Marcas do Passado: Amargas Le...

By caiocavellari

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Expulso de casa pelo pai homofóbico e sem o apoio de nenhum familiar, Lucas decide abandonar São Paulo para c... More

~. Prólogo .~
~. Capítulo 1 .~
~. Capítulo 2 .~
~. Capítulo 3 .~
~. Capítulo 4 .~
~. Capítulo 5 .~
~. Capítulo 6 .~
~. Capítulo 7 .~
~. Capítulo 8 .~
~. Capítulo 10 .~
~. Capítulo 11 .~

~. Capítulo 9 .~

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By caiocavellari

Nunca, em toda minha vida, cheguei a pensar que seria vítima de tanto sofrimento. Se já não bastasse a humilhação que passei no seio de minha própria família, agora estava passando fome e caso não conseguisse um emprego, provavelmente dentro de alguns dias seria obrigado a morar debaixo da ponte.
Era bem verdade que o prazo que Seu Joaquim estipulara para o pagamento das diárias já havia acabado e que ele não me jogara para fora do pulgueiro que chamava de hotel, entretanto eu não sabia até quando a boa vontade do velho iria durar. O que seria de mim se mais uma vez fosse expulso, dessa vez não por ser homossexual e sim caloteiro?
Uma vez que o pacote de biscoitos de maisena chegara ao fim e eu não tinha sequer dez centavos para pleitear um pedaço de pão na padaria, a fome virou minha companheira inseparável e eu cheguei a cogitar a possibilidade de procurar restos de comida no lixo, todavia não tive coragem de fazê-lo. Era humilhante demais, era degradante demais.
Até quando eu viveria à mercê de tantas privações? Até quando eu estaria fadado a conviver com tal situação vexatória, indigna e calamitosa? Seria pedir demais para que tudo voltasse ao normal?
Certa tarde, incapaz de controlar a fome que sentia, saí da hospedaria disposto a pedir ajuda a uma alma caridosa. Eu precisava comer, no entanto mal conseguia andar devido a fraqueza que sentia. Já fazia quatro dias que eu não colocava nada sólido na barriga.
Com as vistas escuras, as pernas fracas e o corpo lavado por suor gelado que saía de meus poros, segui com meus planos e não desisti de encontrar algum alimento. Talvez a ideia de revirar o lixo não fosse tão ruim assim, quem sabe eu pudesse encontrar algo apetitoso como um sanduíche ou qualquer coisa do tipo?
Depois de meia hora de caminhada, avistei uma igreja católica e resolvi entrar. Eu precisava pedir forças a Deus, precisava pedir ajuda e não existia lugar melhor do que uma capela para se conectar com as energias superiores.
Chegando lá, fui até próximo do altar, me ajoelhei e comecei a rezar. Meu desespero era tão grande que comecei a chorar compulsivamente e acabei chamando a atenção do padre da paróquia.
— Você está bem, meu filho? — perguntou o sacerdote.
Não tive coragem de responder, apenas balancei a cabeça negativamente. Será que ele podia me ajudar? Será que eu devia contar o que estava acontecendo?
— Você está pálido — analisou o homem, aparentemente preocupado. — Está passando mal?
— Fome — foi o que consegui balbuciar.
— Venha comigo, meu filho — o padre estendeu a mão direita e abriu um sorriso paternal.
Não pensei duas vezes. Ainda com as pernas trôpegas, com a visão turva e o corpo gelado feito picolé, segui o servo de Deus até a sacristia enquanto agradecia em pensamento por minha prece ter sido atendida tão rapidamente.
— Sente-se, eu vou preparar alguma coisa para você comer.
Obedeci e aguardei com ansiedade o regresso do religioso. Será que finalmente eu tiraria a barriga da miséria?
— Venha, meu filho, venha — ele chamou minutos mais tarde, novamente com um sorriso sincero na face.
O sacerdote me guiou até uma mesa revestida por pães, bolos e alguns salgados. Minha boca ficou cheia d'água e meu estômago roncou alto quando avistei aquele verdadeiro banquete.
— Pode se servir à vontade — o clérigo abriu os braços, ainda com o sorriso nos lábios.
Com o rosto novamente lavado pelas lágrimas, agradeci ao padre com o olhar e não me fiz de rogado. Sem perder mais tempo, literalmente caí de boca na refeição e automaticamente constatei que nunca dei o devido valor ao pão de cada dia.
Embora ainda não soubesse o nome daquele bondoso homem, eu já me sentia eternamente grato por aquele gesto de caridade. O padre não falou nada, apenas me fitou com serenidade enquanto eu me alimentava.
— Obrigado — finalmente agradeci, quando engoli a última gota do maravilhoso suco de laranja. — Muito obrigado.
— Está se sentindo melhor?
— Sim — respondi com sinceridade. — Muito melhor, graças a Deus.
— Como você se chama? — indagou o cara, ainda com as mãos cruzadas sobre a mesa.
— Lucas.
— Muito bem Lucas, já está satisfeito? — ele abriu outro sorriso.
— Já sim senhor, muito obrigado — voltei a agradecer. — O senhor salvou a minha vida.
— É o meu dever ajudar a quem precisa. Onde você mora?
— Na verdade sou de São Paulo — sinalizei.
— E o que você está fazendo tão longe de casa? — estranhou o sacristão.
Fiquei calado por um instante. Doía tocar naquele assunto.
— Não quer contar?
— Não é isso — engoli em seco. — É que é muito doloroso.
— Quem sabe eu possa ajudá-lo se você desabafar? — ponderou o homem.
Eu não tinha nada a perder se contasse o que ocorrera em minha vida, então abri o jogo e realmente desabafei com aquele bom amigo. Enquanto eu falava, ele não me interrompeu e tampouco tirou os olhos dos meus um segundo sequer.
— E então eu resolvi vir pra cá — comentei. — Há pouco mais de um mês moro em uma hospedaria na Lapa, mas estou prestes a ser despejado porque não tenho mais dinheiro para pagar as diárias. Preciso de um emprego, padre.
— Seu pai não devia ter colocado você para fora de casa, meu filho — ele ficou comovido.
— Meu pai é muito conservador e preconceituoso, padre. Ele não aceita ter um filho homossexual.
— E sua mãe?
— Minha mãe não fica atrás, ela não me ajudou em praticamente nada — fechei a cara ao relembrar. — Veja, ela queria que eu procurasse um pastor para que ele me "libertasse", ela disse que estou doente.
— É difícil para os pais aceitarem essa situação, Lucas — ele tentou defendê-los e com isso me deixou ligeiramente irritado. — Você tem que entendê-los e, acima de tudo, perdoá-los.
— Perdoá-los? — sorri com desdém. — Não sei se sou capaz, padre
— E por que não? — o líder da igreja me fitou com tanta intensidade, que cheguei a pensar que ele queria ler meus pensamentos.
— A surra de Elias não doeu apenas em meu corpo, doeu também em minha alma — fui honesto. — Acredito que nem mesmo o tempo seja capaz de apagar estas marcas do passado, padre.
— O tempo é o nosso aliado, Lucas — discordou o sábio. — Nada melhor que o tempo para transformar as feridas da alma em tênues cicatrizes, meu rapaz.
— E como uma verdadeira cicatriz, essas amargas lembranças ficarão em minha alma e em minha mente por toda a eternidade — externei. — Foi muito difícil passar por tudo isso, portanto é impossível perdoar os Rigozzi.
— É melhor deixarmos os dilemas de lado — proferiu o discípulo do Senhor. — Apenas tente não sofrer mais e confie em Deus, Ele irá ajudá-lo.
— Eu confio muito, padre — falei a verdade. — Tanto confio que resolvi entrar aqui ao invés de seguir por outros caminhos.
— Talvez você tenha sido guiado, nada nessa vida acontece por acaso.
— É verdade — concordei.
— Você disse que precisa de um emprego? — ele voltou a falar após alguns segundos de silêncio.
— Preciso urgentemente — confessei.
— E o que você sabe fazer?
— Não tenho experiência em nada, mas posso aprender — sequei discretamente o suor das mãos no jeans. — Na situação em que me encontro não posso me dar ao luxo de escolher emprego, tenho que aceitar o primeiro que aparecer.
— Sendo assim, acho que posso ajudá-lo — o idoso olhou para o teto com a fisionomia pensativa
— Verdade, padre? — empolgado, meu coração deu um salto.
— Verdade sim, você pode me acompanhar por um instante?
— Claro, claro que sim — fiquei verdadeiramente animado e esperançoso.
Pulei da cadeira e sacudi o pó de pão que ficara em minha camiseta. Eu estava disposto a ir até o fim do mundo para conseguir um emprego, por mais simplório que fosse.
Com a barriga cheia, consegui enfrentar o sol e o calor do Rio de Janeiro sem sofrer nenhuma consequência. Bendita hora em que entrei naquela capela, não sei o que aconteceria comigo se eu continuasse a andar pelas ruas e avenidas com a fome que estava sentindo.
Sem fazer a menor ideia de onde estávamos indo, acompanhei o padre de perto sem fazer questionamentos. Confesso, porém, que a curiosidade falava mais alto a cada passo que nós dávamos. Será que ele me recomendaria em alguma empresa?

aTomara!

Tudo foi esclarecido quando nós adentramos em uma espécie de armazém. O estabelecimento era simpático e possuía uma vasta variedade de produtos que as pessoas costumam utilizar no dia-a-dia. Gostei do recinto.
— Padre José, que prazer em vê-lo! — exclamou uma senhora aparentemente muito simpática. — Sua bênção.
— Deus a abençoe, Dona Helena.
Helena? Então o nome dela era Helena? Seria a mulher a dona daquela mercearia? Seria ali o meu primeiro local de trabalho?
— Preciso de sua ajuda, minha querida — ouvi o cochicho de José.
— Em que posso servir? — a dita cuja ignorou minha presença.
— Esse rapazinho precisa de um emprego — o homem foi direto ao ponto.
Helena olhou para mim pela primeira vez e em seguida abriu um largo sorriso. Incomodado e ao mesmo tempo constrangido por depender de terceiros, não tive alternativa a não ser abaixar a cabeça. Por que as coisas tinham que ser tão difíceis?
— De um emprego? — ela ficou espantada. — Mas tão novinho assim?
— Ele está passando por dificuldades — sibilou o celibatário. — O pobrezinho está sozinho no mundo e não tem o que comer, por isso precisa trabalhar para sobreviver.
— Bem, não posso oferecer muita coisa — a carioca ficou muito séria. — Quase não há o que fazer por aqui.
— Eu aceito qualquer coisa — falei com a voz trêmula e embargada. — Qualquer coisa mesmo, senhora.
— Bem, na verdade, seria muito bom ter uma presença masculina no mercado, mas eu não posso pagar um salário alto.
— Não tem problema, senhora — me precipitei. — Não tem problema, eu aceito o que a senhora puder pagar.
Ela me fitou com compaixão e suspirou profundamente. Eu estava esperançoso, entretanto mantive os pés no chão. E se não desse certo?
— Está bem, não posso negar um pedido do Padre José! — Helena voltou a sorrir, dessa vez com ainda mais entusiasmo.
Quase não consegui acreditar. Seria aquilo verdade ou tudo não passava de um sonho? Eu estava empregado? Era isso?
— Acalme-se, Lucas — orientou o religioso. — Não é sonho, você finalmente conseguiu o emprego que necessitava.
Extremamente emocionado, passei a agradecer feito uma vitrola quebrada. Tanto a empresária, quanto o padre, acharam graça do meu excesso de agradecimento.
— Ora, não precisa agradecer — ela sorriu de forma bondosa. — É um prazer ajudar.
— E quando ele pode começar? — perguntou Padre José.
— Quando ele quiser — a caridosa senhorinha voltou a rir.
— Posso começar agora mesmo se a senhora desejar — prontifiquei-me.
— Não — ela balançou o indicador da mão esquerda. — Vá descansar, você pode vir amanhã pela manhã.
— Como quiser, senhora — preferi não contrariá-la.
— Amanhã combinamos o valor do pagamento.
— Tudo bem, amanhã estarei aqui bem cedo.
— Pode vir às nove, não precisa ser muito cedo porque só abro nesse horário.
— Fechado — assenti. — Muito obrigado, senhora, muito obrigado mesmo.
— É um prazer poder ajudar — repetiu ela.
— Deus abençoe esse coração bondoso, Dona Helena — elogiou o padre.
— Este é apenas meu papel como cristã, Padre José — Dona Helena beijou a mão do sacerdote.
— Muito obrigado, Padre José — agradeci com sinceridade. — O senhor salvou minha vida, de verdade.
— Não agradeça a mim, agradeça a Deus — ele apertou meu ombro. — Foi Ele que te trouxe até minha paróquia.
— Pode ter certeza que irei agradecer.
— Tenho certeza que as coisas vão melhorar para você, confie em Jesus.
— Eu confio — olhei no fundo dos olhos dele. — E muito.
Ainda na calçada do comércio de Dona Helena, o clérigo me abençoou com o sinal da cruz. Algo em meu interior me dizia que a minha vida nunca mais seria a mesma a partir daquele momento, eu só não conseguia entender porquê.

* * *

Aparentemente aliviado, Seu Joaquim parou de me ameaçar de despejo quando soube que eu conseguira emprego e finalmente colocaria nossas contas em ordem. Fiz questão de pedir para que ele somasse minha dívida e me comprometi a fazer o acerto assim que recebesse meu primeiro ordenado.
Menos angustiado e com a sensação que minha vida enfim começara a entrar nos eixos, não consegui pregar os olhos naquela noite. Ansioso e ligeiramente apreensivo, não parei de pensar no trabalho no armazém de Dona Helena.
Como seria meu primeiro emprego? Qual a função que eu ocuparia? Qual seria o valor de meu salário? Será que aquela mulher era realmente caridosa ou tudo não passara de teatro devido a presença do Padre José?
Independentemente de qualquer coisa, eu estava grato por tudo o que ocorrera naquele dia. Embora já estivesse novamente faminto, eu não podia negar que a fome não era a mesma de outrora. O que teria acontecido se eu não tivesse entrado naquela igreja? Será que eu realmente seria obrigado a procurar comida no lixo?
Felizmente essa e outras dúvidas nunca seriam respondidas, afinal, a sorte batera em minha porta e eu já estava empregado. Daquele momento em diante, eu só devia pensar nos fatos concretos do presente, fazer planos para o futuro e deixar as marcas do passado no lugar que lhes era cabível.

NA MANHÃ SEGUINTE

Dona Helena me recepcionou com o mesmo sorriso simpático do dia anterior e logo de cara pediu para que eu ficasse à vontade, no entanto não foi tão fácil assim. Me senti esquisito e sem saber o que fazer perante tal situação.
— Não se preocupe, logo você aprenderá tudo — disse ela, após alguns minutos. — Primeiro quero combinar o valor de seu pagamento.
Sem fazer exigências, aceitei a quantia irrisória que ela ficou de me pagar a cada sete dias. Era um valor muito pequeno, contudo me ajudaria a quitar a dívida com Seu Joaquim e a comprar comida nos momentos que a fome apertasse,
— Qual sua idade, Lucas? — perguntou a empresária, momentos mais tarde.
— Dezesseis — respondi.
— Tão novinho — Dona Helena balançou a cabeça em sinal de protesto. — O que aconteceu com sua família, meu querido?
— Fui expulso de casa, Dona Helena — falei sem fazer rodeios.
— Sangue de Cristo tem poder — com os olhos esbugalhados, a senhorinha bateu nas próprias coxas. — O que você fez de errado para ser expulso de casa, menino?!
Assim como fiz com Padre José, contei a ela toda a minha história até aquele momento. Eu só não esperava que ela fosse começar a chorar ao descobrir que eu fora espancado por meu próprio pai.
— Você é tão bonito — ela não se conteve e me abraçou. — Pobrezinho, seu pai não podia ter feito isso com você!
— Já estou ficando acostumado — abri um sorriso amarelo.
— Não se preocupe, Lucas — a carioca fungou. — Tenho certeza que seus pais voltarão atrás e lhe aceitarão do jeito que você é.
— Eu não tenho tanta certeza assim — murchei os ombros. — Meus pais sempre preferiram meu irmão.
— Seu irmão é o primogênito?
— Nós somos gêmeos.
— Oh, que gracinha — com os olhos marejados, ela bateu palmas. — Sempre quis ter filhos gêmeos, mas não foi da vontade de Deus.
Minha patroa e eu conversamos por várias horas e falamos sobre diversos assuntos. Foi assim que descobri que ela herdara a gestão daquele negócio após o falecimento de seu esposo e que aquela era sua única distração, haja visto que não possuía filhos e seus irmãos moravam em Minas Gerais.
Além disso, ficou acordado que eu seria uma espécie de ajudante geral; que ficaria responsável desde a limpeza até o pagamento das contas da empresa — o que me deixou feliz. Era bom receber a confiança de alguém depois de tudo o que ocorrera em São Paulo.
— Agora você pode almoçar, Lucas — falou ela por volta do meio dia.
Fiquei calado, sem esboçar reação. Almoçar? Como?
— Acho que você não tem dinheiro para comer, né? — analisou a dona do mercado.
Balancei a cabeça negativamente e abaixei os olhos. A vergonha tomou conta de cada centímetro de meu corpo.
— Tome aqui, meu filho — a senhorinha tirou uma cédula do caixa. — Vá almoçar em paz.
— O-Obrigado, Dona Helena — engoli em seco.
— E esse valor é extra, hein? — ela sorriu.
— Nem sei como agradecer — meus olhos ficaram rasos d'água. — Prometo que volto o mais rápido possível.
— Pode fazer uma hora de almoço, não se preocupe.
— Tudo bem — concordei. — Com licença, Dona Helena.
Com a barriga encostada nas costas, me dirigi ao único restaurante que conhecia e lá solicitei o tradicional prato feito com arroz, feijão, bife e fritas. Fazia tanto tempo que eu não saboreava uma refeição completa, que a vontade que eu tinha era de engolir sem mastigar.
Ao invés de ser humano, Dona Helena parecia mais um anjo de Deus. Caridosa, bondosa e meiga por natureza, logo no primeiro dia de trabalho ela chegou a comentar que me considerava seu filho. Fiquei encabulado com tal revelação.
— Esse dinheiro é para você jantar — falou ela no fim do expediente.
— Não precisa, Dona Helena — meu rosto esquentou.
— Precisa sim, eu faço questão.
Aceitei a grana porque não me restou alternativa, entretanto não a utilizei para comer e sim para comprar materiais de higiene pessoal. Sempre fui um cara vaidoso e asseado, não sei o que seria de mim se eu ficasse sem desodorante no calor que fazia no Rio de Janeiro.
— O senhor fez as minhas contas, Seu Joaquim? — perguntei ao pegar a chave na recepção.
— Sim, está anotado nesse papel — disse o velhote de forma rabugenta.
Ergui as sobrancelhas. Não imaginei que o valor passasse de duzentos reais. Será que ele colocara juros?
— Não vou poder pagar tudo de uma vez, mas prometo que não demorarei a acertar tudo — sinalizei.
— Quem esperou até aqui, pode esperar por mais uma semana — retorquiu o mal-humorado.
— Obrigado, Seu Joaquim — não pude deixar de sorrir. — O senhor não imagina o quanto está me ajudando.
— De nada,rapaz, de nada.
Seu Joaquim, como qualquer cristão, precisava de dinheiro para sobreviver e nada mais justo que ele cobrasse a quem lhe devia. No fundo, ele era uma boa pessoa.
Não apenas naquela, como em todas as noites subsequentes, consegui dormir o sono dos justos. A coisa só mudou de figura quando a última semana de agosto se fez presente.
Com a aproximação de meu aniversário, mergulhei em uma profunda melancolia e automaticamente passei a pensar nos Rigozzi com maior regularidade. Meu irmão gêmeo insistia em povoar minha mente e não cansava de aparecer em meus sonhos.
Eu até tentava, todavia não conseguia me livrar do fantasma de Marcelo e tudo ficava ainda pior quando o via através de meu reflexo no espelho. Por que nós tínhamos que ser tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes?
Pela primeira vez na vida, nós passaríamos o aniversário separados e tudo me levou a crer que o adolescente estava feliz com a nossa separação, até mesmo porquê o sonho dele era ser filho único.
E dezessete anos depois, esse sonho tornara-se realidade. Não restava dúvidas, com certeza o preferido de Elias e Elizabeth encontrava-se em êxtase por conta de meu desaparecimento. A recíproca, é claro, não era verdadeira neste caso.
Por piores e mais cruéis que fossem, os Rigozzi eram a minha única família e me faziam falta. Eu não sabia se era idiota por ainda amá-los, burro por sentir a falta neles ou as duas coisas juntas. Por que eu não podia simplesmente esquecê-los?
Outro que não saía de minha cabeça era Iury. Eu daria a vida para saber notícias de meu melhor amigo, entretanto não podia me dar ao luxo de comprar uma porcaria de cartão telefônico para entrar em contato com o paulista. Definitivamente, as coisas não estavam fáceis para mim.
Foi por isso que, na antevéspera de meu aniversário, resolvi escrever uma carta ao neto de Dona Neuza. Por mais arcaico que este método de comunicação me parecesse, infelizmente não havia outra maneira de falar com garoto e obter informações de meus familiares.
Sendo assim, quando cheguei do trabalho arranquei uma folha limpa de meu caderno e me pus a escrever. Antes mesmo de finalizar a carta, minhas lágrimas caíram e borraram a tinta da caneta. Iury me fazia falta, talvez as coisas fossem mais fáceis se ele estivesse ao meu lado na Cidade Maravilhosa.
Desabafar naquela válvula de escape me fez bem, pelo menos até postar a carta no início da tarde do dia trinta. Será que a mesma demoraria a chegar? Eu estava na torcida para que isso não acontecesse.
Aquele foi um dia estranho, longo e extremamente vazio. Era fato, meus pais e meu irmão realmente me faziam falta naquela semana. Eu não queria que fosse assim.
Quando meu relógio de pulso apitou, revelando a chegada do dia trinta e um, cheguei a ouvir as vozes e o riso de meus pais no exterior de meus aposentos. Por um breve momento, por um átimo de segundo, acreditei que eles abririam a porta e pulariam em minha cama para me desejar feliz aniversário. É claro que não foi assim.
Eu estava sozinho, mais sozinho do que jamais estivera em toda minha vida. Não havia ninguém para me desejar parabéns e talvez sempre fosse assim a partir daquele momento. Eu precisava me acostumar.
Em prantos, me entreguei ao desespero e deixei a dor tomar conta de cada centímetro de meu ser. Por que as coisas tinham que ser assim? Por que eu estava abandonado na chegada de meu décimo sétimo aniversário?
— Feliz aniversário, Lucas Rigozzi — minha voz estava irreconhecível. — Parabéns por você ser a pessoa mais solitária e infeliz que existe na face da Terra.

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