seu corpo se dissipar num borrão rotativo, misturando-se à noite como uma labareda prestes a se tornar um incêndio. Assim, encarando-a da plateia, resolveu se erguer sobre os próprios pés e adotar um pouco de loucura para as próximas horas que os separavam da realidade. Sua cabeça rodou pelo salto fugaz, mas ele manteve-se ereto ao piscar a tontura para longe. Ele saltou e aparou o próprio corpo com as duas mãos, inclinando-se para dar uma estrelinha, rindo e movendo-se no mesmo ritmo da risada de Marshall. Ele continuou os movimentos progressivamente, dando estrelinhas até parar em frente da garota, sentindo sua visão se distorcer e desfocar por causa do álcool. Quando se ergueu verticalmente e soltou um suspiro cansado, tonto pelo exercício, pôde perceber Marshall o encarando com carinho, com o contorno delineado do seu corpo irregular como uma nódoa de tinta.

- Eles podem tirar nossas vidas, mas nunca poderão tirar nossa liberdade!₂ - Mason gritou para a noite amiga, soltando alguma frase icônica de um dos seus filmes preferidos, erguendo os braços da mesma forma da garota, que riu da sua atitude, esticando sua mão para tocar a dele.

Marshall estava toda descabelada, vítima da ação da brisa antagônica, os fios acobreados dispersos em direções distintas. Sua bochecha estava um pouco amassada, mas seu sorriso rasgado dominava sua face. Enquanto a observava com afinco, Mason percebeu que ela parecia, naquele momento, um chuvoso amanhecer. Como se o presságio da própria desilusão fosse finalmente obliterado pelo sorriso dela. Encará-la, naquele momento, era como tomar um grande fôlego após uma vida inteira sem respirar. E Mason sabia por quanto tempo estava lutando contra os próprios pulmões.

E contra seu coração.

De repente, sua cabeça girou e tudo o que ele pôde ver foi um caleidoscópio do rosto de Marshall, com o sorriso inocente perpetuado nos lábios rosados. Não soube se sua vertigem devia-se ao teor elevado de álcool que caminhava pela sua corrente sanguínea, ou se era apenas a proximidade arrebatadora da garota que o tirava dos eixos.

Eles ficaram assim, parados imersos num silêncio tão familiar e tangível, que parecia que um fio invisível os enlaçava para mais perto um do outro, encarando a abóboda estrelada que os cobria como um manto. O álcool nublava um pouco seus pensamentos, tirando a clareza das suas ideias, mas conseguia acender um ponto frio e esquecido dentro dos seus corações. Um ponto que eles haviam enterrado bem no fundo dos seus peitos. Aquela saudade gritante e inflamada que se sacudia como um tornado impiedoso. Aquele momento tinha a sinfonia de fogos de artifícios explodindo no céu da boca de cada um.

Marshall sentia como se aquele silêncio fosse uma armadilha prestes a esmagá-la crucialmente. Enquanto ficava ali, fingindo encarar o nada, mas convertendo sua atenção para o maxilar proeminente de Mason e suas íris esverdeadas petrificadas, sentiu seu coração dar uma soterrada.

- Eu vou sentir sua falta, Marsh. - Mason murmurou para o ambiente cortante, com os olhos ainda fixos num ponto qualquer próximo a sua bochecha corada, evitando ao máximo encará-la. Sabia que, assim que seus olhos cruzassem o campo de visão dos olhos acinzentados dela, seria derrubado com uma força esmagadora.

Marshall piscou para a iluminação fraca do poste, absorvendo suas palavras. Sentiu seu coração se afundar mais uma vez. Sentia-se como uma bagunça simetricamente orquestrada.

- Eu também. - sua voz saiu meio rouca e abafada, o que obrigou o garoto a encará-la de volta. A colisão dos olhares foi tão forte que ficaram perdidos naquele momento por alguns segundos, vítimas da magnitude de suas emoções. Mason não sabia o que estava fazendo, mas sentia uma força sobrenatural impeli-lo naquela direção, atraído pelo crispar dos lábios finos da ruiva, obrigando-o a dar mais um passo.

Mais um passo.

E mais outro passo.

- Vou sentir muita falta.

Ela pronunciou enquanto entreabria os lábios, ansiando por um contato imaginário que pensou que só existiria nos seus desejos mais profanos, mas Mason parecia disposto a acatar sua necessidade por atrito.

Ele não sabia o que estava fazendo exatamente, mas já havia desejado aquilo por tanto tempo; sentia como se estivesse profanando sua própria vontade caso esmagasse aquela oportunidade, caso deixasse aquela sensação escapar sem ter a chance de agarrá-la, como o sopro de uma chama esmorecida.

Eles estavam juntos sob o conforto da luz do luar. Os olhos conectados, a linguagem corporal delatando desejo e saudade.

Então, como num acordo com sua própria consciência, ele puxou-a para mais perto, os dedos trêmulos, sob seu toque ansioso e imaturo, tateando o terreno jamais explorado das costas dela.

Eles tinham que aproveitar aquele tempo para falar o que queriam, para tecerem em carícias seus desejos, para soprarem nos lábios as confissões nunca ditas. Era como um sonho com imagens sequenciadas sob o conforto de pálpebras cerradas, como numa cena de um filme que todo coração partido conhecia: sabiam que tinham data de validade. Enquanto suspiravam com os lábios tão próximos, mas tão distantes, sabiam que não lhes era prometido o amanhã.

Aquele contato rápido de lábios famintos, onde suas bocas buscavam uma pela outra com uma urgência comovente, despertou todos os sentimentos que eles teimaram em ocultar durante os anos, as palavras não ditas, os olhares cúmplices, os beijos nunca dados.

Marshall resfolegou por baixo do seu toque, lançando-se contra ele com uma espécie de desespero renovado, apertando os ombros de Mason com tanta força que pensou que poderia rasgá-lo ao meio. Mason a segurou pela nuca, os dedos perpassando a pele nua em círculos contínuos, alisando os fios de cobre, tocando-a com tanta reverência que Marshall pareceu desabrochar em seus braços. Sem perceberem, guiados pela paixão momentânea, dissertavam através de um único beijo toda a sinceridade que guardavam em seus corações.

E bem ali, no pé da árvore favorita de Marshall, cobertos pela luz bruxuleante do poste, acabaram se apaixonando mais uma vez.

Até que tudo se rompeu quando Mason caiu para trás, meio tonto, e, com o mundo rodando ao seu redor com a visão turva, bateu com a cabeça na raiz grossa da árvore.

Marshall correu em seu socorro, mas, antes mesmo que ela pudesse inclinar-se em sua direção, ele já estava desmaiado.

Mais tarde, na sala de espera do pronto socorro, Marshall se lembraria daquele instante eternamente como se assistisse a uma janela se quebrar.

Marshall quis gritar em frustração, mas era óbvio que alguma coisa como aquela aconteceria com ela, o ser mais azarento da face da Terra. Porque, logo após ela encaminhá-lo ao hospital mais próximo, acabou descobrindo que Mason não só desmaiou durante a plena realização cósmica do quanto os dois se gostavam, como o médico o diagnosticou com um caso leve de concussão.

Mas é claro, pensou, não poderia ser diferente.

Mason era idiota a ponto de estragar algo que não havia como ser estragado.

Ela não poderia degustar de um momento íntimo com o cara que ela, diga-se de passagem, é apaixonada sabe-se lá há quanto tempo, sem que o universo resolvesse vomitar na cara dela. Mas, totalmente entorpecida por tudo aquilo, com a divagação de uma jovem garota iludida, ela resolveu se apegar ao beijo com um aperto ferrenho, ignorando todos os pormenores. A realidade só a atingiu como um balde de água fria quando, horas após fazer vigília em frente ao seu leito no hospital, Mason abriu os olhos pela primeira vez. Suas íris verdes mostravam alguma dificuldade de focalizar, procurando algum ponto nítido no seu campo de visão, mas seus olhos permaneciam sendo atraídos pelo contorno da garota ruiva à sua frente.

- Onde estamos, Mar? - ele questionou distraidamente, não se atendo aos detalhes. Marshall sentiu seu peito vibrar com sua voz rouca e profunda, tendo muita dificuldade para calar a vontade aguda de beijá-lo ali mesmo. Mason estava meio pálido, mas suas maçãs pareciam recobrar a cor à medida que o soro que recebia conseguia resgatar suas forças do fundo da gaveta. Marshall pensou que poderia fazer uma piada irreverente, como ele teria sido capaz de fazer se os papéis fossem invertidos, soltando alguma declaração sarcástica sobre a obviedade da situação, mas, então, com os olhos perdidos a encarando com tanta intensidade, ele falou a única frase que podia diluir todas as suas expectativas do seu futuro romântico com um único baque: - O que foi que aconteceu?

- Você não lembra? - havia mágoa e acusação no seu tom, mas Mason estava muito distante para notar. Era apenas uma brisa de pergunta, tão suave e baixa, tão munida de sentimentos, mas tão forte e poderosa que poderia tê-lo derrubado em outras circunstâncias.

Marshall segurou com força no apoio do leito do hospital, sentindo os nós dos dedos se esbranquiçaram com o aperto; era aquilo ou tentar sustentar as fissuras do seu coração rachado.

- Me diga que eu não dancei pelado de novo. - ele franziu o cenho, lamentando os possíveis cenários, movendo o braço que recebia soro com certa dificuldade. - Eu fiz algo muito absurdo?

Marshall piscou certa de que sentia o chão aos seus pés se liquefazer como uma areia movediça, convicta de que as paredes ao seu redor pareciam querer comprimi-la num aperto de cobra, mas se forçou a limpar a garganta e procurar as palavras.

- Não, nada absurdo. Absolutamente nada absurdo. O oposto de absurdo. - Marshall adicionou rapidamente, temendo ter agarrado as sílabas com tanta avidez que não conseguiu controlar as frases seguintes. - Na verdade, foi algo totalmente lógico e coerente, se você for avaliar a imagem completa... Tem certeza que não lembra?

"Por favor, lembre", seus olhos imploravam, vasculhando a expressão do rapaz com afinco, mas sempre se debatendo contra uma parede de completo nada. Marshall afundou o vislumbre da sua própria fragilidade para longe do alcance de Mason, evitando encarar seus olhos vítreos de confusão.

Ele não fazia ideia do que havia acontecido. Ela sabia. Ela simplesmente sabia. Ela sabia, ela sabia...

Seu queixo tremia suavemente, a única pista da devastação das suas convicções, mas Marshall pressionou os lábios com um ganido de dor física.

- Você vai me dizer ou não? Ah, Deus, foi algo horrível. - Mason amargou a possibilidade, esfregando a mão livre no junco da testa.

- Não foi nada. Você não fez nada, Mason. - Marshall respondeu com um eco vazio, amaldiçoando-se pela mentira, amaldiçoando-se pelo vacilo no tom uniforme da sua voz ao pronunciar seu nome.

Ficou ali, apertando o apoio da cama com força, repetindo que não havia sido nada, sussurrando desmesuradamente palavras vagas de conforto. Não havia sido nada, nada, nada, nada...

Mas toda vez que a palavra escapava dos seus lábios, sentia sua alma rachar e seu coração sangrar.

Mas o que poderia fazer? O que poderia fazer? O que ela poderia fazer de diferente?

Suas mãos fraquejaram do aperto enquanto sua mente martelava perguntas para as quais ela jamais poderia colecionar respostas coerentes. Sem saber, seus pés a carregaram para longe de onde Mason descansava, levando-a para longe, tão longe, tão mais longe do que ela poderia desejar, longe da visão de suas feições tranquilas, longe das suas perguntas, longe do nada que era obrigada a declarar. Enquanto tentava controlar a respiração desregular no corredor movimentado do pronto socorro, Marshall soube que seu coração havia ficado naquele leito de hospital.

Sua garganta parecia estar queimando com todas as palavras que rasgavam seu caminho até a superfície, mas, com o orgulho de uma garota de coração partido, Marshall calou-se e engoliu suas vontades e desejos.

Por New York, calou-se. Por Mason e seus sonhos, calou-se. Por esse desvio do destino, calou-se. Pela inconstância da reação de Mason com o beijo, calou-se. Pelo medo de atirar-se no escuro, calou-se.

Engoliu a informação, sem saber que apenas aumentava o espaço da lacuna que agora habitava seu coração e o dele. Sem saber que estava os condenando a viverem os dias sem poderem nomear a sensação de vazio que os preencheria, enquanto tentavam mergulhar de formas distintas no abismo que era o mundo real.

REFERÊNCIAS:

1. Frase original: "Quando crescemos nosso coração morre".

2. Frase de William Wallace em Coração Valente.

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