O Alvorecer de Earis

By soukevem

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Alô, queridos O que você faria se fosse parar em um planeta totalmente desconhecido? Enquanto investigam o mi... More

Prefácio
Prólogo
- 1.Retalhos -
- 2.Amizades -
- 3.Aconchego -
- 4.Desabafos -
- 5.Memórias -
- 6.Irritação -
- 7.Sombras -
- 9.Dúvidas -
- 10.Timbres -
- 11.Embrulhos -
- 12.Anotações -
- 13.Cicatriz -
- 14.Impactos -
- 15.Preocupações -
Nota do autor e algumas divagações
- 16.Despertar -
- 17.Compromisso -

- 8.Ansiedade -

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By soukevem

Clarisse teve que disputar espaço na cama com seu pequeno irmão e o grande cachorro. Eles a venceram e a jovem ficou imóvel por horas, pensando em como lidar com os seus traumas até o amanhecer. O som da respiração do irmão e os roncos do cachorro, de alguma forma foram reconfortantes, mas suas costas doíam tanto que foi obrigada a levantar.

Contorceu-se para fora dos cobertores, lutando contra o peso de Pax, que resmungou e saltou para o chão, onde alongou o dorso e bufou para que a mulher o deixasse sair para o quintal.

Após colocar os óculos, Clarisse caminhou descalça pelo corredor e desceu as escadas com a mente aérea. Tinha muito sono, mas, se não conseguiu dormir enquanto estava na cama, não adiantaria insistir. Decidiu superar o desgaste mental com algum esforço físico.

Desorientada e andando sob a parca luz que atravessava as janelas, passou pelo único vaso de planta viva que ela tinha em casa e pisou numa poça gelada que quase a fez escorregar e cair. Clarisse sentiu um arrepio dos pés à cabeça quando o cheiro da urina do cachorro atingiu seu nariz.

Pax, seu cretino! — ela berrou.

O Pirineus, que já estava na cozinha, não compreendeu o porquê de Clarisse estar gritando com ele. Deu um latido e arranhou a porta, pedindo para sair. A mulher foi até ele na ponta dos pés e aos resmungos, deixando pegadas por onde passava. Ela espumava de raiva.

— Some da minha frente — falou, seguido de um longo suspiro. A ira esvaiu como uma bexiga furada e ela se limitou a lavar os pés e limpar a casa, como se essas ações pudessem colocar os seus pensamentos no lugar.

Abriu as janelas com estrondo e o vento entrou pela sala de estar, balançando levemente as cortinas e algumas folhas de papel que estavam sobre a mesa ao centro. Estava frio e o céu estava repleto de nuvens densas e encardidas pela luz da cidade. Havia um ipê-amarelo do outro lado da rua, que naquela época do ano não estava florido e parecia uma árvore morta, com galhos escuros e quase fantasmagóricos em dias de neblina.

Clarisse iniciou uma série de alongamentos para colocar o corpo no lugar e então foi até o escritório, onde pegou, na estante, um dos livros que falava sobre animais. Escreveu tudo o que se lembrava do sonho em seu diário e se deteve numa pesquisa sobre lobos.

Vida, curiosidades, lendas e cultura. Cruzava cada anotação que fazia ao longo da pesquisa com o sonho e, lá pelas nove horas da manhã, August apareceu no escritório e sentou-se ao lado dela. O menino havia acabado de acordar e ainda esfregava os olhos, na tentativa de se situar com o que estava acontecendo. Sua irmã estava rodeada por uma papelada.

— Sabia que a mordida dos lobos é quase duas vezes mais forte que a dos cães domésticos? — ela contou, notando a presença dele — Já levei uma e dói demais! Achei que minha perna fosse cair!

August fez uma expressão de horror ao imaginar a cena. Conhecia a cicatriz, mas a irmã não falava sobre como aconteceu tão abertamente para ele.

— Ah... desculpe — ela pediu, ao notar o abalo no semblante de seu irmão caçula. — Quando você ficar grandinho, eu conto como aconteceu.

O irmão se levantou e acenou. Ele não estava assustado, ou nada do tipo, já que era um menino muito corajoso! Foi ao banheiro para escovar os dentes, deixando Clarisse sozinha, que se voltou ao turbilhão de pensamentos que zuniam em sua cabeça como um enxame de abelhas. Ela continuou sentada no chão, olhando para o teto, com os livros ainda abertos ao seu redor. Teorias se formavam em sua cabeça, uma após a outra, mas nada fazia sentido.

Gostaria de entender tantas coisas! Por que fui enviada para a Academia? Meus pais realmente precisavam esconder os motivos? Seria tão mais fácil se eles fossem sinceros comigo... Entra e sai ano e eu continuo sem respostas.

Suspirou e se colocou de pé, inquieta.

Essa coisa toda me dá dor de cabeça. Dormiria por uma semana se pudesse, mas quero aproveitar mais tempo com o August e ver se descubro o que deixa ele irritado na escola.

Pegou o celular.

Será que a Giselle está em casa? O que ela dirá, quando eu contar que sonhei com a Melanie?

"— Tua amiguinha não sai da tua cabeça, ehn?" —

lembrou da voz de Giselle e se permitiu rir.

Sacudiu a cabeça com força e se largou na cadeira do escritório, debruçando-se sobre a mesa. Quando August voltou, sentou-se ao lado da irmã e ficou observando os livros no chão. Não entendia para quê tanta coisa aberta se ela só podia ler uma de cada vez.

Ainda debruçada, Clarisse virou o rosto para ele.

— Estou pesquisando umas coisas, mas não estou conseguindo assimilar — ela explicou, olhando para August e vendo a confusão em seu rosto. — Talvez entenda amanhã, depois de descansar um pouco. Minha mente está em parafuso.

'Trabalhar?', o caçula sinalizou, preocupando-se com o horário. Até onde ele sabia, Clarisse deveria ter deixado ele com a vovó ou a Giselle, para ir para o escritório.

— Vou trabalhar de casa e preciso estudar para a prova de recuperação. Mas antes, vamos ver o que a gente consegue fazer pra comer — ela falou, menos empolgada do que parecia. — Saco vazio não para em pé.

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O dia correu rapidamente a partir dali.

Clarisse se debruçou sobre o projeto e o enviou para a chefe conferir. Depois se lançou nas anotações das aulas do professor de urbanismo, mas seu rendimento foi péssimo e ela desistiu. Pediria ajuda à Giselle depois. Então tentou acompanhar August e Haroldo num filme de animação, mas sua mente estava tão cansada que ela dormiu no sofá. Quando acordou, o irmão chorava durante a cena em que Woody e sua turma de brinquedos estavam de mãos dadas à caminho da fornalha.

Céus! Essa cena é de destruir o coração! — Clarisse pensou, esfregando os olhos.

— Já está anoitecendo? — perguntou, num tom de surpresa. — Preciso ver se a chefe me respondeu. Deixou a porta aberta para o Pax? Ele fez xixi na planta que a vovó me deu.

O cachorro estava deitado no canto da sala, observando os dois e livre de culpa.

Quando o filme acabou, eles voltaram para o escritório e o cachorro foi para o jardim dos fundos. Clarisse tirou os livros do chão e os colocou empilhados sobre a mesa. Já August, que ainda acreditava que sua irmã estava exagerando na leitura, se sentou numa das cadeiras e começou a desenhar Haroldo e seus outros brinquedos enfrentando um urso de pelúcia malvado e seu exército.

Com a mente descansada, a Bertrand mais velha pensou que conseguiria enxergar a pesquisa por outra perspectiva, mas foi igualmente malsucedida.

— Eu só posso estar vendo isso da maneira errada — ela concluiu.

O menino não se manifestou, pois estava imerso na própria tarefa e decidia se faria seu tigre Haroldo com uma capa de super-herói ou não. Clarisse continuou falando sozinha.

— Sinto que sim... E talvez precise de ajuda.

Ela colocou a mão no bolso da calça em busca do celular e sentiu o seu antigo pingente, que agora era uma chave. Enquanto não conseguia um novo colar para ele, Clarisse o carregava com as chaves do carro para não perdê-lo.

Ainda não sei para que serve e nem tenho cabeça para pensar nisso — a mulher sentenciou.

Por fim, pegou o celular e o colocou sobre a mesa. Ia ligar para Giselle, mas foi novamente interrompida pelos pensamentos sobre o sonho.

— Se a Melanie estava presente, esses lobos são os que me atacaram na Academia — Clarisse folheou um dos livros sobre animais, enquanto pensava em voz alta. — Não era exatamente a lembrança do que aconteceu, mas por que estou recordando daquele lugar? Isso também me faz lembrar como era desconfortável estar cercada de mentiras. Os professores escondiam um milhão de coisas da gente, por causa dos protocolos de segurança e blábláblá. Era um saco!

August desviou o olhar do desenho e começou a encarar a irmã, que persistia em dialogar sozinha.

Clarisse suspirou.

— E tenho certeza que eles não foram os únicos que esconderam coisas de mim... — ela admitiu, mas sem perder o raciocínio. — Meu palpite é que o papai e a mamãe são o ponto de partida desse mistério e vou encontrar alguém que me esclareça o que os dois estavam fazendo exatamente. Eles deviam desabafar sobre os problemas que estavam passando. Papai lidava com as coisas sozinho, mas a mamãe não.

Clarisse fechou o livro com um baque, pegou o celular e buscou a lista de contatos.

— Eu nem me lembro se ela tinha amigas... E os únicos amigos que eu sei que papai tinha eram o Roland, que está bem longe e ocupado demais para eu importuná-lo com minhas ideias de jerico, e a tia Luíza... — Clarisse olhou a caixa de mensagens. Havia uma dúzias delas de Luíza, que ela não respondeu.

Naquele momento, Pax entrou farejando no escritório. Abanou o rabo ao ouvir o nome do dono, mas não demonstrou a felicidade que isso lhe causou. Tinha acabado de mastigar algumas folhas no jardim, perto das roseiras espinhentas e sem flores, e deitou num dos cantos do ambiente para observar os irmãos Bertrand. A jovem se levantou e começou a caminhar de um lado para o outro, pensativa. Olhava as prateleiras repletas de livros na esperança de que houvesse alguma pista ali, mas eram tantos que nem sabia por onde começar.

Então pegou o celular outra vez.

— Preciso de sua intuição — ela gravou em áudio para Giselle.

August chamou a atenção da irmã e mostrou seu desenho de Haroldo e seus brinquedos contra o exército do urso malvado.

— Caramba, August! Isso está bom demais! — ela elogiou, num tom de surpresa. — Mas sabe o que é pior do que um urso malvado? Uma irmã faminta!

E então investiu contra ele num ataque de cócegas. Ela o agarrou, o puxou para cima e mordeu levemente o braço do menino, que gritou rindo.

Pax latiu em advertência para os dois, mas ouviu o barulho no portão e se levantou, saindo do escritório apressadamente. Ele latiu enquanto descia as escadas e, segundos depois, ouviram o som do portão se fechando. Clarisse foi atender e August decidiu começar outro desenho. Levantou-se e foi até a estante mais próxima, procurando algum livro com imagens e se lembrou que Roland costumava contar histórias sobre sua terra natal: a França. Então o garotinho pensou que retratar alguma paisagem seria um bom presente para o padrinho.

Como era pequeno, puxou a cadeira de escritório e subiu nela para alcançar os livros. Foi lendo as lombadas — pois Clarisse o ensinou parcialmente, apesar da tenra idade — até encontrar algum que falasse sobre o país. Havia apenas um. Ele tentou puxá-lo, mas era um pouco pesado e ele acidentalmente o deixou cair no chão. O menino se assustou e rapidamente desceu da cadeira para recolher o objeto antes que Clarisse voltasse e então notou que uma folha se desprendeu de dentro do livro.

Ela era velha, amarelada e tinha duas palavras que August não conhecia. Como não sabia se o papel era parte do livro ou se alguém o colocou lá, teve medo de que Clarisse brigasse com ele. Sua irmã tinha muito zelo com todas as coisas que pertenceram aos pais. Sendo assim, guardou a folha dobrada entre as páginas do livro como se nada tivesse acontecido e voltou à mesa, para desenhar.

Sua irmã apareceu logo depois, seguida por Giselle, e o menino apressadamente puxou os materiais de desenho para perto, na tentativa de encobrir suspeitas, com o coração a ponto de saltar pela boca.

— Aí está o meu artista favorito — Giselle anunciou, abraçando o menino e enchendo as bochechas do pequeno Bertrand de marcas de batom. Ela encarou a pilha de livros sobre a mesa com um ar de surpresa e então se sentou na cadeira ao lado de August. — Mulher, por que tu estás tão pilhada dessa vez? O que há de tão especial e novo nesse pesadelo? No fundo, todos são iguais.

— Estou cansada de não entender.

— Até aí, eu compreendo. Mas por que só agora?

— Me sinto inquieta desde que aquilo aconteceu com o meu pingente de folha e sinto que ainda tem mais mistérios nisso tudo. Você não sente? Contar a história para a Ana me fez reatar aquela pulga atrás da orelha, sabe? Eu só... não sei por onde começar.

— Eu não engulo essa história desde quando tu me falaste que teus pais eram cientistas. Daí pra frente foi só ladeira abaixo.

— Gostaria de ter falado sobre isso com eles... — lamentou.

— Clarisse, tu tinhas quinze anos e estava vivendo uma aventura na Academia. Via teus pais algumas semanas por ano e eu tenho certeza de que a última coisa que tu querias era perguntar como estava o projeto deles.

— Eles também não davam muita abertura para isso... — Clarisse tentou se justificar.

— Apesar de se sentir excluída no começo, tu só falavas daquele lugar, não se lembra? — Giselle confrontou, tentando trazê-la à razão. Não adiantava remoer o passado.

Clarisse se sentiu encurralada.

— Como conseguiu continuar sendo minha amiga? — ela perguntou, desanimada.

— Eu era burra — a amiga respondeu num tom divertido e sem rodeios, como se fosse óbvio. — Tudo indicava que tu irias desaparecer no mapa pra nunca mais voltar, mas eu ainda te amava por alguma razão.

— Ah, como você é fofa! — Clarisse provocou.

— Não vem com essa ladainha pra cima de mim, não! — Giselle falou, erguendo as mãos para manter a amiga longe de si. — Apesar da Melanie parecer tua favorita, crescemos juntas e eu não permitiria que nenhuma piá de prédio norte-americana separasse a gente. E ainda bem que persisti, já que fui eu quem segurou a tua barra quando tudo deu errado.

A Bertrand balançou a cabeça, concordando com a amiga. Não queria desenvolver essa conversa para lá de batida. Reafirmar-se constantemente era um traço tóxico de Giselle, que só escancarava o quanto ela era insegura sobre o próprio valor como pessoa. Clarisse a amava como uma irmã de sangue e demonstrava isso com frequência. Não deveria ser o bastante?

A loira se deu por satisfeita e voltou a olhar os livros, folheando-os um a um e lendo as anotações no diário da Bertrand, que parou de provocá-la e permaneceu quieta por um tempo.

— E o que a sua intuição diz sobre os meus sonhos? — Clarisse perguntou, quebrando o silêncio. Massageava o pescoço no lugar onde o colar machucou sua pele.

— Que tu estás maluquinha.

Foi a vez de Clarisse rir, mas lamentando-se.

— Disso eu sei! Mas fala sério.

— Já pensou que seus pais podem ter deixado mais alguma pista pra ti, além daquela chave? Ela não é autoexplicativa.

— Tentei bastante e não cheguei numa solução.

— Tu és criativa e tenho certeza que conseguirá pensar ou se lembrar de algo. Tem muita coisa que pode passar uma mensagem secreta! Algo que eles sabiam que só tu entenderás.

— Sempre acreditei que meus pais levaram tudo o que envolvia o trabalho deles no dia em que partiram. Agora não tenho certeza... Mas olha o tamanho dessa casa!

— Então tu não estás tão desesperada assim, já que estás arrumando desculpas. — Giselle confrontou outra vez, desviando a atenção dos livros e olhando para a amiga. — Já posso ir? A consultoria custou cem reais.

— Calma lá. Eu tô bem desesperada — a Bertrand articulou.

— Não acredito que o Julian e a Rebeca te deixariam às cegas — Giselle continuou. — Tua mãe te deu um colar que é uma chave bem legal pra alguma coisa, não é? Só resta descobrir o que abre. Já testou as gavetas e portas da casa? E o que será que teu pai te deixou?

— Não... — disse, reflexiva. — E bem, como vou saber? Mas pensando agora... lembro que meu pai tinha um cofre em algum lugar.

— Talvez seja isso, minha filha! — Giselle se entusiasmou pelas duas. — Então para com todo esse drama. Eu ajudo você.

Clarisse cruzou os braços, novamente desanimada.

— E quer começar por aqui? — Viu a amiga encarando as estantes.

— Desmancha essa cara borocoxô e vamos trabalhar! — Giselle encorajou, enquanto prendia os cabelos. — Tem bastante coisa pra conferir, eu admito. Quantos são mesmo? Não me canso de me admirar com a quantidade de livros na biblioteca dos teus pais. Será que o cofre está atrás das estantes?

— Perto de dois mil livros mofando. Tentei tirá-los daí pra limpar algumas vezes, mas isso acaba com meu nariz e passo a semana espirrando. Deixei a janela aberta o dia inteiro, para o ar circular e eu conseguir ficar aqui dentro.

— Eu sei que tu amas e proteges as coisas dos teus pais, mas não acha que a gente poderia separar alguns desses livros pra doação? — Giselle sugeriu com delicadeza. — O desapego pode ser libertador pra ti.

— Talvez... — Clarisse respondeu da boca para fora. Não tinha qualquer intenção de se livrar de nada. — Se não tiver nenhum segredo escondido no meio deles.

August, embora estivesse desenhando um Haroldo gigante sobre a Torre Eiffel, ouvia a conversa das mulheres com atenção e entendeu que talvez o papel que ele encontrou fosse o que Clarisse estava procurando. Com o coração acelerado, por medo de levar uma bronca da irmã, ele puxou a manga da blusa de Giselle, aproveitando que ela estava sentada ao seu lado.

— O que foi, querido? — a jovem perguntou.

O menino folheou o livro sobre a França e mostrou a folha amarelada. Giselle fez menção de pegá-la, mas a Bertrand foi mais rápida e a pegou primeiro, levando o papel à altura dos olhos.

— Santa grosseria! — Giselle se queixou, mas tomou um ar mais brando ao ver o rosto da amiga. — O que é?

— Não sei. Onde achou isso? — Clarisse perguntou para August.

O irmão indicou o livro.

— É uma enciclopédia? — Giselle perguntou, dando uma olhada na capa e arqueando as sobrancelhas. — França, ehn? Que específico... Será que tem algum motivo pra isso?

Clarisse franziu o cenho e desdobrou o papel. Nele estavam escritas apenas duas palavras numa letra que ela reconhecia como ninguém. Seu pai escreveu aquilo.

Auvergne. Monchaux.

— É um rabisco? — Giselle perguntou, curiando o pedaço de papel nas mãos da melhor amiga. Por dentro, ela comemorava. Sua intuição acertou outra vez. Mantendo o autocontrole, continuou: — Foi bem conveniente encontrar isso justamente quando você estava a ponto de pirar.

Clarisse não disse nada.

— O que tu achas que é?

Continuou em silêncio.

— Alô-ou? — a amiga insistiu. — Terra para cadete Bertrand, no mundo da Lua. Aqui é o Centro de Operações. Câmbio.

— August, deixe-me ver essa enciclopédia — a Bertrand mais velha pediu, ignorando a amiga sem querer.

Giselle abriu caminho para a Bertrand, que se sentou na cadeira e folheou as páginas da enciclopédia. Ela se debruçou sobre o livro e procurou, com afinco, um mapa geral da nação, com os nomes das regiões e cidades.

Auvergne... Monchaux... — ela praticamente sussurrou, passando o dedo indicador pelo mapa.

— Teve alguma ideia? — Giselle perguntou, apoiando o braço no encosto do assento de Clarisse e se debruçando com ela.

— São províncias francesas — respondeu sem tirar os olhos da página.

— Pera... Você tinha decorado isso? — a loira indagou, com admiração pela perspicácia de Clarisse em entender aquele rabisco e rapidamente associá-lo a lugares reais.

Auvergne é a província da cidade natal do Roland, Saint-Flour — Clarisse citou. — Fica no centro da França e ele sempre se gaba sobre o lugar, quando conta alguma história. Não se lembra?

— Ah... não. Não me lembro — Giselle admitiu. — Tenho memória de passarinho. Tu sabes.

— Sua intuição é um dom mais que suficiente. Se tivesse mais, você seria insuportável. Deus não dá asas às cobras. — Clarisse comentou, se divertindo.

— Me pegou. — A loira ergueu as mãos.

— E Monchaux... — Clarisse prosseguiu e então se virou para a estante, inclinando a cabeça para ler as lombadas. — Pode pegar aquele livro de astronomia ali?

— Astronomia? — Giselle seguiu o olhar dela e se dirigiu à estante. — O que isso tem a ver?

— Quero esse com letras escritas em dourado na lombada — a Bertrand apontou, ignorando a pergunta para não desfazer a linha de raciocínio. — Esse perto do seu ombro! E pega aquele atlas, duas prateleiras acima, por gentileza.

— É sério? — ela se queixou, erguendo-se na ponta dos pés para alcançar o livro. Com dificuldade, puxou o livro com a ponta dos dedos até pegá-lo com firmeza. Depois de um suspiro de alívio, entregou ambos para a amiga.

Clarisse agradeceu, colocou o livro de astronomia sobre os outros e o abriu onde se encontravam os mapas estelares do Hemisfério Norte. Procurou no atlas um mapa-múndi, desdobrando a folha, que agora era bem maior que o livro. Passou alguns minutos analisando as imagens com tanto afinco que sua testa enrugou.

— Tu sabes o que está fazendo? — Giselle perguntou.

— Estou forçando minha memória a se lembrar, eu acho. — Clarisse arrumou os óculos sobre o nariz e abriu mais espaço na mesa. Ligou um programa de computador que mostrava o céu noturno e esperou ele carregar.

— Se lembrar de quê, criatura?

— Do céu da Academia — ela respondeu metodicamente, colocando as coordenadas de Monchaux no programa. — Torça para eu estar certa.

Giselle fazia cara de paisagem. Sempre ficava perplexa quando Clarisse começava a cruzar informações dessa maneira e, como se alguém acionasse um interruptor para ligar uma lâmpada, tudo se iluminava. Ela agia da mesma maneira com os trabalhos da faculdade.

Esperaram o programa carregar. Clarisse, cruzando os dedos; e, Giselle, sentindo a ansiedade crescer na barriga. Quando as estrelas apareceram, Clarisse suspirou e soltou o corpo sobre a cadeira. De repente, ela conseguiu uma resposta.

— Você estava certa — ela falou, sem acreditar. Colocou a mão sobre a testa. — Papai me deixou uma pista apontando a direção da Academia e o Roland.

— Mas isso faz algum sentido?

— Não! Essa é a questão.

Ué! — Giselle não se conformava com o descontentamento da amiga.

— Sempre achei que a Academia ficava no norte europeu — Clarisse comentou, conformada. — Eu não me esqueceria dessas constelações. Mas o que meu pai quis dizer com isso? Quando Roland voltar de viagem, vou pedir ajuda sobre essa questão.

— Nega, tu és brava demais! — a amiga tentou animá-la. — Acabou de dar mais um passo.

— Foi só a minha intuição e blábláblá — Clarisse comemorou, um pouco desapontada, mas sem perder a chance de alfinetar a amiga. — Mas um passo para onde?

— Por que tu não pareces feliz? Não tem como resolver todo esse mistério de uma vez. Precisa ser paciente.

Clarisse cruzou os braços.

— O Roland esteve ao meu lado desde que meus pais partiram. Ia à casa da vovó para nos visitar, dava presentes ao August e me levava para passear... Tenho tantas memórias com ele!

— Bom... Ele é o teu padrinho. Deveria ser assim.

— Então por que ele esconde essas coisas de mim? Omitindo, sei lá, mesmo sabendo o quanto isso me incomoda. Não poderia ter me dito nada antes?

Giselle abraçou Clarisse.

— Aí, amiga... Eu entendo como tu estás decepcionada. Deve haver algum motivo pra ele ter guardado esses segredos de você, se é que guardou. Poderás perguntar quando ele voltar.

— E vou mesmo! Só não sei o que fazer até lá. — Clarisse se levantou e foi até a janela do escritório. Mordeu os lábios em sinal de nervosismo, enquanto analisava suas opções. — Bom, preciso de respostas. Se eu forçar a barra, sei quem poderá me dar algumas.

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