~. Capítulo 9 .~

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Nunca, em toda minha vida, cheguei a pensar que seria vítima de tanto sofrimento. Se já não bastasse a humilhação que passei no seio de minha própria família, agora estava passando fome e caso não conseguisse um emprego, provavelmente dentro de alguns dias seria obrigado a morar debaixo da ponte.
Era bem verdade que o prazo que Seu Joaquim estipulara para o pagamento das diárias já havia acabado e que ele não me jogara para fora do pulgueiro que chamava de hotel, entretanto eu não sabia até quando a boa vontade do velho iria durar. O que seria de mim se mais uma vez fosse expulso, dessa vez não por ser homossexual e sim caloteiro?
Uma vez que o pacote de biscoitos de maisena chegara ao fim e eu não tinha sequer dez centavos para pleitear um pedaço de pão na padaria, a fome virou minha companheira inseparável e eu cheguei a cogitar a possibilidade de procurar restos de comida no lixo, todavia não tive coragem de fazê-lo. Era humilhante demais, era degradante demais.
Até quando eu viveria à mercê de tantas privações? Até quando eu estaria fadado a conviver com tal situação vexatória, indigna e calamitosa? Seria pedir demais para que tudo voltasse ao normal?
Certa tarde, incapaz de controlar a fome que sentia, saí da hospedaria disposto a pedir ajuda a uma alma caridosa. Eu precisava comer, no entanto mal conseguia andar devido a fraqueza que sentia. Já fazia quatro dias que eu não colocava nada sólido na barriga.
Com as vistas escuras, as pernas fracas e o corpo lavado por suor gelado que saía de meus poros, segui com meus planos e não desisti de encontrar algum alimento. Talvez a ideia de revirar o lixo não fosse tão ruim assim, quem sabe eu pudesse encontrar algo apetitoso como um sanduíche ou qualquer coisa do tipo?
Depois de meia hora de caminhada, avistei uma igreja católica e resolvi entrar. Eu precisava pedir forças a Deus, precisava pedir ajuda e não existia lugar melhor do que uma capela para se conectar com as energias superiores.
Chegando lá, fui até próximo do altar, me ajoelhei e comecei a rezar. Meu desespero era tão grande que comecei a chorar compulsivamente e acabei chamando a atenção do padre da paróquia.
— Você está bem, meu filho? — perguntou o sacerdote.
Não tive coragem de responder, apenas balancei a cabeça negativamente. Será que ele podia me ajudar? Será que eu devia contar o que estava acontecendo?
— Você está pálido — analisou o homem, aparentemente preocupado. — Está passando mal?
— Fome — foi o que consegui balbuciar.
— Venha comigo, meu filho — o padre estendeu a mão direita e abriu um sorriso paternal.
Não pensei duas vezes. Ainda com as pernas trôpegas, com a visão turva e o corpo gelado feito picolé, segui o servo de Deus até a sacristia enquanto agradecia em pensamento por minha prece ter sido atendida tão rapidamente.
— Sente-se, eu vou preparar alguma coisa para você comer.
Obedeci e aguardei com ansiedade o regresso do religioso. Será que finalmente eu tiraria a barriga da miséria?
— Venha, meu filho, venha — ele chamou minutos mais tarde, novamente com um sorriso sincero na face.
O sacerdote me guiou até uma mesa revestida por pães, bolos e alguns salgados. Minha boca ficou cheia d'água e meu estômago roncou alto quando avistei aquele verdadeiro banquete.
— Pode se servir à vontade — o clérigo abriu os braços, ainda com o sorriso nos lábios.
Com o rosto novamente lavado pelas lágrimas, agradeci ao padre com o olhar e não me fiz de rogado. Sem perder mais tempo, literalmente caí de boca na refeição e automaticamente constatei que nunca dei o devido valor ao pão de cada dia.
Embora ainda não soubesse o nome daquele bondoso homem, eu já me sentia eternamente grato por aquele gesto de caridade. O padre não falou nada, apenas me fitou com serenidade enquanto eu me alimentava.
— Obrigado — finalmente agradeci, quando engoli a última gota do maravilhoso suco de laranja. — Muito obrigado.
— Está se sentindo melhor?
— Sim — respondi com sinceridade. — Muito melhor, graças a Deus.
— Como você se chama? — indagou o cara, ainda com as mãos cruzadas sobre a mesa.
— Lucas.
— Muito bem Lucas, já está satisfeito? — ele abriu outro sorriso.
— Já sim senhor, muito obrigado — voltei a agradecer. — O senhor salvou a minha vida.
— É o meu dever ajudar a quem precisa. Onde você mora?
— Na verdade sou de São Paulo — sinalizei.
— E o que você está fazendo tão longe de casa? — estranhou o sacristão.
Fiquei calado por um instante. Doía tocar naquele assunto.
— Não quer contar?
— Não é isso — engoli em seco. — É que é muito doloroso.
— Quem sabe eu possa ajudá-lo se você desabafar? — ponderou o homem.
Eu não tinha nada a perder se contasse o que ocorrera em minha vida, então abri o jogo e realmente desabafei com aquele bom amigo. Enquanto eu falava, ele não me interrompeu e tampouco tirou os olhos dos meus um segundo sequer.
— E então eu resolvi vir pra cá — comentei. — Há pouco mais de um mês moro em uma hospedaria na Lapa, mas estou prestes a ser despejado porque não tenho mais dinheiro para pagar as diárias. Preciso de um emprego, padre.
— Seu pai não devia ter colocado você para fora de casa, meu filho — ele ficou comovido.
— Meu pai é muito conservador e preconceituoso, padre. Ele não aceita ter um filho homossexual.
— E sua mãe?
— Minha mãe não fica atrás, ela não me ajudou em praticamente nada — fechei a cara ao relembrar. — Veja, ela queria que eu procurasse um pastor para que ele me "libertasse", ela disse que estou doente.
— É difícil para os pais aceitarem essa situação, Lucas — ele tentou defendê-los e com isso me deixou ligeiramente irritado. — Você tem que entendê-los e, acima de tudo, perdoá-los.
— Perdoá-los? — sorri com desdém. — Não sei se sou capaz, padre
— E por que não? — o líder da igreja me fitou com tanta intensidade, que cheguei a pensar que ele queria ler meus pensamentos.
— A surra de Elias não doeu apenas em meu corpo, doeu também em minha alma — fui honesto. — Acredito que nem mesmo o tempo seja capaz de apagar estas marcas do passado, padre.
— O tempo é o nosso aliado, Lucas — discordou o sábio. — Nada melhor que o tempo para transformar as feridas da alma em tênues cicatrizes, meu rapaz.
— E como uma verdadeira cicatriz, essas amargas lembranças ficarão em minha alma e em minha mente por toda a eternidade — externei. — Foi muito difícil passar por tudo isso, portanto é impossível perdoar os Rigozzi.
— É melhor deixarmos os dilemas de lado — proferiu o discípulo do Senhor. — Apenas tente não sofrer mais e confie em Deus, Ele irá ajudá-lo.
— Eu confio muito, padre — falei a verdade. — Tanto confio que resolvi entrar aqui ao invés de seguir por outros caminhos.
— Talvez você tenha sido guiado, nada nessa vida acontece por acaso.
— É verdade — concordei.
— Você disse que precisa de um emprego? — ele voltou a falar após alguns segundos de silêncio.
— Preciso urgentemente — confessei.
— E o que você sabe fazer?
— Não tenho experiência em nada, mas posso aprender — sequei discretamente o suor das mãos no jeans. — Na situação em que me encontro não posso me dar ao luxo de escolher emprego, tenho que aceitar o primeiro que aparecer.
— Sendo assim, acho que posso ajudá-lo — o idoso olhou para o teto com a fisionomia pensativa
— Verdade, padre? — empolgado, meu coração deu um salto.
— Verdade sim, você pode me acompanhar por um instante?
— Claro, claro que sim — fiquei verdadeiramente animado e esperançoso.
Pulei da cadeira e sacudi o pó de pão que ficara em minha camiseta. Eu estava disposto a ir até o fim do mundo para conseguir um emprego, por mais simplório que fosse.
Com a barriga cheia, consegui enfrentar o sol e o calor do Rio de Janeiro sem sofrer nenhuma consequência. Bendita hora em que entrei naquela capela, não sei o que aconteceria comigo se eu continuasse a andar pelas ruas e avenidas com a fome que estava sentindo.
Sem fazer a menor ideia de onde estávamos indo, acompanhei o padre de perto sem fazer questionamentos. Confesso, porém, que a curiosidade falava mais alto a cada passo que nós dávamos. Será que ele me recomendaria em alguma empresa?

Marcas do Passado: Amargas Lembranças - Em DegustaçãoUnde poveștirile trăiesc. Descoperă acum