O Alvorecer de Earis

By soukevem

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Alô, queridos O que você faria se fosse parar em um planeta totalmente desconhecido? Enquanto investigam o mi... More

Prefácio
Prólogo
- 1.Retalhos -
- 2.Amizades -
- 3.Aconchego -
- 4.Desabafos -
- 5.Memórias -
- 6.Irritação -
- 7.Sombras -
- 8.Ansiedade -
- 9.Dúvidas -
- 11.Embrulhos -
- 12.Anotações -
- 13.Cicatriz -
- 14.Impactos -
- 15.Preocupações -
Nota do autor e algumas divagações
- 16.Despertar -
- 17.Compromisso -

- 10.Timbres -

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By soukevem

Mesmo que toda semana Giselle fosse até a comunidade de Heliópolis para dar aulas de música, sempre se surpreendia com o contraste entre as casas amontoadas precariamente e o condomínio luxuoso além dos muros e cercas elétricas. Isso causava um incômodo desanimador, mas o brilho nos olhos das vinte crianças de seu coral era o bastante para contagiá-la a seguir em frente. Todas elas tinham entre dez e quinze anos de idade. Alguns rostos mudaram ao longo do projeto, mas os sorrisos ficavam cada vez maiores e mais cheios de esperança.

Giselle adorava como aquilo fazia valer a pena todo o esforço dedicado. Havia um trabalho mútuo entre ela e aqueles pequeninos para que o coral desse certo e eles estavam preparando um recital para as comemorações de fim de ano.

A professora se sentou numa cadeira e tocou no teclado da escola, para que as crianças pudessem acompanhar. Mantinha os ouvidos muito atentos para saber se todas elas estavam afinadas e repetia os trechos da música para que eles memorizassem e se familiarizassem com o compasso, as passagens e as intensidades que a canção possuía.

Naquela manhã, sua turma recebeu a ilustre visita de um dos maestros e seis músicos da Orquestra Sinfônica Heliópolis, que vieram ensinar alguns comandos e deram a todos o gostinho de uma apresentação real. As crianças de Giselle ficaram muito animadas.

Quando a aula acabou e os músicos foram embora, levando o teclado da escola de volta ao almoxarifado de bom grado, Giselle ficou para se despedir das crianças. Uma das alunas ficou por último, ajudando a arrumar as cadeiras em fileiras.

A intuição da professora levantou uma estranha sensação em seu peito e ela soube que havia algo errado com a menina.

— Professora? — a garota se aproximou dela depois de terminarem a arrumação. A moça, que tinha quatorze anos e a mesma altura que Giselle, olhou para os pés como se procurasse as palavras entre os seus dedos.

— Sim, querida?

— Minha mãe quer que eu pare com as aulas e vá ajudar ela a cuidar do meu irmão mais novo, pra ela trabalhar aos domingos também.

Histórias como essas eram comuns e Giselle não conseguia se acostumar com elas. No começo do projeto, a sua turma tinha vinte e oito alunos. Agora seriam dezenove. Ela respirou fundo, tentando escolher as palavras.

— Então... — a professora soltou a cadeira que segurava e olhou fixamente para a aluna. — tu não virás mais, não é?

Uma lágrima solitária escorreu no rosto da menina. Ela balançou a cabeça e fungou.

— Eu gosto muito de cantar, professora. Queria ficar mais tempo aprendendo com você.

— Quer que eu converse com a tua mãe?

— Não! — a jovem respondeu bruscamente. — Ela é muito brava. Não quero que ela desconte nada em você e nem em mim.

— Tu sabes que eu posso ajudar.

— Só... Obrigada. Vou me lembrar de você pra sempre e torço pra você ser muito feliz.

— E eu torço para que tu voltes a estudar canto. Tu tens uma das vozes mais belas do nosso coral e és uma das minhas alunas mais dedicadas. Não desista desse sonho, querida. Eu acredito em você. Encare esse momento como uma pausa breve, combinado?

A aluna balançou a cabeça afirmativamente e então deixou Giselle sozinha na sala.

Isso disparou muitos pensamentos na mente da jovem professora. A realidade das crianças da comunidade a comovia.

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Depois de chegar em casa, ela ainda olhava o céu pela janela do seu quarto. Sua mãe bateu à porta duas vezes, perguntando se estava tudo bem, mas ela não abriu espaço para conversa. Olhava a prancheta e os projetos pendurados na parede do quarto e se questionava se aquilo era realmente o que ela queria para sua vida.

Tomou um banho quente e, depois de vestir alguma coisa confortável, desceu as escadas, sentou-se em frente ao piano e levantou a tampa de fundo. As teclas estavam amareladas e com poeira. Havia tanto tempo que ela não tocava em casa que o instrumento ficou desregulado. Ela abriu a caixa e afinou as cordas com cuidado.

Ao ouvir o barulho que Giselle fazia, José desligou a televisão, pois sabia que o som atrapalharia sua filha. Ele tomava chimarrão enquanto assistia o jornal e esperava o jantar ficar pronto.

A jovem começou a tocar alguma sinfonia de Mozart, com muitos erros, conforme sua memória se lembrava. Não estava preocupada em acertar as notas e acordes e não seguia nenhuma partitura. Depois de terminá-la, tocou outras músicas populares até sentir dores nas costas por causa de sua má postura.

José a observou durante todo esse tempo. Quando a filha parou de tocar para se alongar, ele deixou o sofá e se aproximou dela, empurrando-a para o lado para que ele coubesse na banqueta do piano também.

— Tu não pareces bem — falou, apertando algumas teclas. Ele não entendia nada de música, mas gostava do som e admirava muito sua caçula por entender como toda aquela geringonça funcionava. A parte de dentro do piano era assustadora para ele, que trabalhava com pintura desde a mocidade.

— Sinto que estou no caminho errado — Giselle contou.

— Tu não gostas do que faz? Arquitetura é um bom ramo. Mas lembro que na época do vestibular, tu estavas confusa... ainda duvida?

— Naquela época — ela disse, encolhendo os ombros e tomando um gole do chimarrão do pai —, eu fiquei encantada em como a Clarisse falava sobre o curso. Tem o lado artístico e criativo que combina muito com ela e o aspecto social, que me conquista. A ideia de estar com ela nessa fase da vida também me atraiu, sabe? Mas sinto que falta alguma coisa... Já se sentiu completamente perdido?

José franziu o cenho.

— Hmm... E quem é que não se sente? — confrontou, de forma descontraída.

— Já passou da hora de eu arrumar um emprego, como todo mundo. O Zé Júnior e o Marcos não param de me provocar por ser a caçula mimada.

— Tu sabes que não precisa, se não quiser — o pai falou, ainda mexendo nas teclas. — Aqueles dois bocós nasceram num momento diferente e já tocam as próprias vidas, por isso pegam tanto no teu pé. Há anos, tua mãe não precisa trabalhar. Estou dando conta de todas as nossas despesas e você pode se dedicar aos estudos e ao voluntariado sem se preocupar. Mas não vou me opor a isso. Trabalhar te trará novos ares. A propósito, preciso de um ajudante.

— Acho que é disso o que eu preciso. Vou deixar meu currículo com o RH — ela brincou, sabendo que o pai lidava com tudo sozinho e de maneira informal.

— Ha, ha! Um pouco de tinta nas mãos e nos cabelos não faz mal a ninguém. — Ele tomou de volta seu copo das mãos da filha e bebeu. — Mas o que te deixou tão borocoxô?

— Ah... outra aluna desistiu do coral. Não pude fazer nada — ela respondeu, roubando uns goles do chimarrão do pai enquanto falava.

— Entendo... As desistências sempre te abatem.

José abraçou Giselle pela cintura e ela apoiou a cabeça sobre o ombro dele.

— Tu queres desistir? — ele prosseguiu.

— De quê? Da carreira ou dos alunos?

— Eu acho que o que tu fazes pelas crianças da comunidade é muito legal. A vida é muito dura e não dá pra fazer o que gosta sempre. Temos que engolir as verdades dolorosas, às vezes, e fazer o que é preciso. Perder pessoas ou paralisar sonhos, por exemplo. Mas nada disso significa que temos que desistir.

— Eu gostaria de estudar música num conservatório... — Giselle confessou, como um lamento. — Só não tenho coragem de deixar arquitetura pela metade.

— Uma profissão não anula outra, Giselle — o pai falou. — Eu quero que tu sejas feliz, mas não posso te ajudar com todos os seus sonhos. Não consegue esperar um pouco até se formar?

— Tá tudo bem, papai — ela beijou o rosto dele. — Eu não poderia pedir nada para o senhor. Me sinto privilegiada, porque tu és o melhor pai do mundo inteiro! E, como o vovô diz, profissão não ocupa espaço. Eu não estou triste com minha vida, mas...

Giselle se colocou de pé e começou a andar pela sala. Seu pai a acompanhou com o olhar, virando-se na cadeira do piano e dando espaço para ela se expressar.

— O que me chateia é a vida daquelas crianças — a filha continuou. — Nós vivemos uma vida estável, mas existe tanta pobreza por aí. Pobreza real, tanto financeira quanto de espírito. Se meus alunos ao menos tivessem um pouco mais de apoio dos pais deles, eu acredito que teriam chances melhores, mas a verdade é que a situação dos adultos também é terrível.

Sentando ao lado do pai outra vez, Giselle desabou sobre o piano com um longo suspiro. As teclas, pressionadas de uma vez pelos braços dela, fizeram um ruído dissonante.

— A aluna que desistiu dessa vez cresce sozinha, porque a mãe trabalha muito. Do jeito que as coisas estão, eu nem quero pensar no tanto de coisa ruim que pode acontecer com ela. Eu queria fazer mais por todos e acreditei que a música seria um refúgio dos problemas ou um novo ponto de partida, mas a verdade é que Arte não tá sendo o suficiente.

— Acho que música não é suficiente pra limpar toda a sujeira do mundo. — José comentou. — Há algo de errado com as pessoas.

— Claro que tem! Meus alunos passam fome das coisas mais básicas. Desde o prato de comida ao amor da família. — Giselle se levantou outra vez, completamente inquieta. — O que eu faço?

Ele encolheu os ombros e beijou a mão da filha.

— Faz o teu melhor. É o que todos devemos fazer. Tu não conseguirás resolver todos os problemas do mundo e das pessoas. Se precisa continuar com as aulas, continue. Se quer trancar a faculdade, tranque. Não há mal algum em mudar de caminho, se isso for o que te faz bem. Só quero que tome cuidado pra não dar voltas no mesmo lugar. O tempo custa muito caro, Giselle, e não dá pra voltar atrás.

— Obrigada, papai. Parece que a vida insiste em não fazer sentido. Vou esperar pra ver se descubro alguma coisa. Minha intuição falha quando preciso resolver os meus problemas.

— Vocês não virão jantar? — Rosana, a mãe de Giselle, perguntou. — Está tudo pronto e... Que cara de feliz é essa, homem?

José estava praticamente rindo.

— Não é todo dia que a Giselle admite que a intuição dela falha — pai falou, se descontraindo.

— Tocou piano e a sua intuição falhou no mesmo dia? — ela alfinetou a filha, entrando no embalo do marido. — O mundo vai acabar!

Giselle revirou os olhos e balançou a cabeça.

— Agora podemos comer? — Rosana perguntou.

— Eu vou — José falou, levantando-se e correndo para a cozinha. Estava faminto!

— Podem ir sem mim. A Clarisse está me mandando um monte de mensagens — Giselle disse, com as sobrancelhas erguidas e olhando o celular que não parava de vibrar com as notificações. — Vou ver o que aconteceu.

— Ela está fazendo uma reforma? — Rosana perguntou. — Ouvi uma barulheira vinda da casa dela pela manhã.

— Não sei dizer... Mas pôs abaixo a parede do escritório.

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A comissária de bordo tocou o seu ombro e o acordou. Estava na hora de desembarcar. Um pouco vacilante por causa do sono, Roland se levantou, pegou sua bagagem de mão e então caminhou pelo corredor entre os assentos e saiu do avião. A maioria dos passageiros já havia desembarcado e a passagem estava livre. Faltava pouco para chegar em casa.

Ele demorou mais do que o esperado para retornar ao Brasil, enquanto sua mãe melhorava da pneumonia, e isso lhe deu tempo para tratar de outros assuntos. Estava cansado de esconder os segredos dos Bertrand, enquanto via Clarisse e August crescerem. Entendia que Julian e Rebeca pediram para protegê-los, mas, ao mesmo tempo, se questionava se manter o passado em uma caixa de sapatos no telhado da casa de sua mãe era a coisa certa a fazer pelos afilhados.

Puxaria Cecília e Luíza para uma conversa. Decidiu.

Ainda estava distraído quando chegou ao portão de desembarque, no saguão do Aeroporto Internacional de Guarulhos, quando, do nada, Pax pulou sobre ele, jogando-o no chão. Foi um atropelamento e tanto! Agitado, o animal latia alto e lambia todo o rosto do dono, de tamanha felicidade que estava sentindo. Quando conseguiu sentar-se no piso, Roland o abraçou. Clarisse e Giselle chegaram depois, ofegantes.

— Você demorou muito para sair — a afilhada conseguiu dizer. — Pax queria invadir o avião. Os seguranças quase nos colocaram para fora.

Pardon... Eu peguei no sono — ele justificou, tentando levantar. A felicidade de Pax era implacável.

As duas moças estenderam as mãos para ajudá-lo e Roland aproveitou para abraçá-las.

Je vous... — começou Roland, ainda confuso com a fala. — Senti falta de vocês.

— Nem me fale... — Giselle comentou entredentes, permitindo-se repousar a cabeça no peito de Roland. — Tive que segurar os surtos da Clarisse sozinha.

— Como foi a sua viagem? — Clarisse perguntou em voz alta, para que o comentário da melhor amiga fosse ignorado.

— Eu não pisava em minha terra natal há cinco anos e me surpreendi como tudo parecia igual — Roland resumiu. Tinha um sotaque francês forte, depois de quase duas semanas falando apenas seu dialeto. — E como passaram este tempo em que estive fora?

— Nos viramos bem, até — disse Clarisse, encolhendo os ombros.

Roland desconfiou, pelo tom de voz dela e pelo comentário anterior de Giselle. Olhou diretamente para a amiga de sua afilhada, que balançava a cabeça, fazendo sinal de que não tinha sido tão bem assim.

J'hallucine! — ele falou, se divertindo e expressando que não acreditava na jovem Bertrand.

— Clarisse passou os últimos dias enfiada no escritório, procurando por mais mensagens escondidas entre os livros das estantes — Giselle contou, escondendo os lábios com a mão e desviando do ataque de Clarisse, que tentavam calá-la. — Ela quebrou uma parede, Roland! Dá para acreditar? Achei que ia destruir a casa!

— Sua fofoqueira! — a Bertrand repreendeu entredentes, ainda tentado calar a amiga sem machucá-la.

Giselle tomou Clarisse pelo punho e mostrou as mãos dela para Roland.

— Olha esses calos! Desde que conversou com os tios, está com uma ideia louca na cabeça de que precisa remexer no passado.

Roland pigarreou e começou a puxar sua mala para a saída, antes que aquela algazarra aumentasse, pois os seguranças do aeroporto já estavam rodeando-os por causa de toda a comoção que as duas moças estavam fazendo. Entendeu o ponto e se decidiu que, mesmo que os outros não concordassem, contaria tudo o que sabia.

Allez! — ele chamou. — Estou morrendo de fome. Parece que perdi bastante coisa e ficaria feliz se me contassem no caminho.

— Vai ter uma galera lá na casa da vovó — Clarisse contou, enquanto caminhavam para o estacionamento. — Sabe como ela não perde a oportunidade de cozinhar para um batalhão! Os pais da Giselle, a tia Luíza e tio Tomas já estavam lá, quando a gente saiu, e a vovó também convidou mais alguns dos seus colegas de trabalho.

Roland se divertiu.

— Agradeço muito o que estão fazendo por mim, mas... Poderia me deixar em casa?

— Eu sei que você deve estar muito cansado, mas consegue um tempinho para conversar comigo? — Clarisse pediu.

— Daremos um jeito, oui? — Roland garantiu. — Só preciso de um bom banho e um prato de comida da Cecília e estarei pronto pra te ouvir.

Enquanto a afilhada dirigia pela Marginal Tietê, Roland observou a cidade. O contraste entre São Paulo e sua querida Saint-Flour era enorme e ele desacostumou-se com buzinas, sirenes, burburinhos e xingamentos. A cidade dos seus antepassados era calma e quieta. Os rios eram limpos, o vento tinha cheiro de flores e os pássaros cantavam todas as manhãs.

A cidade mais rica do Brasil era um punhado de cinzas com fedor de bueiro.

Giselle ficou quieta, sentada no banco de trás, acariciando os pelos do pescoço de Pax e observando Roland de soslaio, sentindo o coração palpitante. O que é isso? — ela perguntou para si mesma, lutando outra vez contra aquele impulso. — Acho que estou imaginando coisas. Já tenho problemas demais para ficar pensando bobagens...

Roland olhou para trás e a encontrou olhando para ele.

Ça va? — ele perguntou, completamente descontraído. Tinha um carinho especial pela moça, tanto quanto tinha por sua afilhada. Praticamente viu as duas crescerem e ele as admirava, cada uma por suas peculiaridades.

A jovem loira prendeu a respiração e corou diante daquela pergunta tão simplória. A voz de Roland a atingiu em cheio e ela se sentiu cativa do olhar daquele homem. Limitou-se a assentir rapidamente com a cabeça e então se forçou a desviar a atenção para a rua, sentindo as maçãs de seu rosto arderem.

Ai que droga... — lamentou. — Ele é um homão mesmo.

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