ACASALAMENTO: Lua Cheia

Von JadeJssica

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A era da escravidão no Brasil não é fácil. Dandara, uma negra, sabe muito bem disso. Sua rotina... angustiant... Mehr

LUA CHEIA
P R Ó L O G O
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C A P Í T U L O 02

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Von JadeJssica

— Apareceu repentinamente, capitão! — Francisco, o imediato e braço direito do capitão se forçou a falar — Estava tudo bem! Seguimos perfeitamente nosso curso. As estrelas estavam brilhantes acima de nossas cabeças e então… e aí…

— Ficou escuro — completou o piloto, mais calmo e nem menos preocupado.

    Ambos os homens deveriam, no mínimo, manter a compostura. Porém, o brilho no olhar não engana ninguém. Uma anomalia aquática estava arrastando a frota para o desconhecido não havia como escapar. Certamente tentaram e fracassaram miseravelmente.

     Quanto mais tempo se passa, mais o medo do desconhecido cria raízes. A tripulação experiente já havia feito o percurso de Brasil e Portugal e Portugal e Brasil várias vezes. Talvez seja sorte terem sobrevivido ou apenas competência de um time exemplar. Ou outra coisa…

    Porém, os eventos recentes não eram comuns. Os homens não deixavam de comentar e lembrar quando nuvens sombrias irromperam da noite estrelada. As águas antes pacíficas se transformaram tão repentinamente que… que…

— Onde estamos? — que estavam perdidos.

     Como Capitão, Alexandre tem que manter o controle começando por recuperar a calma e juntar o máximo de informações. Se atualizar de tudo a cada momento enquanto se preocupa em não desabar.

    A resposta de seu piloto não chegou tão rápida quanto deveria.

— Não sabemos.

— Quantos mortos?

     O imediato respondeu:

— Não sabemos, ao certo. Há muitos desaparecidos e alguns dos escravos não…

— Quantos feridos? — Ele interrompe.

— Não sabemos, senhor.

— Como não sabem?! — A calma se desmancha na forma de um soco na mesa cheia de papéis.

     Havia mapas ali que não faziam mais sentido e, ao lado, uma rústica bússola que sempre estava com ele. Ela nunca falhou. Mas naquele momento, a seta girava, girava e girava; ora em sentido horário e ora em sentido anti-horário. Quase todos os instrumentos de navegação se tornaram inúteis.

     Alexandre suspirou. Ele é um prestigiado Capitão, motivo pelo qual fora escolhido para comandar toda uma frota em direção a Portugal. Ele não podia perder o controle. Não iria.

— Ao menos… como estão as nossas supervisões?

    Silêncio. Silêncio pesado e tenso se fixou entre os homens. Seu imediato encarava o navegador, buscando palavras mais agradáveis.

— O senhor não consideraria avaliar as anotações? — Sugere cautelosamente o piloto.

     Ele se referia ao diário pessoal e algumas outras anotações vindas de capitães anteriores. Alexandre é um homem que gosta de pegar experiência de seus antecessores e, no entanto, coisas como aqueles diários mais pareciam histórias mentirosas sobre monstros marinhos e piratas chifrudos.

     Nada sobre aquela coisa abaixo do navio.

— Talvez — Mas ele se viu sussurrando.

     Alexandre elevou os braços para a cabeça e arrumou seus cabelos castanhos num bolo desgrenhado acima da nuca. Alguns poucos fios castigados pelo sol caíram sobre a testa bronzeada de alguém frequentemente queimado pelo sol.

    Ele se debruçou na borda do convés superior e sentiu a brisa suave em seu rosto como um alívio ao calor. Tudo o que ele queria era uma banheira de água fresca e Dandara em seu colo.

     Basta percorrer rapidamente o olhar pelo ambiente para encontrá-la.

    A escrava estava bem. Apenas um corte em uma de suas sobrancelhas finas com o resquícios de sangue seco. Ela estava no convés inferior, ingênua e inocente sobre o seu olhar vigilante.

     Mas curiosa.

    Ela olhava para baixo, um tanto ousada em sua maneira de se debruçar sobre as bordas do navio. As vezes, a moça madura e mais do que pronta para se tornar mãe parecia uma criança sem consciência de seus riscos. Infantil demais.

    Naquele momento, ela só queria ver mais daquela coisa embaixo da embarcação: a poderosa corrente intimidadora. A sensação de ver uma força da natureza em pleno estado natural é horripilante. Não havia nomes conhecidos para aquele fenômeno aquático. Seria um tornado de água? Uma tromba d'água? Parecia.

     Dandara o comparava com um imenso tornado gordo, extenso e sem fim feito unicamente de água. Não que ela já tivesse visto um pessoalmente. Era impossível, mas nenhum navio afundou ao navegar por sua extensão. Ainda. 

     A mulher era hipnotizada pela brutalidade em contraste com a beleza. Contudo, não deixava de se perguntar: o que aconteceria se alguém caísse na água?

    Ela se inclinou mais como se fosse capaz de ver até onde o navio talvez tocasse a corrente.

     Letal. Legal

     Se alguém caísse, deveria ser desmembrado, talvez? Ela sente uma ligeira coceira aos ligamentos de seus braços e pernas, imaginando-os arrancados do restante do corpo. Talvez, com aquela força, o pescoço se quebre antes.

     Contudo, o afogamento seria inevitável. Dandara ouviu que talvez fosse um dos finais mais tranquilos além do sono onde nunca se acorda. Ela já se afogou antes, então sabe a sensação.

    Ela se inclina um pouco mais com os pés se separando do chão. A água balança suavemente o navio e a gravidade dá uma leve sensação de enjôo e adrenalina ao seu corpinho fraco.

     Mas… e se o corpo chocasse contra o navio? Contra as cracas e seja lá o que torna tão perigoso ficar embaixo de uma embarcação de tamanho porte em movimento. A corrente girava, girava e girava, aguçando ainda mais sua curiosidade. O que ela ouviu sobre os tornados era que eles tiravam pessoas, animais e até casas do chão e os lançava ao céu.

     A corrente girava, girava e girava.

     Ela se inclinou um pouco mais. Sua bunda ficou empinada para o sol e um novo movimento do navio quase fez seu coração saltar pela boca. Ela olhou e observou para onde aquilo arrastava toda uma frota.

     Ao nada.

     A corrente girava, girava e girava.

     Não havia nada além de água, céu azul e a borda do mundo onde o sol iria, em breve, se por. Talvez aquela corrente lançasse seu corpo para a frente e ela teria que se preocupar apenas com as prováveis dores de seus membros arrancados.

     Mas não deve durar muito, certo? Ninguém com o pescoço quebrado ou a cabeça arrancada dura muito mais que uns segundos. O pior fim seria o esquartejamento com talvez alguns minutos de azar.

     A corrente girava, girava e girava.

     Ela mordeu os lábios.

     Só um empurrão.

     O navio balançou e balançou.

     Unzinho.

      Um movimento qualquer.

     Ela raspou as unhas na madeira… para um impulso.

      A corrente girava, girava e girava.

Dandara! — A mulher arregala os olhos e cambaleia para trás, seguindo o movimento da embarcação.

     Inferno! Se o navio tivesse balançado para o outro lado. Ah, paraíso!

     Ela se virou para o dono da voz. Um marujo grande, robusto e belo com seu característico bronzeado. Ele vestia uma camisa larga de mangas que deveriam ser compridas mas que agora estavam amassadas a altura dos cotovelos. Apenas uma apertada calça cinzenta esculpia suas pernas musculosas.

     Dandara pousou ambas as mãos à frente do corpo.

Alexandre.

     Por um momento, ele fica em silêncio. O Capitão é considerado bonito pelos padrões comuns de homens. Tinha grossas sobrancelhas escuras e olhos castanhos como a terra úmida. Seu rosto não era nem redondo, nem quadrado e as laterais estavam cobertas com alguns poucos centímetros de barba perfeita. Mas o charme era o bigode debaixo do nariz. No entanto, às vezes, ela tinha a impressão de que ele conseguia desvendar seus pensamentos perversos com o olhar, nem de longe, comum.

     Ele não é humano.

— O que está a fazer?

— Eu tava curiosa — Dandara é gentil, suave e submissa em suas palavras de modo quase hipnotizante. — Que é isso? Eu nunca ouvi falar de uma coisa dessas.

     A face de Alexandre se suaviza.

     Dandara lhe dá as costas e se aproxima novamente da beirada do convés.

— Pra onde tamo indo, Alexandre? Vamo pro fim do mundo ou, sei lá, alguma terra mágica que não conhecemos?

Dandara — ao contrário dela, a voz do homem saiu mais rouca e contida. Ela se arrepiou ao senti-lo tão próximo de suas costas. — Eu gostaria de pedir-lhe desculpas.

     Ela não disse nada. Sua resposta foi endurecer o corpo e passar os magros braços ao redor da cintura enquanto encolhia os ombros.

— Quando a tempestade veio, eu caí em cima de você, machuquei-te e xinguei-lhe. Não foi minha intenção.

     Ela continua em silêncio. Quieta, sem o brilho infantil. Naquele momento, Dandara era como as amarguradas damas da sociedade: contida e submissa.

— Por favor, meu amor, diga algo.

— Você sempre machuca eu — ela abaixa a cabeça, deixando que seus fios encaracolados se desprendam do nó bem feito ao topo da cabeça e caia sobre a testa negra e reluzente. — E eu sempre te perdoo.

     Alexandre pega em seu pulso e puxa Dandara de encontro ao seu corpo. Ele era alto e a envolveu com seu cheiro cítrico e salgado do mar e suor. Ela o envolveu com seus braços frágeis.

— Desculpe-me — ele insistiu.

     Dandara, por outro lado, encara seriamente o oceano enquanto pondera a respeito de seus sentimentos e sentimentos. Ela indaga:

— O que vai acontecer quando o fim do mundo chegar?

— Isso não vai acontecer — ele sussurra.

— Mas e se acontecer?

— Não vai.

— Mas…

— Sem "mas" — sibilou. — Não me conteste, Dandara. Tudo vai ficar bem. Mas, até lá, preciso que contribua com o navio e ajude com a limpeza. E… por favor, fique longe de onde possa cair na água. Sei como você é.

    O cúmulo da imprudência! Dandara não parecia ter medo de nada e isso a deixava ainda mais encantadora, motivo pelo qual recebe tratamento especial.

— Farei tudo que eu puder, meu amor.

— Não quero que faça tudo que puder. Eu exijo que me obedeça!

      Alexandre segurou seu rostinho feminino nas mãos e encarou aqueles grandes olhos negros e brilhantes como duas estrelas gêmeas. Escrava ou não, Dandara tinha a alma tão livre quanto um pequeno pardal despreocupado.

     Ele a alertou:

— Dessa vez, vou puni-la se necessário.

     Embora ela tenha franzido o cenho e concordado, aquele brilho natural de sua alma não diminuiu. Na verdade, se tornou clemente em um pedido silencioso para não subjugar sua natureza.

     Mas era a segurança dela que ele temia.

     O capitão se inclinou e depositou um beijo castro nos lábios carnudos.

— Comporte-se.

     Ele se virou para partir quando ela segurou seu braço, o impedindo.

— Alexandre, essa corrente vai realmente guiar nóis até onde o mundo acaba?

— Não se preocupe com isso — ele lhe deu um sorriso gentil e depositou um beijo nas costas de suas mãos. — Tudo está sob controle.

    Ele se foi.

    Dandara chegou a conclusão de que nada de relevante saiu da boca dele.

*

     No segundo dia, Alexandre conseguiu contabilizar o número exato de mortos, seus recursos restantes e os danos causados em sua frota. Dandara, quase sempre, estava no seu campo de visão e em algum momento, suas perguntas se tornaram as dele. Aquela corrente iria se enfraquecer? Como? Quando? Seria tão turbulento quanto a tempestade? Independente da resposta, todos deveriam estar prontos!

     Então os mastros foram, ao máximo, concertados e as velas reparadas. Mas quando uma semana se passou, algo agitou a curiosidade de Dandara. Algo incomum e, principalmente, doloroso de se ver.

    Começou quando ela viu um verme. Um bicho gordo e branco que se retorcia de um lado ao outro no chão. Ele não estava só. Havia outro e outro chamando a atenção. Logo, uma trilha deles se formou.

    Eram as larvas que se alimentavam da carne pútrida de cadáveres.

     Só então Dandara notou algo que, para sua surpresa, lhe passou completamente despercebido: o odor pungente dos mortos.

     Escravos que sucumbiram ao tormento, à fome e até às doenças faziam peso extra ao navio. Haviam centenas de negros nos porões da frota e agora dezenas eram arrastados pelos próprios familiares a base do chicote até a borda da embarcação. Dandara observou tudo.

     A mulher estava castigada pelo sol em suas costas e exausta ao fazer o que foi ordenado. Ela mantinha uma esponja e um balde de água suja ao seu alcance enquanto limpava — ou tentava limpar — parte do convés quando os bichos foram vistos.

     O primeiro cadáver que ela viu foi de uma menina em decomposição. A quanto tempo ela estava lá embaixo? Será que os pais a viram morrer e apodrecer? Será que tinha pais?

    Ela foi jogada na água.

    A curiosidade estalou e o impulso imprudente a fez esquecer completamente as ordens de Alexandre. O que aconteceu com ela?

— Vamos, Dandara! — Mas Francisco, o imediato, estava atento ao que ela fazia ou deixava de fazer.

    O homem permanecia um bom tempo ao seu lado com uma bugiganga estranha de madeira à frente dos olhos. É grande. Deve ter uns 80 centímetros enquanto olha para a água, o sol, lua ou seja lá o que tem no horizonte.

    Seus cabelos castanhos claros estavam presos abaixo da nuca com um lacinho branco. Francisco não tem barba e a pele já começava a ficar avermelhada pela exposição solar. Dandara o olhou e se perguntou como não estava morrendo de calor dentro de suas elegantes vestimentas. Mas também reparou nos fios rebeldes grudados ao rosto molhado.

     Ele a encarou com seus olhos cor de mel e terra.

— O que foi?

    Dandara, antes de quatro, se ajoelha sentando nos pés.

— Sabe onde nóis tamo?

Nós, Dandara. "Nós".

— Nós. Sabe onde nós tamo?

    Francisco tira aquele treco da frente do rosto numa respiração profunda e exaustiva. O sol parecia igual seguindo seu curso. Mas às vezes, ele se mexia para direções que não deveria. E as estrelas, a noite, cada vez mais desconhecidas com estranhos padrões. A lua estava cada vez mais distante, levando-o a uma conclusão preocupante.

— Muito longe de tudo que conhecemos.

— Longe como? — Dandara não resiste à tentação de perguntar. Na verdade, ela nem fazia muita questão de conter a língua.

     Francisco a olha. A escrava havia deixado a esponja de lado e lhe encarava com seus grandes olhos negros. Ela podia não ser a mais bela das mulheres, mas tinha um hipnotizante charme naquela órbitas em volta de grossas pestanas ainda mais escuras que a pele reluzente.

— Não deveria estar trabalhando, Dandara?

    Seus olhos se tornam mais brilhantes e ela faz um biquinho com os lábios secos.

— Tô com sede.

     O homem sorri.

— Volte a trabalhar e daqui a pouco lhe trago água.

     A recompensa foi o sorriso aberto.

— Te dou um pão se começar a cantar enquanto trabalha — ele propõe.

— Não posso cantar com a boca seca — ela contrapõe. — Preciso de um cantil de água só pra mim. Agora.

Agora?

— Agora.

— Agora não — ele desiste da ideia. — Ah, macaquinha! Volte a trabalhar e pare de me distrair!

     Dandara conteve seu descontentamento e ficou de quatro. Então voltou a esfregar o chão naquela torturante tarde do que acredita ser uma terça-feira — ou seria quarta?

    Não demorou mais do que apenas alguns minutos para que sua atenção fosse desviada totalmente. Outro corpo.

    Não de uma criança. Mas de alguém quase tão impactante quanto. A parte superior quase se desprendia das pernas esqueléticas e uma quantidade nojenta de vermes caía. É o cadáver desnutrido de uma idosa.

    Um escravo em situações não muito melhores a arrastava para as bordas do navio. E então ela teve o mesmo destino curioso da criança quando foi lançada na água.

     Os sons vieram em seguida.

    Era oco. Despertava lembranças de um fazendeiro quebrando, ou talvez, arrancando a cabeça de uma galinha. Incomodado. Francisco se remexeu e torceu o nariz.

      Para evitar o olhar do imediato, Dandara voltou a esfregar o chão. Mais corpos foram arrastados.

     Com o tempo, o ar ficou podre e abafado. O odor da putrefação se misturou com o do suor dos marujos e escravos que talvez nunca tivessem conhecido o banho. Respirar com a boca havia se tornado uma necessidade.

    E Francisco não saiu do lado de Dandara.

     Ele era como um cão de guarda resiliente. Qual deveria ser sua motivação? O homem estava visivelmente incomodado com dois corpos sendo arrastados bem ao seu lado.

    Seria Dandara a resposta para sua perseverança, mais uma vez?

    Ela fazia questão de o testar.

     A escrava sorriu e remexeu os quadris. Ela sentiu o arzinho quente e silencioso sair e logo, seu próprio odor se misturou com o ambiente. Francisco torceu o nariz.

    Para ela, um alívio bem vindo. Mas para ele…

— Puta que pariu! — Ele saiu de perto.

     O sorriso da escrava aumentou. Os corpos foram jogados para a água e ela decidiu que não perderia essa oportunidade. Dandara disparou até a borda, se inclinou e olhou para baixo. O que viu, nem de longe matou sua curiosidade. Apenas parte dela.

     A cabeça de um homem se chocava contra o navio. As cracas presas ali rasgavam a carne e ele foi espremido para debaixo da embarcação. Porém, o pior não foi a cena horripilante à sua frente. Pior era reconhecê-lo como um idoso que deixou para trás apenas um braço com os ossos expostos.

    Pelo menos, já estava morto há muito tempo.

     Nos segundos que se seguiram, nada mais aconteceu. Então então dor lasciva e aguda irrompeu por suas costas. A escrava se encolheu completamente e um chicote estalou ao seu lado.

Dandara! — Um capataz estava atrás dela. — Quais eram as porras das suas ordens?!

     Dandara o reconheceu. Um homem beirando aos trinta anos, careca e de pele avermelhada descascando com o contato do sol. Santiago.

     Ele parecia desgostoso ao flagrar sua desobediência. Mas a escrava duvidava, visto que Santiago mal perdia uma oportunidade de punição, muitas vezes desnecessária.

     Ela jogou uma desculpa:

— Eu tava quase vomitando!

Ah, é?

— Tem bichos pra todo lado — ela aponta para o rastro que os cadáveres deixaram. Santiago não olhou. Não se importou. — Eu não tou me sentindo bem…

— Cale a boca, macaquinha! — O chicote estala no chão.

     Ela se encolhe.

— Por favor…

— De quatro.

     Dandara hesita. O homem inclina a cabeça e sorri revelando a falta de um dente. Ele a desafiava a contestá-lo. 

— De quatro, macaca!

      Não lhe restava mais opções. Ela obedeceu. Dandara sentiu o capataz segurar as bordas de seu vestido maltrapilho. Ele a revelou para o ambiente, expondo sua nudez já que Alexandre a proibia de usar calçolas.

      Suas genitais estava completamente exposta com exceção dos pelinhos negros que começava a crescer ao redor. A escrava olhou para a sua sombra, observou os detalhes da madeira e contou os segundos.

     A primeira chibatada estalou e seu gemido percorreu o ambiente. Dandara colidiu seu abdômen no chão… arranhou a madeira e respirou. Sua carne latejava e queimava violentamente.

— De quatro!

     Ela fez força e obedeceu.

     Três homens observaram quando a segunda chibatada ecoou, cortando as costas cheias de cicatrizes. Ela tombou no chão e apenas uma marca rosada ficou no lugar.

     Mesmo suas punições eram privilegiadas.

— De quatro!

     Ela obedeceu. Mas quando a última chibatada veio, ela tombou e não se levantou.

     Seu sangue não foi derramado, mas a carne foi cortada. Como consolo a dor, ela pousou a bochecha no chão sujo e sentiu a movimentação do navio ao abrir as mãos. Para cima e para baixo. Para o lado e para o outro.

    Sereno e tranquilo.

     Bem em cima da corrente girando, girando e girando.

— Não abuse de seus privilégios, macaquinha — Santiago deu seu alerta e passou por ela, ajeitando a roupa ao redor do corpo. — Anda. Levante-se para trabalhar. Se eu te pegar mais uma vez nas bordas do navio, vou te surrar com minhas próprias mãos.

*

     As horas passaram lentamente. O calor e o fedor se tornaram massivos e a noite ficou abafada. No entanto, foi em meio a escuridão que algo completamente inesperado aconteceu.

     Algo que ninguém ouviu falar e se tornou preocupante.

     Aquele não era mais o seu mundo.

     Não poderia ser.

     Estrelas. Um mar de estrelas fazia um espetáculo no céu como se fosse uma imensa teia de aranha em espiral. Elas brilhavam lindamente ao redor daquilo que deixou toda a tripulação em frenesi.

      Em toda a frota, todos subiram ao convés para ver. Estavam todos completamente assombrados!

      E sabiam, se contasse, ninguém acreditaria.

      A lua.

     Não uma lua.

     Uma segunda lua!

     Parecia muito maior do que a lua branca vista no final do horizonte. Ela era colossal, tão gorda e imensa que dava a impressão que cairia em cima de suas cabeças.

      Era uma lua levemente amarelada.

      Havia crateras cuja cor lembrava o ouro. Mas também era notável um discreto azul marinho no interior de suas lapas. Parte das laterais começava cinzenta e então se tornava negra numa mescla impressionante. Em meio a escuridão é visto crateras menores em dourado reluzente.

      Dandara estava exatamente embaixo da lua e sentiu seu pescoço doer. Quando enfim baixou a cabeça, percebeu que o grandioso satélite não era a única coisa diferente.

     Os murmúrios começaram. Poucos foram aqueles que olharam para baixo. Mas quando olharam…

     Durante a noite, a água estava num tom escuro de azul. Em meio a escuridão, não era possível ver os demais navios da frota sem que estivessem corretamente iluminados. Porém, agora era diferente.

     A lua dourada iluminava o caminho. Mas não era o único brilho presente.

     Dandara suspirou.

     E contra todas as ordens, voltou para as bordas do navio. A água antes escura, agora brilhava.

     Não!

     Não a água. A corrente.

     Aquele imenso tornado subaquático girava, girava e brilhava em um majestoso tom azulado. Os navios fizeram sombras delicadas em suas passagens. Dandara foi mais ousada ao se inclinar e olhar para baixo. A água não estava apenas brilhando. Também estava transparente.

     Alguém tentou puxar a escrava dali. Alguém lhe xingou. Talvez fosse Alexandre ou Francisco. Mas também podia ser Santiago. Ou nenhum dos três. Os murmúrios ficaram mais altos e Dandara passou a ser empurrada de um lado a outro com homens se espremendo para ver o que ela estava vendo.

     Algo tão assombroso que uma segunda lua. Tão chamativo quanto água que brilha como o traseiro de um vagalume.

— Meu Deus! — alguém murmurou.

     Havia algo na água.

— Que porra é essa?

— Capitão!

Capitão!

— Capitão, veja isso!

     Dandara estava simplesmente hipnotizada. A corrente arrastava e destruía tudo que caía em seu leito, com exceção dos navios. Mas ali estava algo vivo.

     Algo imenso.

     Dandara, em algum lugar, escutou a voz do Capitão. E o grande homem parecia simplesmente perplexo.

— Jesus… — foi só o que ele disse.

     Mas Dandara tinha outra palavra para aquilo.

Que lindo…

      Um monstro marinho serpenteava abaixo da frota.

      Em meio aos movimentos da corrente, Dandara conseguia ver uma cabeça alongada como a de um cavalo. Ela viu chifres e um corpo de cobra deslizando dentro d'água. No interior da corrente, onde, talvez, fosse tão calmo como o olho de um furacão.

     Havia filhotes também, serpenteando pelo que parecia ser… ser… o quê? braços? Pernas?

      Era alguma coisa esguia, com chifres, pescoço longo, braços curtos, corpo de cobra e pernas na lateral de um imenso rabo. Era tão grande que poderia engolir um cavalo e passou com seus filhotes na direção contrária aos navios. A frota foi completamente ignorada. 

     Momentos mais tarde, no meio da madrugada, ainda havia perguntas sem respostas. O Imediato passou a descever o que viu desde as coisas mais simples como o que parecia ser tubarões dentro da corrente. A escrava tinha suas dúvidas a respeito disso.

     Ela trabalhava sobre a luz do luar quando Alexandre a procurou. A ambientação estava perfeitamente iluminada para que Dandara conseguisse distinguir o formato másculo do homem, porém, obscura o bastante para esconder traços do rosto e das vestimentas.

     O Capitão gostava de surpreendê-la. Contudo, não daquela vez. Isso só significava uma coisa. Em sinal de submissão, Dandara abaixou a cabeça.

— Tá bravo comigo, Alexandre?

— Você foi pega nas bordas do navio.

— Eu tava passando mal… — Dandara aperta as mãos na frente do útero. — Acho melhor vomitar na água que no barco. Num gosto de limpar vômito.

     Dandara não ousou encarar os olhos de Alexandre, mas pressentia o olhar queimando sua pele. Ela tenta distrair sua mente limpando alguma sujeirinha abaixo das unhas.

— Santiago me informou que você não vomitou.

     Dandara não pensa. Ela só dispara:

— Num tenho nada no estômago pra vomitar.

    Alexandre arqueou uma sobrancelha.

— Nossas supervisões estão curtas.

     Dandara não gasta sua escassa saliva para rebater o argumento. Invés disso, demonstra seu descontentamento cruzando os braços à frente do peito e olhando para qualquer lugar que não seja ele.

     Alexandre chega a piscar os olhos com incredulidade. Suas mãos coçam ao imaginar outra negra fazendo isso… Mas Dandara é Dandara.

     Ela não se importava com as poucas supervisões e a incapacidade de trocar recursos com outros navios da frota. Dandara tem sede e quer água. Dandara tem fome e quer comida.

     A lógica predomina.

     Primeiro vem a dor. Depois a queimação. Em seguida, o rosto começa a pulsar. Dandara tinha certeza que estava olhando para o lado oposto quando sentiu o peso da mão de Alexandre.

      Ela permaneceu séria. Dandara piscou algumas vezes e ousou encarar os olhos escuros do Capitão onde a luz azulada da corrente não alcançava. Os braços voltaram a se fechar em frente ao peito.

— Quero outro capataz de zóio em mim.

— O quê? Isso é alguma exigência, Dandara?!

      Ela piscou mais um pouquinho e descruzou os braços para mantê-los suspensos na frente do corpo.

— Não… Claro que não. É só que… — Ela suspirou. — É só que… Santiago podia ter aberto os botões da minha roupa pra bater na minha costa. Só que ele me deixou pelada no chão. Isso foi safadeza, Alexandre!

     É, o Capitão ouviu falar sobre… A sua frente, feminina e submissa, Dandara lhe direcionou seus grandes olhos brilhantes. A luz ambiente dava um tom peculiar à íris estrelada. Um encanto do qual ele não cairia.

— Coloca outro pra ficar de zóio em mim?

— Se a forma dele te punir lhe incomoda, vai vir até mim e eu mesmo te arrebento caso se aproxime de novo da droga das bordas do navio. Fui, claro, Dandara?

— Mas e se ele vier pra cima de mim? Ele fica me olhando, Alexandre. Ele me colocou daquela forma pra ver minha perereca! É um safado! E se… e se eu for estuprada… — o "de novo" guardou pra si — por ele?

     Alexandre mantinha uma certa distância dela. Ele precisava manter. Pois, quando enfim sucumbiu a um impulso desconhecido, agarrou agressivamente os cabelos de Dandara. A dor em sua bochecha agora poderia ser comparado ao de sua cabeça.

— Por favor, corrija-me na possibilidade de eu estar errado. Você está dando motivos pra ele te olhar assim?

— N-Não! Não, não, não! Eu não faço nada.

— Então por que ele te olharia com desejo se você não estivesse provocando?

— E-Eu não estou.

     Dandara virou bruscamente a cabeça para o lado oposto. Seu rosto formigou e ardeu. Alexandre havia lhe batido, novamente. E de novo. De novo.

     O Capitão lhe empurrou até que a escrava chocasse as costas contra a parede do convés superior. Em seguida, as mãos se fecharam no pescoço magro da mulher. Os dedões apertaram um ponto delicado e as bofetada se tornaram os menores dos incômodos.

— Se você abrir as pernas para outro homem, eu te mato. Eu te mato, Dandara!

     Por favor…

     Por favor…

     Por favor, me mate!

     Ela queria dizer, mas nada além de ar saiu de seus lábios. Nada além de curtas e significativas palavras arrastadas:

— E-Eu não fiz nada!

— Acho bom.

     O capitão enfim lhe soltou e Dandara caiu de joelhos numa frenética tosse. O ar pesado e massivo do fedor ambiente nunca foi tão bem vindo aos pulmões sedentos.

     Porém, ele ainda não havia terminado. Alexandre lhe agarrou pelos cotovelos e lhe arrastou até seus aposentos particulares onde ela receberia uma lição sobre não provocar outros homens.

     Uma lição que recebeu de quatro, similar a quando Santiago lhe açoitou. 

      E de outras formas humilhantes.

     Contudo, a lição que ela recebeu ajoelha perante ao belo homem, Dandara levou com gosto. Seja para dentro da garganta, no rosto ou até nos olhos. Ela não se importava, pois, em seguida, poderia abrir a boca e pedir:

— Meu amor, posso trabalhar durante a noite?

     Pois a noite fresca também era obscura o suficiente para ninguém notar sua extrema curiosidade a respeito da corrente. Para ninguém reparar até que seja tarde demais…

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