Águas de Março

By gisscabeyo

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Rio de Janeiro, berço do samba, das poesias de Drummond, da Boemia de Chico Buarque, das noites na Lapa, da G... More

Prólogo.
1 - Goodbye, USA. Olá, Brasil.
2 - Coisas que eu sei.
3 - Mais do que oculta.
4 - Não era pra ser tão fatal.
6 - Ano novo, desejo antigo.
7 - Nosso jogo é perigoso, menina.
8 - Infinito particular.
9 - Boemia Carioca
10 - Quebrando tabus.
11 - Bom dia.
12 - Canto de Oxum
13 - Agradável e lento.
14 - Tempo ao tempo.
15 - Menina veneno.
16 - Contrapartida
17 - O que é meu, é seu.
18 - Colo de menina.
19 - Meu Pavilhão.
20 - Rua Santa Clara, 33.
21 - Sensações extremas.
22 - Aos pés do Redentor.
23 - Codinome Beija-flor.
24 - Cuida bem dela.
25 - Luz em todo morro.
26 - Queime.
27 - Azul da cor do mar.
28 - Revival
29 - Desague.
30 - Axé!
31 - Vamos nos permitir - part1.
Vamos nos permitir - part2.
32 - Idas e Vindas.
33 - A lua e o sol - part1.
34 - A lua e o sol - part2.
Bônus - Part. 1
Bônus - Part. 2
Spin off - part 1.
AVISO - LIVRO

5- Oblíqua e Dissimulada

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By gisscabeyo

N/A: Hannah aqui, me desculpa pela demora, meu povo. Tenho Skyfall para escrever, tudo tá enrolado no escritório que trabalho, espero que entendam. Bom, temos músicas pra vocês escutarem se quiser. Enjoy!

_______________________________

                 

                 

LAUREN POV

"Eu gosto de olhos que sorriem, de gestos que se desculpam, de toques que sabem conversar e de silêncios que se declaram." – Machado de Assis

30 de dezembro.

Quando levantei por volta das oito da manhã, chequei minha caixa de e-mail e contabilizei mais de cem. "What the..", pedidos de admissão, curriculums, planilhas de investimentos que precisavam ser repassadas à filial americana. Tudo isso estava marcado com urgência e corri para o notebook, começando o trabalho. Andrea bateu na porta e perguntou se eu não gostaria de tomar um café e agradeci, avisando que quando sentisse fome, prepararia alguma coisa. Ouvi o latido de Joker um pouco distante e segundos depois, Taylor e Camila entraram como fãs enlouquecidas no meu quarto, tropeçando nas próprias pernas e gargalhando enquanto tentavam levantar do chão.

- Morning.

Falei de um jeito simpático observando as duas chorando de rir no chão. Camila estava com o rosto vermelho e senti uma vontade imensa de sorrir com ela. Quando seus olhos encontraram os meus, desviei e voltei a atenção para o notebook. As duas sentaram com perna de índio e fixaram a atenção em mim como crianças curiosas. Em certo ponto, me irritei, tirei os óculos e suspirei, fazendo Camila e Taylor gargalharem de novo.

- Eu disse que ela fica irritada quando encaram por muito tempo.

- Tem razão, a gente pode fazer isso mais vezes. - Camila apoiou o corpo com os braços pra trás e mordeu o lábio inferior, captando minha atenção por alguns segundos. - O que pensa que está fazendo com os olhos grudados nesse troço tão cedo?!

- Trabalhando?! Tenho muita coisa pra fazer, menina, não estou de férias como vocês.

- Está falando como o meu pai. Será que esqueceu que dia é hoje? - franzi o cenho pra ela e Camila revirou os olhos. - Seus móveis, tudo que comprou pro apartamento serão entregues hoje em precisamente.. Duas horas. Ou seja, temos que sair nesse exato momento.

- Fuck! Fuck! God damn it!

- Acho que isso significa que você esqueceu, né?

- Fora as duas, preciso me trocar, saímos em quinze minutos.


[PLAY – A Vizinha Do Lado – Roberta Sá]

Demoramos mais que o esperado graças a Taylor e sua enorme vontade de levar Joker aonde ela ia, o que fez Camila e eu bufarmos com falta de paciência. Meu apartamento em frente à praia de Copacabana me dava uma belíssima vista e imaginei como seria passar o ano novo naquele lugar agradável. Os móveis chegaram uma hora depois de começarmos a limpar e esperamos os funcionários montarem as peças enquanto um som de samba saía da velha vitrola que comprei no dia que arranjei os vinis de natal para Camila. A primeira peça que conseguiram fazer foi a mesa central, com seu tampo de vidro. Sentei com o notebook e comecei a analisar as planilhas, mas Camila e Taylor iniciaram sua festinha particular, arrancando a atenção do montador de móveis e minha. Uma música da cantora Roberta Sá invadiu o apartamento e sorri ao entender grande parte da letra; "A vizinha quando passa com seu vizinho grená, todo mundo diz que é boa, mas como a vizinha não há". A voz da mulher fazia Camila dançar de uma maneira que me deixou hipnotizada. Meus olhos seguiam cada movimento de quadril, nem percebi que Taylor tinha parado de dançar, me observando de braços cruzados. Quando me dei conta de que minha irmã me olhava com um sorriso torto, resolvi me focar no trabalho.

- Encontrei a primeira coisa que te faz desviar a atenção desse maldito notebook.

O sorriso de Taylor ao dizer isso era tão grande, que revirei os olhos e fingi que ela não existia. Não queria mostrar para ela que Camila me chamava atenção mais do que uma simples garota carioca que apareceu na minha vida por acaso. O corpo balançava de um lado para o outro como se nascesse para aquilo, os cabelos faziam movimentos gostosos de ver, não tenho como explicar as sensações que passavam por mim ao ver Camila dançando no meio da minha sala, enquanto o montador de móveis se esforçava para fingir que ela não estava bem ali. Decidi tomar uma atitude e levantei da cadeira, ignorando minha irmã ou qualquer outra presença naquele apartamento. Quando me aproximei para apertar a mão do montador e fazer de tudo pra que ele sumisse do meu apartamento, escutei minha irmã guinchar do outro lado da sala.

- O que aconteceu, Tay?!

- Esqueci que tenho um almoço marcado com a mamãe, me desculpa por isso. Posso passar aqui mais tarde.

- Vou ter que arrumar tudo isso sozinha?!

- Ei, eu ainda estou aqui, sabia?! – virei nos calcanhares para encarar uma Camila rebolativa na varanda, enquanto Roberta Sá inundava o apartamento com sua voz. – Não tenho nada pra fazer hoje de tarde, vou adorar te ajudar a ajeitar essa toca que você vai se isolar. Vamos lá, gringa, me deixe ajudar.

- Oh God, help me.. – falei comigo mesma e Taylor se aproximou, me dando um beijo estalado na bochecha. – Sério que não pode ficar aqui?! Sabe que..

- Sei que você se sente incomodada com a Camila, mas deixa de pensar nisso e aceite a ajuda dela, é um milagre essa garota se oferecer pra carregar peso, geralmente não leva nem a própria pilha de livros da faculdade. Encontro vocês depois. Te amo.

Minha irmã se despediu de nós, deu um beijo em Joker e quando a porta do apartamento fechou, decidi me dedicar a arrumar a louça na cozinha. Camila continuou dançando a música, parecia interminável aos meus ouvidos. Quando tirei uma pilha de pratos de dentro da caixa de papelão, reparei no corpo da carioca se agitando enquanto observava o verso da capa do disco de vinil. A parte mais legal do Brasil, é que era fácil encontrar álbuns de cantores atuais em forma dos velhos discos.

[PLAY – Roberta Sá – Você Não Poderia Surgir Agora]

Camila se esforçou para acertar qual melodia queria e quando uma batida tranquila e relaxante invadiu o apartamento, ela me ofereceu um sorriso sem graça, enquanto parava de se movimentar, me encarando com olhos iluminados. Tinha algo nela me que chamava atenção, uma chama pequena que me queimava aos poucos. Faziam anos que não me sentia desse jeito, como se uma mulher pudesse me virar do avesso. Saber que era a melhor amiga de Taylor e mais nova que eu, me freava um pouco, mas Camila sabia em qual parte do meu lado tímido tocar, como manusear, como se tivesse o manual de instrução. Tirei o sapato e fiquei descalça, sentindo o frio do piso de porcelanato fazer um calafrio agradável percorrer meu corpo. Camila me olhou por alguns instantes e assim que me aproximei, ela abriu um sorriso. Segurou minha mão e colocou em sua cintura, passando sua outra mão pela minha nuca, arrancando calafrios de mim. Encarei seu olhos distantes e por alguns segundos umedeci os lábios, esquecendo que aquela não era uma moça qualquer, mas a adolescente que vi quando ainda era uma criança. Minha mão ficou firme em sua cintura e ela respirou fundo, me encarando com um sorriso, se aproximando da lateral do meu rosto.

- Dança comigo, gringa, não vou te morder.

Começamos a nos movimentar pela sala semi-vazia e fechei os olhos, enquanto meu corpo dançava com ela, como se já conhecesse aquele ritmo há muito tempo. A letra não era muito clara, mas ouvir a carioca cantando baixinho perto do meu ouvido fez os pelos do meu corpo arrepiarem enquanto nos movimentávamos pela sala e ganhávamos a varanda. Copacabana começava a dar seus indícios de que daria um belo pôr do Sol em algumas horas e quando senti a cabeça de Camila tombar no meu ombro, diminuí nossos movimentos, como uma valsa ensaiada. Era uma cena que não esperava nem em mil anos. O apartamento estava repleto de caixas e nós driblávamos todas, como obstáculos em nosso caminho coreografado. Camila me puxava pela sala, passava pelos corredores, dava giros ao redor de si, mas tudo com uma leveza de bailarina. Meus olhos a seguiam o tempo todo, hipnotizados com a beleza que ela demonstrava com tanta naturalidade. Quando a melodia terminou, nos separamos e senti minhas bochechas esquentarem. Olhar o rosto dela me fez lembrar um romance brasileiro escrito por Machado de Assis que li não tem muito tempo; "Olhos de cigana oblíqua e dissimulada..". Camila me dava misturas de clássicos que faziam minha cabeça dar um nó, algo nela me puxava de uma maneira que era difícil controlar os instintos. Tentando evitar uma possível atitude, me afastei e caminhei em direção à varanda para observar a orla.

- Você dança bem, menina.

- É.. você até que não manda tão mal. Então.. é.. vamos terminar de ajeitar sua sala?

- Tive uma ideia melhor. – me virei para encará-la e Camila estava de cabeça baixa, brincando com os dedos. – Quer me ajudar a comprar a decoração do apartamento para o ano novo? Não entendo nada dessas coisas e, se depender de mim, vamos comemorar como se ainda estivéssemos na época de Cleópatra.

- Você não é nada sem meu senso de decoração modernista, né?

- Sim, tem razão. Que tal? Topa meu convite?

- Tenho como recusar?

Camila me ofereceu um sorriso e passei o braço ao redor de seu pescoço, levando-a em direção à saída. Precisava de alguém que pensasse no momento em frente, não alguém como eu, que vivia grande parte no passado. Minha paixão por poesias antigas, especialmente as brasileiras, me tornavam uma mulher chata e cansativa, mas Camila parecia ver um lado meu que nem eu mesma conhecia. O sorriso, o movimento do corpo enquanto o samba a embalava, as brincadeiras, pareciam elevar o espírito daquela menina a um patamar muito elevado. Conhecer a melhor amiga de Taylor trouxe uma luz diferente a tudo que eu conhecia sobre a vida e suas agitações, mesmo que no meio disso tudo eu soubesse que precisava focar no trabalho mais do que nunca.


- Que saco, Lauren, você não gostar de dourado atrapalha tudo! Que ano novo é esse que não vai ter nada nesse tom?! Tem noção que filhas d'Oxum precisam do dourado para renovar as energias para o próximo ano?! Me recuso a passar um réveillon sem isso e..

- Sweet Lord of heaven, Camila, compre o que quiser em dourado, não me importo. Te chamei para me ajudar a organizar a decoração e não estou afim de pensar muito, só me preocupo com a quantidade de trabalho que vou ter depois que essa época de festas passar.

- Sabe o que eu acho? Que deveria deixar essa porcaria de lado por alguns dias, está te deixando com cabelos brancos. – ela me avisou sem me olhar, avaliando alguns balões com a numeração do ano que viria. – Além disso, sua família odeia que passe tanto tempo enfiada com o nariz em uma tela de computador ou no maldito tablet. Aliás, como uma CEO da Microsoft pode usar um iPad? Isso não é tipo.. concorrência?!

- Não tem nada a ver, mocinha. O iPad é o aparelho mais completo para trabalhar fora do notebook, ninguém me proibiu de comprar um, portanto, não existe essa guerrinha absurda como a mídia coloca. Falando na minha família, sei que eles não gostam, mas faz parte do meu trabalho.

- Faz parte do seu trabalho esquecer deles e dos amigos?

Meu olhar cruzou o dela por alguns instantes e Camila se adiantou, procurando outras coisas pela loja. A verdade é que nunca pensei que meu trabalho na Microsoft pudesse atingir tanto a minha vida pessoal, mas desde que fiquei sozinha, era disso que vivia. Criara propagandas, programas, campanhas, nada me distraía como uma boa sessão de multiplayer em um jogo novo. Ao contrário do que eu pensava um ano atrás, ter Camila na minha vida me deu outra perspectiva e tive a plena sensação de que aquela menina seria fundamental de uma maneira ou outra. Quando me aproximei dela em um corredor lotado de chapéus e apitos, ela virou de repente e soltou uma quantidade grande de bolinhas de papel, me fazendo engasgar com algumas.

- Oh come on..

- Me desculpa, Lauren. – Camila soltou uma gargalhada e seus dedos começaram a tirar o excesso da minha boca. – Isso se chama confete. Eu não sabia que você estava bem atrás de mim, que dizer..

Seus dedos indicador e médio passaram pelo meu lábio tirando o resto de confete e notei seu olhar na minha boca. Dentro de mim um calor estranho começava a tomar forma e implorei para não ser o que achava, mas aquela menina me deixava no limite. Dei dois passos para trás e joguei um pouco de confete na cara dela, cobrindo o rosto de Camila com papéis de diferentes cores. Nossa guerrinha durou alguns instantes até uma vendedora com cara de poucos amigos aparecer e anunciar que teríamos que pagar por tudo. Não me importei nem um pouco, o mínimo de diversão que tinha com Camila já valia a pena qualquer quantia que pudesse gastar, com ou sem ela. Foram balões de hélio, fitas coloridas, miniaturas que soltavam mais papéis dourados e prateados, garrafas de champagne, guardanapos, a comissão do ano foi dada à magrela que nos tratou com pouca vontade poucos instantes antes de irmos para o caixa. Camila e eu tínhamos uma conexão estranha, como se eu pudesse compartilhar com ela tudo sobre mim, mas ao mesmo tempo, me sentia impulsionada a frear. Apesar de me sentir confortável com ela, sempre tive meus limites e não planejava ultrapassá-los tão cedo. Quando nos aproximamos da saída, ainda cheias de confetes na cabeça, senti minha barriga roncar e ela sorriu, me imitando como um desenho animado.

- Fuck you, estou morrendo de fome, sabe de algum lugar que podemos ir? Nada de podrões, por favor.

- Por que, não gostou? – ela perguntou enquanto tirava o excesso de confete do cabelo e meu deu um olhar triste. – Bem, achei que tivesse gostado, sempre achei tão bom aquele cachorro-quente..

- Ei, I love it. – respirei fundo e suspirei antes de soltar em um português ruim as palavras que ela já conhecia. – Eu amei, tá bom? Só estava interessada em comida. Não conhece nada por aqui?

- Eu acho fofo quando você tenta falar português, sabia? Na verdade, tem vezes que eu até esqueço que você é gringa.

- Isso é bom, não?

- Ah.. isso é ótimo. Quanto a um lugar para comer, que tal o Outback? Sei que não é comida brasileira, mas nada me vem à cabeça no momento.

- Se você quer ir ao Outback, então nós vamos. Confio no seu bom gosto, Camila. Na verdade, acho que confiei nele desde o início, mesmo te achando uma péssima influência pra minha irmã.

Ela gargalhou. Não o tipo de risada que a gente para um tempo pra analisar e acha a coisa mais estranha do mundo, mas aquele som que deixa a gente com um calor engraçado no peito, como se fosse aquele timbre que a gente procurou a vida toda. Camila me acompanhou até o carro e eu dei graças à Deus por estar com o do meu pai, assim não precisava passar por nenhuma situação embaraçosa com ela no volante de seu mini Cooper. Lembrei de um restaurante na Lagoa Rodrigo de Freitas e mudei nosso percurso, fazendo Camila franzir o cenho e me olhar com desconfiança enquanto eu estacionava entre os muitos carros àquela hora da tarde.

- O que estamos fazendo aqui? Não tem Outback na Lagoa.

- Eu sei, acho que prefiro comer em um lugar que não seja dentro de um shopping. Anda, vamos dar uma volta até chegar no Palaphita Kitch, meu pai me indicou esse hoje de manhã. – ela me olhou com um brilho diferente e sorriu, saiu do carro com entusiasmo. – Não está chateada por eu não te levar onde queria?

- Está brincando?! Eu amo passar o fim de tarde na Lagoa, é um pôr do Sol tão bonito. Aliás, acho que hoje tem show ao vivo e espero que seja MPB. Anda, Lauren, vamos caminhar e curtir esse mini passeio.

Tranquei o carro e Camila estendeu a mão, que peguei sem pensar duas vezes. Nossos dedos se entrelaçaram e quando fechamos aquele contato, parecia que meu pequeno mundo cinza tinha recebido um pouco mais de cor. Não é que eu sentisse uma atração fatal por ela, mas tinha um sentimento de cuidado e amizade por Camila que era difícil explicar. Quando olhava o movimento de seu corpo, a maneira que a camisa levinha moldava o corpo, junto com o short jeans, me deixava com pouco mais de um terço de oxigênio disponível. Quem quer que fosse a pessoa que aquela garota quisesse, seria um sortudo de carteira assinada. Tinha mil e um motivos para me afastar dela, mas teria outros dois mil para ficar. Taylor sabia tudo sobre essa garota, mas no meu interior, estava louca para saber mais. Meu interesse por Camila crescia todas as vezes que olhava seu rosto contra a paisagem da Lagoa, no jeito que ela chutava uma pedrinha, fazendo com que a coitada nos acompanhasse durante nosso percurso.  Era literalmente uma menina mulher e nada que eu pudesse dizer seria capaz de expressar toda a beleza que conseguia ver em uma única tarde.

Passamos por crianças com patins, skates e bicicletas, casais dividindo carrinhos com pedais, famílias guardando o que trouxeram para o piquenique, jovens jogando basquete ou futebol, turistas fazendo fila para passear nos pedalinhos em forma de cisne. Camila me falava de tudo um pouco, como aquele lugar tinha se tornado tão famoso, o motivo de tantas pessoas procurarem a Lagoa como forma de entretenimento em um sábado, um pouco de sua infância naquele lugar em especial. Escutava tudo com tanta atenção, que toda vez que ela abria a boca era como uma sinfonia de pássaros cantando pra mim.

- Por que você não se dá bem com seu pai? – perguntei enquanto nos acomodávamos em uma das mesas externas do Palaphita. – Sua rebeldia em parte é culpa da falta de atenção?

- Ah, gringa, que ingenuidade a sua. – a risada contida dela me fez largar o cardápio e entrelaçar as mãos sob a mesa. – Meu pai e eu nunca nos demos bem. Quer dizer, sempre amei o coroa, fizemos muitas coisas juntos, mas desde que minha mãe morreu tem sido um inferno. Não me importava que ela passasse noventa e nove por cento do tempo no hospital, mas depois que Sofia cresceu e nossa mãe se foi, comecei a sentir raiva da ausência dela. Acho que meu pai não tinha direito de se isolar de nós, entende? Minha irmã não tem culpa pelo que aconteceu, muito menos eu. Com o senhor Alejandro no hospital vinte e quatro horas e Sofia se distraindo em cursos, encontrei meu conforto na religião. Vou a sessões, palestras, gosto de dançar o canto d'Oxum. Sabe quando você escuta algo e que te faz livre, tranquila, desinibida? Quando estou rodeada de energia positiva, é como se nada, nem ninguém pudesse me atingir. Meu orixá me dá força, me deixa equilibrada. Enfrento muitas coisas hoje em dia, como já te disse, mas tudo vale à pena. Sabe o que eu acho? Que você ia gostar de conhecer meu ilê. O que acha? Posso te levar em um dia de festa, topa?

- Não sei se te falei antes, mas admiro essa sua paixão pela família. Nunca é fácil lidar com uma perda, mas você parece controlar muito bem tudo isso. Quanto ao seu convite, será uma honra, vou gosta de conhecer um pouco da sua religião e uma parte importante do que o Brasil é formado.

- Você me surpreende, gringa. Quer dizer, já conheci muitos americanos e eles eram muito obtusos, mas você parece ser tão liberal. Descobri essa minha paixão pela religião quando fiz sete anos. Minha mãe cantarolava quando estava ajeitando algumas coisas na casa e perguntei uma vez o que era e ela explicou, com certo receio, é claro. Facilitou muita coisa para a minha aceitação, pretendo ensinar a Sofia sobre isso em pouco tempo, se for da vontade dela. Acho que qualquer pessoa que se envolve comigo precisa primeiro se envolver com a minha aura, com meu orixá. Oxum sabe o que é bom pra mim.

- Não duvido disso, acho que você é muito bem cuidada, menina.

O sorriso que eu vi não era convencido ou envergonhado, mas orgulhoso. Camila tinha uma fé que me fazia tremer por dentro. Era tão bonita, tão pura, que podia admirar sua devoção por horas. Conversamos sobre a empresa que estava prestes a assumir, a faculdade que ela estava cursando e como o curso tinha mudado sua vida, sobre amores antigos e complicados, mas principalmente, sobre música. Nunca tinha ouvido falar de tantos cantores e compositores em pouco tempo como naquele pequeno espaço de tempo conversando com Camila no Palaphita. Ela parecia saber de tudo um pouco, uma pequena biblioteca da MPB e das poesias. Estava me esforçando para acompanhar tudo que ela dizia, mas quando tomei um gole grande de caipirinha e engasguei, ela riu e me deu alguns tapinhas nas costas, me auxiliando.

- Acho que falei muito rápido, não é? Desculpa, é que quando começo a falar sobre uma coisa que gosto, não consigo parar tão rápido. – ela abaixou a cabeça totalmente encabulada e levantei seu rosto pelo queixo. – Sério, me desculpa.

- Nunca peça desculpa por demonstrar paixão por algo que gosta, isso é muito bonito e puro, menina. As pessoas que falam que isso é errado, nunca encontraram nada que pudessem depositar esse tipo de amor e devoção. Quer que eu te fale uma coisa que vai te deixar tranquila? Eu tenho estudado poemas brasileiros, acho todos tão fascinantes e bonitos, imagino as musas daqueles escritores.

- Mesmo?! Pensei que você só vivesse com os olhos grudados naquele iPad ou no notebook. – ela fez uma mímica com as mãos imitando um binóculo e soltei uma risada, negando com a cabeça. – Você tem tanta coisa bonita pra ver no Rio de Janeiro, por que não experimenta levantar o olhar um pouco?! Está tudo à sua volta.

- Ou na minha frente.

Falei sem pensar e Camila abaixou a cabeça com o rosto púrpura de vergonha. Quando reparei no que tinha acabado de dizer, virei o conteúdo do meu corpo e chamei o garçom para me servir de novo. Não era minha intenção dar qualquer indício a Camila que tinha qualquer apreço por ela, mas aquela frase saiu tão sem querer, tão naturalmente, que decidi aceitar que tinha que ser. Desviei minha atenção para a Lagoa e Camila segurou meu rosto, me fazendo encará-la.

- Vamos, olhe pra mim e pense em uma poesia ou poema bem bonitos.

- Não sei, menina, é difícil pensar depois de duas caipirinhas. – esfreguei o rosto e ela pegou minhas mãos, colocando sob o rosto dela. – O que está fazendo?

- Se você sentir meu rosto pode imaginar alguma coisa sobre mim. Anda, cave no seu baú alguma coisa. Sua irmã me disse que você costumava ler muitas coisas da literatura brasileira, com certeza deve sentir algo quando me vê.

- "Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato... ou toca, ou não toca".

- Hmm.. Clarice Lispector, né? – pisquei algumas veze antes de voltar à realidade e ela gargalhou, se afastando do meu contato. – Gosto muito das frases e poemas dela, me impressiona que lembre de mim em algum deles. Obrigada, gringa.

Camila e eu trocamos olhares alegres e quando o garçom trouxe a quinta rodada de caipirinhas, brindamos com animação. Taylor chegou uma horas depois e foi ela quem teve que nos levar para casa, minhas pernas não aguentavam o peso do meu corpo. Minha irmã decidiu que a amiga deveria dormir na casa dela e escolhi ficar a primeira noite em meu apartamento, sozinha. Pensei ter ouvido Camila falar que queria ficar comigo, mas talvez fosse só um truque do meu embriagado inconsciente. Depois que cruzei a porta de entrada e me joguei no sofá da sala, ainda com plástico, apaguei com poucos minutos de espera. Meu dia com aquela menina tinha sido produtivo e no ano novo eu planejava ter um pouco mais dela. Camila tinha se tornado minha maior vontade, mesmo que eu não soubesse disso por completo.

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