Dança Perigosa - DEGUSTAÇÃO

By IsabelleReis

82.2K 2.2K 310

OBRA REGISTRADA NA BIBLIOTECA NACIONAL Eliana e Matheus se conheceram em meio à guerra que a Rocinha enf... More

Pedra da Gávea
Praia de Copacabana
Complexo do Lins
Grajaú
LANÇAMENTO DO LIVRO FÍSICO - PRÉ VENDA
E-BOOK GRÁTIS!

Rocinha

14.7K 714 123
By IsabelleReis

10 anos atrás.

A noite estava quente, típica do verão carioca. Matheus usava uma farda pesada, com um colete a prova de balas, fora o fuzil que portava dando-lhe mais alguns quilos para carregar. Da janela suja do caveirão conseguiu ver as prostitutas fazendo a festa com os turistas que embainhavam-se nas águas do Brasil. Tudo uma festa. Menos para ele.
Matheus Araújo, mais conhecido como Soldado Araújo, faz parte do Batalhão de Operações especiais com apenas 22 anos. Uma sorte que mudou sua vida. E pensar que poderia estar em um bar bebendo ao invés de estar ali, com mais cinco homens, enfurnado em um cubículo pronto para subir o morro, aquilo fez seu coração palpitar.
Subir a favela da Rocinha era rotina, nada mais o surpreendia. Todos os dias ele vivia o inferno que os moradores de todas as comunidades do Rio de Janeiro viviam, mas ainda assim não levavam nada do que ele dizia a sério. Por que? Porque ele tinha malditos olhos azuis e cabelo liso. Podia ser um pouco mais velho também, isso imporia respeito, pensou ele, mas não era o caso. Só por ser considerado mais bonito que os outros, tudo que tentava dizer acaba com alguém o chamando de "bicha", "menininha dos olhos azuis", ou qualquer merda que seus superiores quisessem. Era frustrante.
Ficar filosofando sobre a vida também não ajudava em nada, por isso Matheus resolveu descer do blindado assim que recebeu a ordem de seu superior. Em silêncio, todos foram para posições estratégicas a fim de não estragar o elemento surpresa preparado com tanto "carinho". Tirou o suor da testa mais uma vez e caminhou para uma das casas coloridas e humildes que compunha a favela.
Bateu em uma porta de madeira gasta, com algumas lascas feias, sem fazer barulhos desnecessários e foi recebido por uma criança de aproximadamente oito anos. Empurrou-a levemente e entrou na casa, acenando a cabeça para a mãe que estava de camisola, esquentando leite para duas meninas que estavam deitadas na cama improvisada, de aproximadamente um ano cada.
— Senhora, meu nome é soldado Araújo e preciso usar a sua casa como ponto estratégico. Estou autorizado? — Ele perguntou calmamente, em um tom baixo, mas com o fuzil um pouco acima do peito, mostrando a total falta de opção da moradora. —

Ela assentiu com a cabeça e puxou o filho para mais perto. Matheus subiu as escadas que dava para um quarto simples e uma varanda mal acabada. Ele pegou um banco infantil rosa que havia por perto e usou para acomodar-se na sacada improvisada que mostrava claramente que um dia ali fora uma simples laje.
Respirou fundo e posicionou o seu fuzil habilidosamente em direção a boca de fumo que seria surpreendida por seus companheiros que estavam escondidos cerca de cinquenta metros de distância do local.
Posicionado Araújo? Questionou seu superior no fone que tinha no ouvido esquerdo. —

— Positivo. — Respondeu ele, mais como um sussurro. —

Vamos invadir — Lucas, seu amigo e companheiro de batalhão, falou com o sotaque carioca carregado. —

Enquanto todos discutiam na escuta qual era o melhor jeito de executar o plano, Matheus resolveu limpar a área com os olhos, ter certeza que tudo estava como o esperado para concluírem a operação. Nada demais, pensou ele, tudo tranquilo.
Alguns "aviõezinhos" saíram do barraco tranquilamente, meninos de aproximadamente 15 anos, com pistolas enferrujadas se achando os reis do mundo, pois vendiam drogas e movimentavam a "economia" da favela. Eram crescidos, pensavam eles.

Atira ou não? — Perguntou Lucas na escuta.

— Mas é claro que não. — Respondeu Matheus. — São menores, não está vendo? Não estão representando perigo para nós. — Concluiu. —

Com pena de vagabundo Matheus? — Provocou Lucas. —

Foco na missão — Essa foi a única frase do Capitão Gurgel que os fez calarem. —

Já passava da meia noite quando Matheus deu carta branca para os seus companheiros começarem de fato a abordagem. Mas foi surpreendido por uma pequena criatura na janela do local, com um pirulito na mão e um urso sujo no outro, visto pelo binóculos.

— Segura, tem uma criança no barraco, acabei de avistar uma mulher, também, provavelmente civil, deve ser mulher do cara, nada de esculacho, vamos com calma. — Avisou Matheus, deixando o nervosismo na voz transparecer. —

— Eu sugiro sairmos logo da favela, porque daqui a pouco seremos descobertos. — Disse Felipe, o mais novo soldado do batalhão, em sua primeira operação. —

Cerca de meia hora se passou e a mulher, aparentando seus 20 anos, saiu com o filho a tira colo, cantando funk enquanto a mesma ria tranquilamente das imitações da criança. Todos esperaram até que ela virasse a esquina, mas antes que isso acontecesse, um tiro irrompeu por trás de Matheus e acertou no ombro esquerdo de Felipe, que caiu no chão com o baque.
Sem ter tempo de falar, Matheus virou seu corpo para o bandido — bem cego por ter acertado quem estava em baixo e não em cima — que estava na subida da laje onde o rapaz se instalara.
Sem fazer movimentos bruscos, ele levantou o fuzil e com um único aperto no gatilho conseguiu ser mais rápido que o rapaz e o matou sem pensar duas vezes. Ele caiu na escada e dava para ver os pés presos por um chinelo gasto. Ao passar pelo corpo, Matheus tratou de não encostar nele.
O som dos fogos já se fazia presente e o inferno começou mais uma vez. Matheus tratou de abandonar a casa e sair do beco escondido em que se enfiara, dando de cara com a imensa escadaria da Rocinha que ligava a favela de uma ponta a outra. Ele correu e parou em um poste, tentou dar cobertura para si mesmo e andou mais um pouco. Deu de cara com Felipe jogado praticamente na sarjeta, agonizando por um tiro que de tão mal dado tinha sido de raspão. Ele riu. — Pare de ser bicha e chorar por esse ralado. — Ele rechaçou. —
Procurou pelo seu capitão mas não o achou. Lucas veio correndo, atirando para o lado contrário que caminhava e gritou, a fim de se fazer ouvir.
— O capitão pediu para subir, ele quer ir atrás do Pé de Porco, vai que eu levo o Felipe. — Matheus não titubeou e partiu em direção ao local indicado. — Encontrou seu capitão trocando tiros com um dos maiores traficantes da região. Ele sorriu maleficamente, aquele ele queria morto. Conhecido por tráfico, pedofilia e assassinato de diversos policiais amigos seus. Isso ele não perdoaria.
Deu tiros certeiros nas pernas e braços de dois bandidos que tentavam encobrir o chefe do tráfico e enquanto tentava proteger Gurgel, deu de cara com uma menina, duas vielas abaixo, usava um vestido de malha preto, com meias brancas. Sapatilha preta, sujas de lama e o cabelo preso em um rabo de cavalo que já parecia querer se soltar. Seu rosto era de puro medo. Parecia ser gringa, com as bochechas rosadas e a pele branca. Ele começou a andar na direção dela, colocou a bandoleira no lugar onde devia estar — e nunca estava — e levantou as mãos em sinal de rendição. Seu rosto foi inundado por uma esperança de sair viva daquele lugar, já que o barulho ensurdecedor assustava qualquer um.
— Vou te tirar daqui! — Ele gritou para ser ouvido. —

Ela apenas assentiu, mas deixou que o suor se misturasse com as lágrimas desesperadas que teimavam em cair. Matheus não soube o que fazer, jogou o fuzil o mais para traz que pode e decidiu colocar em risco a vida dos dois, mas o que menos queria agora era assustá-la atirando por ai.
Respirou fundo e começou a caminhar com a menina. Enquanto descia, começou a falar com seu capitão.

— Capitão, estou descendo com uma civil e o Felipe, Lucas está subindo para dar cobertura! — Ele mandou via rádio. —

Encontrou Lucas e Felipe alguns minutos depois, descendo as escadas em direção ao caveirão que não conseguia subir as ruas acidentadas do complexo.
— Lucas, vá cobrir o Gurgel que eu levo o Felipe lá para baixo, fique atento, acho que ele matou o dono do morro mas ainda tem gente atrás, ouvi pelo rádio que mais 10 homens estão chegando. —
Lucas olhou rapidamente para a menina e assentiu. Matheus colocou o braço de Felipe no seu pescoço e se surpreendeu com a iniciativa da menina, de ajudá-lo a carregar seu companheiro.
Enquanto desciam, encontraram alguns outros policiais prontos para subir. A menina continuou segurando firmemente o rapaz, que em sussurros agradecia-a e dizia coisas desconexas. Matheus não conseguiu deixar de rir. — Você levou um tiro de raspão Felipe, seja homem na frente da menina que carrega você! Imagine se tivesse tomado um no estômago como eu? — Ele tornou a rir. —
— Você tomou um tiro no estômago? — O sotaque era grosseiramente carioca, deixando o rapaz desconfortável, achou que ela não entenderia nada que ele diria, por isso nem tentou se comunicar. Resolveu deixar isso de lado. — Sim, mas só fiquei com uma cicatriz para contar a história. — Ele piscou ligeiramente. —

Ela sorriu de um jeito tão lindo, que ele duvidou que estivessem em um tiroteio. Infelizmente o momento não durou muito tempo. Matheus conseguia ver as lojas e a estrada anunciando o fim da favela, mas foi surpreendido por dois bandidos fortemente armados, prontos para atirar em tudo que se mexesse.
Sem pestanejar ele soltou Felipe que caiu no chão, mais precisamente, em cima da bela e delicada menina. Matheus atirou tão certeiramente que decidiu comemorar como muitos bandidos o faziam. Levantou a arma e começou a dançar.
— Ok, já acabou? — Perguntou a menina sem conseguir falar muito, pois estava sendo impedida pelo policial caído. —
— OH MEU DEUS, ME DESCULPE! — Gritou ele tirando de um puxão só Felipe de cima da menina. —
— Tudo bem... — Ela resmungou. —
— Ah cara, a sua perna. — Ele apontou com uma das mãos desocupadas. — Mil desculpas, prometo que vou resolver isso quando chegarmos lá embaixo. — Tentou se desculpar-se de várias formas. —

Para serem mais rápidos, Matheus pegou Felipe no colo, colocou-o no ombro e começou a descer rapidamente, sendo seguido pelas pernas esguias da menina, que pulava todos os degraus, como se estivesse dançando. Ele riu baixinho, não sendo percebido por ela.
Em cinco minutos, estavam na barreira que havia sido montada anteriormente, antes da invasão e em seguida o soldado deixou o amigo perto da ambulância que havia sido previamente chamada pela tropa reserva que havia chegado.
Matheus entrou na parte de trás do carro e tirou de lá alguns materiais para limpar a menina misteriosa. Carros de emergência começaram a chegar após serem informados do confronto e de policiais feridos no local. Uma das macas de uma das ambulâncias estava sem uso, do lado de fora do automóvel. O soldado puxou a menina, suspendeu-a até a maca e passou a limpar o ferimento que havia sido feito no joelho da garota.
Colocou algumas gazes no joelho e os segurou com esparadrapo. Matheus passou um pouco do que sobrara nas mãos sujas de sangue e tirou o capacete de proteção. Tentou arrumar um pouco o cabelo sem muito resultado e foi no caveirão mais próximo guardar seus equipamentos. O tiroteio havia cessado há cerca de trinta minutos, alguns dos policiais já voltavam com corpos e Matheus teve o estranho sentimento de proteção com relação àquela menina, queria tirá-la dali antes que qualquer corpo aparecesse.
— Está tudo bem irmão? — Perguntou ele a Felipe, que agonizava por algumas gazes na ferida — Estou morrendo! — Ele gritou. —
Matheus tornou a rir, mas não sem antes avisá-lo.
— Assim que chegar no hospital, eu estarei lá. —
Pediu as chaves de um dos carros do Batalhão e chamou a menina, que parecia perdida em meio àquela confusão. — Vamos, vou te levar para casa. — Ele disse mais como uma ordem do que como um pedido. Devia ser o costume. —

— Meu Deus você é um menino! — Ela gritou colocando a mão na boca. —
— E você é uma menina em meio a um tiroteio, agora vamos. — Ele abriu a porta de trás do carro e deixou que ela entrasse. —
— Onde mora? —Perguntou já instalado no banco da frente. —
— Avenida Nossa Senhora de Copacabana. — Ela disse sem olhar para ele. — Já passava das 2h30 da manhã e o trânsito parecia inexistente. Matheus conseguiu chegar à Avenida em vinte minutos e quando menos esperou se viu abrindo a porta para ela. — Então o meu herói tem 15 anos. — Ela sorriu brincalhona. —
— Ainda sou um policial, deveria me respeitar. — Ele sorriu. — Mesmo que pense que eu tenho 15 anos. —
Os dois riram.

Ela deu-lhe um estalado beijo no rosto e entrou no prédio. Não sem antes, dar um último olhar para trás.

Aquele olhar foi sua sentença de morte.

vhT���O

Continue Reading

You'll Also Like

(sobre)viva By Erika S. Maso

Mystery / Thriller

22.7K 2.7K 58
🏅VENCEDOR DOS PREMIOS WATTYS 2021 EM SUSPENSE 🥇lugar em suspense no Concurso Relâmpago de Natal 🥉Lugar na segunda edição do concurso Mestres Pokém...
78.5K 9.6K 17
A vida de Isabella Miller é um autêntico turbilhão: cursa direito por influência dos pais e divide o apartamento com uma amiga. No entanto, sua rotin...
1.9M 148K 44
Strix é uma escola de submissas onde mafiosos investem para terem as suas. Emma foi criada na Strix e ensinada para se tornar uma, mas a garota não é...
411K 27.3K 123
Alex Fox é filha de um mafioso perdedor que acha que sua filha e irmãos devem a ele, Ele acha que eles tem que apanhar se acaso algo estiver errado...