Só podia ser uma piada. Foi o que Ridley pensou. Mas a Ninfo, ou Pesadelo,
ou quem quer que fosse, não estava brincando. Segundo a Miss Templo do
Piercing, não só a vida de Ridley corria perigo, como seu quarto era a
cozinha.
O chão da cozinha.
O segundo era o pior dos problemas, até onde interessava a Ridley. Ela
estava acostumada a ameaças de morte, mas dormir num colchão simples
sobre um chão sujo de linóleo era novidade. Ridley desconfiou que as novas
colegas de apartamento estavam tentando puni-la e, se fosse o caso, eram
uma dupla de gênias sádicas. Ela jamais dormira no chão de nada, em lugar
algum, em toda sua vida.
Mesmo quando o próprio Abraham Ravenwood a manteve em uma jaula
dourada, literalmente, ela tinha um divã como cama.
Só para constar, Ridley não sabia ao certo se já estivera em uma cozinha.
Não era totalmente culpa dela. Em Ravenwood, a Cozinha não aceitaria esse
tipo de coisa.
Quando Link voltou do Lata-Velha com as três malas, uma caixa grande
cinza e sua velha bolsa de lona do time de basquete do Stonewall Jackson,
Rid estava deitada no colchão, totalmente vestida.
— Não existe a menor possibilidade de eu dormir nisto — declarou ela.
Link riu.
— Um colchão na cozinha. Tem certeza de que não quer dormir no Lata-
Velha?
— Que tal um táxi a caminho de um hotel em Manhattan? — Ridley não
estava brincando. O aviso de Necro a abalara.
Quem está lançando um Vindicabo contra mim? Talvez a mesma pessoa
que estava me vigiando do lado de fora do apartamento? Se eu não tivesse
imaginado aquilo tudo?
Ridley colocou o braço sobre os olhos, bloqueando todo mundo ao redor,
como se pudesse fazer tudo desaparecer.
Será que alguma coisa é verdade ou a Necromante só está brincando
comigo?
Link passou o braço em volta dela.
— Vamos. Onde está seu espírito de aventura, docinho?
— Não me chame de docinho. — Ridley o afastou com o ombro. — E
para você é fácil falar. Você sequer dorme.
— Gostaria de conseguir. Este dia foi longo demais. — Link colocou as
malas e a caixa que trouxe do carro na frente dela. A cozinha era tão
pequena que não tinha muito espaço para nada além do colchão.
Ele suspirou, caindo na espuma, ao lado dela. Em seguida, empurrou a
caixa cinza na direção de Rid.
— O que é isso, um presente? — Ridley detestava surpresas. Ela sempre
imaginava o pior.
Uma cabeça na caixa. Uma bomba. A mãe de Link, em miniatura.
— Acho que eu deveria ter contado — confessou ele timidamente. —
Mas eu não sabia que você vinha, lembra?
Rid alcançou a tampa e a empurrou para o lado devagar, como se
estivesse com medo de que, não importando o que estivesse na caixa, fosse
mordê-la.
No fim das contas, não errou por muito.
Lucille Ball a encarou, encolhida em um velho tapete de banheiro cor-derosa,
parecendo ter acabado de acordar de uma soneca felina de 24 horas.
— Está brincando? Você trouxe a gata?
Lucille uivou, igualmente ofendida.
— Tia Mercy disse que ela nunca visitou o norte. Tia Grace falou que
Lucille Ball ficaria melhor atravessando a Linha Mason-Dixon no céu. Então
Ethan prometeu pedir, e eu prometi que pensaria no assunto, e, quando dei
por mim...
— Seu grande plano era fugir para Nova York para se tornar um astro do
rock com a gata da tia-avó de seu melhor amigo como parceira? — Ridley
olhou de Lucille Ball para Link.
— Achei que pudesse ser legal, sabe, um rosto familiar.
— O rosto de uma gata?
Lucille Ball uivou novamente. Link tentou fazê-la se calar, mas Lucille o
mordeu na mão.
— Morda a ela, não a mim! Não sou eu que odeia você. — Link tentou
fechar a tampa novamente, mas Lucille saltou e foi para o colchão.
Ele a segurou, mas ela fugiu de suas mãos, desaparecendo pela
rachadura na porta.
— Espero que as janelas estejam fechadas. Caso contrário, terei de
contar para as Irmãs que perdi Lucille antes mesmo de ela ter a chance de
ver a Estátua da Liberdade.
— Não se preocupe. — suspirou Ridley. — Ninguém tem sorte suficiente
para se livrar dessa gata.
— É? — Ele soou esperançoso.
— Acredite em mim, eu tentei. — Rid quis parecer furiosa, mas começou
a rir; em seguida, Link gargalhou, e logo os dois estavam rindo tanto que
mal conseguiam respirar.
Ridley se jogou novamente no colchão, e Link se abaixou para perto dela.
Ficaram deitados ali, olhando para o teto.
— Quer ficar abraçada para se aquecer? Sabe, calor humano? — Link
esfregou o braço de Rid.
— Estou com calor. — Ridley afastou o braço dele. Ver Lucille a fez se
sentir melhor. Mas a gata tinha desaparecido e, com ela, seu bom humor.
— Queimaduras de Terceiro Grau. Não dá para discutir com isso — falou
Link, sorrindo para ela.
— Está tarde. Quero dormir. — Ela escapou do abraço de Link.
— O que foi que Necro disse quando viemos ver o quarto que a irritou
tanto? — perguntou ele.
— Nada.
— Pode me contar.
Ah, certo.
Alguns minutos depois, Link desistiu. Ele desapareceu na sala de ensaio,
e Ridley ficou olhando para o teto, imaginando se aquele era o verdadeiro
castigo por aquela noite no Sofrimento.
Ela ouviu a voz de Link e, em seguida, a risada de uma menina.
Supertramp. De novo.
Momentos depois, o baixo começou a vibrar, seguido pela bateria. Logo a
multidão cantava.
Ridley puxou o travesseiro para cima da cabeça.
— Li-ink Floyd. Li-ink Floyd. Li-ink Floyd. — Não dava para ignorar. Rid
virou de lado.
Será que essa noite tem como melhorar?
Ela não se deu ao trabalho de tirar os sapatos. Queria estar pronta para
fugir ao primeiro sinal de confusão (já era difícil bastante correr com salto
dez). Além disso, o colchão cheirava a piscina velha. Não era exatamente o
tipo de lugar onde alguém quereria se despir.
Ridley caiu num sono inquieto, sozinha num colchão duro, numa cidade
cheia de ameaças e mentiras, enquanto seu namorado estava com outra
garota.
Apenas o brilho verde fraco em seu Anel de Ligação iluminava o
caminho.
O vento salgado em seu rosto era agradável, fazia cócegas como beijos.
— A brisa está soprando o sol para longe, Reece. — Quando ela olhou para
cima, viu pontos solares e dois pequenos pontos escuros no horizonte.
Esfregou os olhos.
Continuavam ali, depois das palmeiras, por toda a areia.
— Veja. O que é aquilo? — Ridley se sentou, ainda chupando os dois cubos
de açúcar que tinha roubado da bandeja de chá da vovó. Nos 14 verões que
ela, os irmãos e Lena passaram visitando a avó, nunca fora pega.
— Quer dizer "quem"? — perguntou sua irmã mais velha, Reece, enquanto
amarrava o biquíni com mais força que o normal. Porque agora podiam ver
que os pontos escuros estavam se movendo ou, mais precisamente, andando.
Eram duas pessoas — duas figuras escuras seguindo a costa da Bathsheba
Beach.
— Tudo bem. Quem são? — Os olhos de Rid se cerraram. Continuou
sugando, mas agora os cubos estavam tão pequenos que mal conseguia sentir
o doce.
— Criaturas da Costa perdidas, provavelmente. Por que não pergunta a
eles? — Criaturas da Costa era o termo inventado por vovó para todos os
curiosos que vagavam de um lado a outro na extensão de areia em frente à
casa.
Um dos pontos escuros estava indo diretamente para a baía azul.
— Estamos a leste demais para nadar. Eles vão se afogar com a corrente.
Alguém deveria avisar.
— Mortais? — Reece deu de ombros. — Nem olhe pra mim.
Apesar de as populações Mortais e Conjuradores conviverem em paz há
séculos, o código básico parecia ser deixar cada um na sua.
Se você se afogasse, se afogava.
Que será, será.
— Tudo bem. — Ridley saltou do antigo assento de vime e foi andando na
trilha de areia que se estendia entre canteiros de grama até a Bathsheba
Beach.
— Chapéu — gritou Reece da varanda acima, mas Ridley simplesmente a
dispensou.
O terraço que envolvia a Abadia Ravenwood, a casa de Barbados da vovó,
era talhado de pedra, um contraste gracioso com as acentuadas falésias
litorâneas abaixo. A casa guardava a fronteira da ilha — a baía e a
Bathsheba Beach — desde os anos de 1600. A Abadia Ravenwood era mais
velha até mesmo que a Fazenda Ravenwood; como tantos outros, os
ancestrais de Ridley pararam em Barbados a caminho das Carolinas há
muito tempo.
Centenas de anos sem nada acontecendo, Ridley pensou.
Isso era muito, muito tempo.
A não ser que você adorasse passar horas decorando gráficos de
ancestrais familiares, mapas de constelações, diários de ervas e jardins,
histórias de Conjuradores. E a história da Abadia, é claro, razão pela qual
Ridley conhecia o equivalente a uma enciclopédia de informações sobre a
casa de veraneio da vovó. Reece, Ridley e Lena estudaram tudo, exceto os
Feitiços em si, que não tinham autorização para ver. Mesmo a pequena Ryan
não era poupada de horas na biblioteca da Abadia.
— É como se ela quisesse que a gente aprendesse sobre poder só para
garantir que jamais teremos nenhum — reclamou Ridley quando chegaram
neste verão.
— Não diga essas coisas. A vovó nos ama. — Reece franziu o rosto,
parecendo preocupada.
Mas ela sempre parece preocupada, Ridley pensou.
— Como eu posso saber? Ela nunca é gentil comigo. Às vezes, acho que me
odeia. — Soava estranho finalmente dizer essas palavras em voz alta.
— Não odeia — respondeu Reece, envolvendo Ridley em um abraço
fraterno. Esses momentos não aconteciam com frequência, e Rid saboreou
enquanto pôde. — Acho, às vezes, que vovó tem um pouquinho de medo de
você.
— De mim? Por que de mim?
Reece simplesmente colocou a mão na bochecha de Ridley e olhou em seus
olhos, como se pudesse enxergar ali respostas para todas as perguntas da
irmã.
— Eu gostaria de saber.
Mas vovó sequer estava presente naquele dia. Ela havia ido com mamãe
para a extremidade leste das ilhas para olhar algumas cavernas anciãs que
ela acreditava terem alguma coisa a ver com o futuro da família.
Por que alguém passaria um dia inteiro olhando uma caverna? Ridley
não fazia ideia. Mas, enquanto corria pela trilha, tentou não pensar em nada
além do sol, do céu e dos girinos que encontrou no lago perto de seu quarto
na noite anterior.
O verão tinha de ser divertido.
Todo o resto poderia ser ignorado agora.
Ela iria salvar as Criaturas da Costa e depois contar para vovó durante o
jantar. Para o tio Macon também. Eles a achariam corajosa e generosa.
Diriam a Reece e Ryan para serem mais parecidos com ela, e depois dariam a
Ridley uma porção extra de sobremesa. Ridley já planejara tudo.
— Ei! Criaturas da Costa! Saiam da água!
Um menino de cabelos claros ficou de pé. Ele saiu da onda cheia de
espuma, em direção a ela. Uma menina, parecendo mais nova e com cabelos
mais escuros, estava sentada à beira da água, na areia.
— Do que você me chamou? — Os olhos do menino brilharam.
Ridley fungou.
— A água é perigosa. Se você se afogar, minha avó vai ter de chamar a
polícia. E ela odeia a polícia.
— Não vou me afogar. — O menino de cabelos claros e olhos escuros
sorriu. Ele não podia ser muito mais velho que ela. Era bronzeado e alto, mas
não alto demais. Nem velho demais.
Era só um menino.
— Você não devia estar aqui. É uma propriedade privada — avisou ela.
— Ninguém é dono da praia ou do oceano. — Ele cruzou os braços.
— O que está fazendo aqui?
— Estou com minha irmã — respondeu ele. — Estamos entediados.
— Sei como é isso.
— Estamos presos aqui enquanto meu avô passa o dia fora.
Ridley assentiu.
— A minha também. Quero dizer, minha avó.
— Ele está em uma caverna estúpida.
— A minha também — contou Ridley, com uma sensação estranha no
estômago.
Ela queria correr dali. Queria correr o mais depressa possível, por toda a
trilha e pelas escadas, passando pelo corredor até o quarto. Queria se
esconder embaixo da cama; só não sabia por quê.
Me beije, ela pensou. É isso que quero.
Quero que ele me beije.
Meu primeiro beijo.
E quero que seja aqui, na praia, com esse menino de olhos escuros.
Os olhos dela estavam arregalados. O menino sorriu, os dentes afiados e
brancos, enquanto os olhos eram redondos e escuros. Ele inclinou o rosto
para perto do dela.
Seu desejo estava prestes a ser concedido.
Então ele sussurrou, tão baixinho que ela quase não conseguiu ouvi-lo com
o barulho da brisa do mar.
— Você quer que eu a beije, não quer?
— Não — respondeu ela. Mas era mentira.
— Sabe por que você quer que eu a beije? — perguntou ele.
Ela não disse nada.
— Porque eu quis que quisesse.
Então ele chegou a cabeça para trás e começou a rir. Ridley começou a
chorar.
— Não me confunda mais com um Mortal — avisou ele. — Não sou uma
Criatura da Costa, ou o que quer que tenha dito. Sou um dos mais poderosos
Conjuradores vivos.
— Você bem que gostaria — respondeu Ridley, subitamente corajosa. —
Você é só um menino Conjurador bobo. E minha avó é mil vezes mais
poderosa que você.
Ele deu um passo arenoso em direção a ela.
— É? Prove.
A briga era tão empolgante quanto o beijo.
Quanto o beijo poderia ter sido, ela lembrou a si mesma.
Ela fechou os olhos.
Me beije.
Quero que me beije.
E, como se ele estivesse escutando, trouxe o rosto para perto do dela, com
os olhos arregalados, como se ele próprio não conseguisse acreditar.
Ela sentiu seus poderes relaxando sobre ele, envolvendo-o. Ela nunca os
tinha utilizado antes, não assim. Não tão conscientemente em outra pessoa,
mas, sobretudo, não em outro Conjurador.
Ela gostou de como se sentiu — forte, independente, invencível.
Ele levou os lábios aos dela... cada vez mais perto.
Agora ele estava com os olhos fechados.
— Isto é para você — sussurrou ela, a voz tão baixa e rouca quanto a dele
momentos antes. — Para que você nunca se esqueça. Meu nome é Ridley
Duchannes, e ninguém me diz o que fazer. Se eu quiser que você me beije,
acredite em mim, você vai querer me beijar.
O menino ficou sem fala.
— É isso que você quer?
Ele assentiu.
— Mais que tudo?
Ele assentiu outra vez.
— Ótimo.
Então ela bateu no rosto dele com toda força, virou e correu de volta pela
trilha.
Ridley se sentou no colchão, com a sensação de que tinha acabado de se
lembrar de alguma coisa importante. Só quando ouviu Link tocando Burger
Boy na sala de ensaio foi que percebeu onde estava — e por quê.
A multidão já havia sumido, e Floyd também. Tudo que Rid conseguia
ouvir era Link.
— Patty, oh, Patty, you're not a real Fatty/and you're only kinda
bratty/my ham-burger Patty.
Ridley deitou novamente no colchão, olhando para as rachaduras no teto
até o set de músicas terminar e o sol estar no alto. Qualquer que fosse o
critério, foi uma das noites mais longas de sua vida.
Ela colocaria Link nessa banda Conjuradora e depois o tiraria rapidinho.
Devil's Hangnail. Tanto faz. Ela não deixaria que ele arruinasse a própria
vida por causa dela, nem por causa de ninguém. E ela com certeza não
deixaria a vida ser arruinada por uma estúpida dívida de jogo.
Ou pela sensação louca de estar sendo observada. Ou pela ideia ainda
mais louca de que estava sendo ameaçada por uma Necromante com um
Feitiço Vindicabo de um mundo invisível.
Ou, o mais louco de tudo, pela ideia de que uma garota roqueira
chamada Floyd poderia roubar seu namorado.
Link Floyd? Nunca vai acontecer.
Porque seu nome era Ridley Duchannes, e ninguém lhe dizia o que fazer.
Ninguém.