Nativa - ShortFic

By princesstrikru

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Uma pequena estória sobre o encontro de Lauren, voluntária de uma ONG, e Camila Aram, Índigena não civilizada. More

Notas Iniciais
Capítulo 1
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5

Capítulo 2

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By princesstrikru

A caminhada deve ter durado quase 3h, e isso me deu a certeza que nem mesmo se eu tentar escapar vou conseguir achar o caminho de volta, a mata é extremamente fechada, e não ter caminho demarcado no chão mostra que raramente eles saem da aldeia. Meus pés doem de uma forma irritante, não bastasse a caminhada, ainda tem o peso das vacinas e da minha mochila, quase sorri ao ver a aldeia mais a frente, como a maioria ela é disposta em um círculo e as ocas que nesse caso variam entre os formatos retangulares e ovais, estão espalhadas pelo círculo, deixei meus olhos correr pelo povo, acredito ter uns 60, e todos pelados, alguns homens estão mais a frente, com peitos inflados, demonstrando coragem, provavelmente os guerreiro da aldeia, os outras se amontoam em um só lugar, quase subindo um em cima do outro pra olhar pra mim, como se eu fosse um extraterrestre. O cacique parou e então todos se afastaram de mim, ele falou alguma coisa incompreensível pra mim, e então 10 deles vieram na minha direção, as coisas foram arrancadas das minha mãos e por instinto acabei me encolhendo, o que fez um deles se assustar e correr pra longe de mim, não sei quem está com mais medo, eu ou eles, me mantive quieta até a inspeção acabar, agradeci que eles não conseguiram abrir a maleta, afinal poderiam quebrar alguma coisa.

— Mambira. - Anzu disse e apontou pra mim.

Franzi o cenho e vi uma uma mulher sair do meio das outras, ela me olha em uma mistura de curiosidade e talvez… medo? Seus olhos são em um castanho intenso, se tivesse que descrevê-los em uma palavra seria; devoradores, é como se com eles ela pudesse ver através do meu corpo, minha alma, ela parou bem na minha frente, ergueu o dedo indicador e com receio começou a aproximá-lo do meu rosto, ela faz isso de uma forma tão lenta, como se tivesse medo de encostar em mim, para adiantar o processo eu movimentei a cabeça pra frente e cortei a distância entre seu dedo e minha bochecha, esse meu ato fez ela pular de susto e gritar, no susto eu gritei junto.

— Camila Aram! - Anzu repreendeu o que fez a garota parar de gritar no mesmo instante. 

O resto do que ele falou eu não compreendi, mas fez a garota a minha frente retomar sua postura e de uma forma mais confiante ela trouxe suas mãos para minhas roupas, notei que a intenção era me despir, então deixei, talvez estejam incomodados com minhas roupas, tentei não me sentir envergonhada, afinal a nudez é algo comum pra eles, mas não consegui, quando estava completamente sem roupas, em um impulso eu coloquei as mãos na frente das minhas partes intimas. A tal Camila Aram franziu o cenho para o meu gesto, então segurou meus pulsos e me fez desfazer o gesto, ela olhou meu corpo atentamente enquanto andava ao meu redor, senti a ponta dos seus dedos em minhas costas, então soube que ela toca em minha tatuagem, tenho um sol e uma lua desenhados em minhas costas, isso deve ter despertado sua curiosidade. 

Camila logo se afastou de mim e foi até Anzu, eles trocaram algumas palavras e logo ele dispensou ela, que se afastou e ficou me olhando de longe com os outros. 

— Posso vestir minhas roupas novamente? - Perguntei quando Anzu parou na minha frente. 

— Sim. - Respondeu ainda sério. — Você será levada para a oca reservada pra você. 

Franzi o cenho enquanto vestia as roupas.

— E quando vamos conversar?

— Quando eu disser que vamos conversar. 

Observei ele se afastar seguido pelos outros guerreiros, olhei os indígenas em volta, uma coisa é certa, acho que essa é a tribo com mais pessoas bonitas que já visitei. Terminei de vestir minhas roupas e juntei minhas coisas, assim que pus a mochila nas costas a garota que me inspecionou se aproximou, ela indicou com a cabeça que eu deveria segui-la, e assim o fiz isso, ela me guiou até uma das moradias, e como é de praxe, o chão é de terra batida, e não tem divisórias dentro, 2 redes estão armadas e algumas esteiras cobrem parte do chão. Coloquei minhas coisas sobre a esteira e virei pra garota, ela me olha curiosa ainda parada na entrada.

— Eu me chamo Lauren. - Me apresentei. — Você é Camila, não é?

Ela se manteve calada, apenas me olhando, não deve ter entendido uma palavra sequer que saiu da minha boca, suspirei e fui até minha bolsa, o primeiro item que peguei foi meu celular, sem sinal, ergui o mesmo na intenção de captar ao menos um pontinho na antena, e isso assustou Camila.

— Hey, calma. - Ergui as mãos, demonstrando estar em paz, pelo menos gestos ela deve entender.

Mais uma vez ela ficou calada, balancei a cabeça e voltei minha atenção ao celular, sorri ao notar que tinha captado sinal, rapidamente digitei uma mensagem pra tranquilizar minha equipe, guardei o celular novamente na bolsa e ergui os olhos pra menina, ela não para de me olhar, abri a maleta de vacinação para conferir que nada foi danificado e depois fiz o mesmo com minha câmera, em nenhum momento eu parei de ser vigiada, o que me fez mais uma vez olhar pra garota, e só agora me permiti olhar para além do seu rosto, meus olhos desceram pelo seu corpo sem roupas.

— Uma segurança particular. - Murmurei pra mim mesma. — Muito bonita por sinal. - Voltei minha atenção a minha mochila para tirar as coisas de dentro. 

Quase pulei quando a garota se aproximou de mim e se abaixou, pra olhar em meu rosto, ficando mais perto que o necessário. 

— Eu sou o que?

No susto por ver ela falando, e em um idioma compreensível eu cai sentada no chão, coloquei as duas mãos no chão em uma tentativa de evitar a queda, mas não deu certo.

— Você entende o que eu falo?

Ela assentiu.

— Eu sou o que? - Perguntou de novo.

— Como assim o que você é? - Perguntei nervosa.

— Você disse. - Apontou pra mim.

— Minha segurança particular?

— Não!

— Hã… bonita?

Ela assentiu rapidamente.

— Eu sou?

— Bonita? - A confusão não me larga.

— É!

Franzi o cenho e senti minha boca secar, que garota estranha.

— Sim, você é bonita. 

Ela sorriu e assentiu voltando a ficar de pé.

— É, eu sou bonita.

Por Deus alguém me explica isso?

Também fiquei de pé e segui atrás dela, mas ao notar minha aproximação ela levantou a mão e balançou a cabeça em negação. 

— Eu quero sair.

— Não pode.

— Por que?

— Ordens de Anzu.

Cocei a nuca e recuei alguns passos.

— O que foi aquilo que você fez quando eu cheguei?

— Verificar se você não estava doente como outros Cari que vieram.

— O que é Cari?

Ela me olhou como se eu fosse burra.

— Você, o homem branco. 

Agora tudo faz sentido, era isso que Anzu estava falando quando nos encontramos.

— Compreendo, e como você iria saber se eu estava doente igual os outros Cari que vieram?

— As histórias dizem que eles tinham marcas no corpo, e no rosto, muitas marcas feias e contagiosas. 

Provavelmente ela está falando da varíola, doença comum na era colonial.

— Eu sou vacinada contra tal doença, não se preocupe. - Ela continuou me olhando, ela não sabe como funciona uma vacina, Lauren, não seja burra. — Você já viu algum outro dos meus? - Ela negou com a cabeça.

— Vieram há muitos anos, Camila não era gente ainda. 

— Claro… hã… qual sua função na aldeia? Você tem uma?

Bem, eu tenho curiosidade sobre esses povos, então se ela não parece incomodada em responder, vou aproveitar para sanar as dúvidas.

— Função? - Deitou um pouco a cabeça para o lado.

Jesus, ela é linda demais.

— Hã… o cacique chamou você de Mambira, o que isso significa?

— Ah! Mambira é filha.

— VOCÊ É FILHA DO CACIQUE? - Ela se assustou que falei um pouco mais alto e andou pra trás. — Desculpe. - Recuei alguns passos também. 

— Sim, filha do cacique Anzu, por quê?

— Nada. - Sorri e me afastei mais dela. — Você acha que vai demorar pra o seu pai me receber?

— Sim.

— SIM?

Ela me olhou de um jeito insatisfeito.

— Por que você grita?

— Desculpa. - Sorri sem graça vendo ela negar com a cabeça. 

— Uma semana.

Quase gritei outra vez, mas me contive.

— Uma semana pra falar comigo?

— Não! Uma semana você vai ficar depois dos… você sabe, os outros Cari disseram que vocês podem curar nossos doentes e evitar que se espalhe, então depois disso você vai ficar, e se eles morrerem, você morre.

Nossa, que incrível, incrível de verdade, primeiro porque eu não sou médica, o Oliver é, eu sei aplicar as vacinas, mas eu não vou saber tratar os que já estão doentes, provavelmente eles vão sim morrer… e se ela estiver certa, eu também vou. Não consegui falar mais nada, peguei meu celular e me sentei em uma das redes, a garota não para de me olhar, mas resolvi ignorar, prefiro não me aproximar, ela é filha do cacique, tem algo mais mortal que isso? Sim, tem, entrar em uma tribo não civilizada sozinha e com uma promessa de cura. Ainda não obtive resposta da minha equipe, então em uma tentativa de tirar meus pensamentos dos próximos acontecimentos eu resolvi responder alguns amigos de Los Angeles. 

Se passou horas, eu olhando para a tela do celular e a garota olhando pra mim, no momento são 11h, e estou faminta, eles poderiam me oferecer alguma coisa, não é? Só tenho chocolates, já comi 3 e nada de saciar minha fome.

Notei a garota dando alguns passos em minha direção, mas fingi não notar, ela passou a rede e parou atrás de mim, olhei pelo cantos dos olhos, ela está tentando enxergar a tela do meu celular, estou com o aplicativo de mensagens abertas, então fechei porque estou falando com uma ficante minha, e sua última mensagem não foi muito decente, eu duvido que Camila seja alfabetizada, mas melhor não arriscar, na tela inicial do meu celular tem uma foto minha na praia, e ela continuou olhando, só parou quando a tela se apagou, ela olhou pra mim, como em um pedido silencioso para eu acender de novo, mas não fiz isso, ergui a cabeça pra olhar pra ela que ainda está de pé ali atrás. 

— Todos aqui falam português?

Ela balançou a cabeça em negação. 

— Eu, meu pai e o pajé, eu sei porque sou muito colada no meu pai, acabei aprendendo ao ouvir ele treinando com o pajé.

— Que bom, isso mostra que você é muito inteligente. 

Ela se inclinou pra frente, o rosto ficou perto do meu, e então em um gesto inesperado por mim ela levou o nariz até meu pescoço e cheirou, fiquei estática, com medo de fazer algum movimento brusco e assustá-la, ela cheirou meu pescoço várias vezes, me fazendo cócegas, mas nada falei.

— Você não cheira peixe morto. - Falou voltando a ficar de pé.

— Hã… isso é bom?

— As histórias dizem que os outros Cari eram MUITO fedorentos.

Me deixei rir. Pelo que sabemos, provavelmente o último contato direto da tribo deles com a raça branca, foi há muito tempo atrás, lá no tempo da colonização, onde os antigos acreditavam que tomar banho iria trazer alguma doença de pele, devem ter repassado isso até os dias de hoje, que péssimo exemplo. 

— Hã… digamos que as coisas mudaram bastante nos últimos anos, e agora também somos adeptos aos banhos, alguns ainda não, mas a maioria sim.

— E o que é isso aí? - Apontou meu celular. 

— Um smartphone. - Estendi ele pra ela, mas ela recuou alguns passos e negou. — Não vai lhe fazer mal, segure.

Ela continuou recusando, então desisti. 

— Ele serve para que eu possa manter a comunicação com pessoas que estão distantes.

— Quem fica distante?

— Meus pais, amigos.

Ela ainda parecia confusa, mas assentiu. Alguém do lado de fora chamou por Camila, ela olhou naquela direção, pra mim, e então saiu me deixando sozinha, pensei em sair também, mas durante anos de trabalho com esses povos, eu descobri que o melhor é não desobedecer suas regras, me mandaram esperar, então vou esperar, deixei meu corpo cair deitado na rede, será que ao menos vão me deixar fotografar o local? Espero que sim.

*****

Era por volta das 13h quando finalmente vieram me tirar da oca, fui levada até o cacique e finalmente podemos conversar, em poucas palavras tentei explicar pra ele como os fazendeiros conseguiram os enfraquecer e o motivo da importância de se vacinarem, porque isso pode voltar a acontecer a qualquer momento, a civilização ao redor das terras deles estão crescendo, é questão de tempo para se encontrarem, e por esse motivo a importância de todos estarem com um bom sistema imunológico. 

A população deles é pequena, então as vacinas que eu trouxe foram suficientes, através de uma chamada de vídeo, onde passei mais tempo tentando sinal do que em ligação, Oliver me ajudou com os que ainda estão doentes, dei meu melhor pra fazer o que ele mandou, agora é esperar e torcer pra dar certo. O tempo que Camila falou pra mim estava certo, ficarei aqui durante os próximos dias para ver como vão reagir e se posso ir embora a salvo. Retornei para a oca, e mais uma vez tive que ficar lá, só voltei a ter contato com alguém quando a noite caiu e Camila veio até mim, ela trouxe uma tigela nas mãos, estou com muita fome, mas estou com medo de saber o que é.

— Pra você. - Me entregou. 

Segurei a tigela de barro, ela está preenchida com alguma coisa não identificável pra mim, parece… bolo? O cheiro está bom, mas tenho medo do gosto não estar.

— Coma. - Mandou de um jeito apressado. — Não é de olhar, é de comer.

Assenti com um pequeno sorriso, peguei o talher, preenchi um pouco e levei até minha boca, mastiguei lentamente, Camila me olha com certa expectativa. 

— Até que é bom. - Falei pegando mais um pouco. — O que é?

— Aaru, eu que fiz.

— E o que seria Aaru, quais os ingredientes usados?

— Ah! É tatu moqueado, a gente soca ele no pilão pra ficar assim nessa textura e depois mistura com farinha de mandioca.

A comida está parada em minha boca desde que ouvi "tatu".

— Tatu? - Confirmei colocando a mão na frente da boca.

— Isso mesmo. - Confirmou e então forcei a comida a descer pela minha garganta, mas não adiantou, ela está travada em minha boca. — O que foi?

— Eu… - Apontei a boca e balancei a cabeça. — Não…

Corri para o lado de fora e cuspi tudo no chão, agradeci por ninguém me ver, além de Camila, e pela cara ela não gostou da minha atitude.

— Desculpa, eu… - Ela puxou a tigela das minhas mãos e se afastou.

Ah, que ótimo, ela deve ter ficado magoada. Voltei para dentro, a primeira coisa que fiz foi beber água e comer um dos meus chocolates, sem condições de comer essas coisas exóticas, deitei na rede e resolvi esperar mais alguém aparecer, isso não aconteceu, então logo cai no sono.

*****

Demorei alguns minutos para organizar as ideias em minha mente e saber onde estou, a dor em meu corpo me trouxe a certeza de não estar em minha confortável cama, mas foi o idioma estranho do lado de fora que me fez pular pra fora da rede, olhei a hora em meu celular, meio dia, MEIO DIA, como eu pude dormir tanto? Olhei para as minhas roupas antes de sair da minha nova casa no meio dos matos. Notei os nativos em seus afazeres, os que notaram minha presença me olharam, esbocei um sorriso, mas fui correspondida apenas por alguns, como podem ter medo de mim se tenho essa cara tão inofensiva? Parei meus olhos em Camila, ela está mais distante, diferente de ontem, hoje seu corpo está com algumas pinturas, a tinta usada foi na cor preta, no rosto ela tem algumas linhas, uma vertical no queixo e duas horizontais um pouco acima das maçãs do rosto, os braços e pernas tem desenhos, e agora sua nudez está coberta por alguns adereços, ela conseguiu ficar ainda mais bonita… Afastei aqueles pensamentos e acenei pra ela, não demorou para que viesse até mim.

— Achei que você estava morta. - Falou me analisando. — Você parecia morta.

Sorri envergonhada. 

— Perdão, eu tenho o sono pesado.

— Você hibernou.

Me deixei rir, minha maravilhosa mãe costuma falar isso também. 

— Talvez. - Olhei ao redor. — Primeiro gostaria de te pedir desculpa por ontem, pela desfeita com sua comida.

Ela deu de ombros. 

— Nem todos tem o bom paladar, o seu é péssimo, mas não é sua culpa.

Ergui a sobrancelha e acabei rindo.

— É, meu paladar é ruim. - Assenti. — Onde posso tomar banho?

— No rio.

Claro, no rio.

Estou acostumado a visitar aldeias, fazer meu trabalho e depois correr para o hotel, e usufruir do conforto do mundo moderno.

— Onde fica esse rio?

Ela olhou pra trás, mais especificamente pra onde ela estava antes, gritou algumas palavras para a mulher que ficou lá e depois se virou pra mim novamente. 

— Eu levo você até lá, se eu te perder de vistas meu pai arranca minha pele fora.

— Então você está mesmo me vigiando. 

— Sim, estou.

Voltamos pra casa para que eu pudesse pegar minha mochila e só então fomos para o tal rio. Camila anda por entre as árvores como se não fossem todas iguais, como se não existisse a possibilidade de se perder, quer dizer, pra mim existe, pra ela não. Ao chegar ao tal rio, eu deixei meu queixo cair, tem uma queda d'água bem próxima ao local, e a água é cristalina, cristalina ao nível de conseguir ver o fundo.

— O que foi? - Camila perguntou me olhando.

— Esse lugar é perfeito!

Ela olhou em volta e então sorriu, e como em um passe de mágica minha atenção saiu da paisagem e focou exclusivamente nela.

— É, Nhanderuvuçú caprichou na criação. 

Seus pais também, pensei.

— Vou deixar minhas coisas aqui. - Falei antes de começar a me despir. 

Ela não respondeu, apenas se afastou e foi se sentar em uma das rochas que cerca o local, com o pensamento que a nudez é algo normal para eles, eu consegui me livrar de minhas roupas e entrar na água, fui preparada pra congelar, mas a água estava bem quente, o que me fez sorrir e mergulhar, nadei até chegar a queda d'água, fiquei alguns minutos ali e depois virei pra procurar Camila, ela está sentada no mesmo lugar, os braços apoiados nos joelhos e olhando em minha direção.

O que será que se passa pela cabeça dela? Um estudo recente apontou que a homossexualidade não era tabu entre os índios locais, e antes da vinda dos europeus para o país, os indígenas mantinham relações homoafetivas como algo normal, e que a homofobia foi algo criado pelos colonizadores. Me pergunto eu, qual pensamento dessa tribo quanto a isso? Nadei novamente pra perto dela.

— Está com muita pressa pra irmos embora?

— Não, você está gostando da água?

— Sim, é bem aquecida, então ótimo, entra comigo.

Ela balançou a cabeça em negação. 

— Por que?

— Água deixa vulnerável, e não posso ficar vulnerável perto de Abaité.

— O Abaité sou eu?

— É.

— E o que é Abaité?

— Gente ruim.

Deixei meu queixo cair, não consegui conter a risada, moderada, mas não tanto. Camila fala tudo muito séria, como se de fato eu fosse um perigo, não sei por qual motivo, mas acho que por trás desse medo todo que ela demonstra tem uma nativa mais espontânea, ela tem cara de ser daquelas pessoas bem falantes e acolhedora, e não assim calada e retraída, provavelmente o medo a mantém assim.

— Eu não sou um abaité, eu sou boa. - Assegurei. — Entra aqui, não vou te machucar. 

— Homem branco mente. 

— Eu não minto, olha, eu fico longe de você, se o seu medo é ficar vulnerável e eu atacar, eu fico longe, entre.

Ela continuou me olhando desconfiada, mas acabou ficando de pé, tirou os adereços do corpo e veio em direção a água, primeiro ela colocou a ponta do pé esquerdo, com alguns segundos também colocou o direito, pensei que ela iria mergulhar, mas ainda de pé, ela colocou o dedo bem na parte frontal da testa e deslizou em linha reta, passando pelo nariz, boca, queixo, colo e parou na altura do umbigo, só estão ela mergulhou, eu daria tudo pra ter fotografado isso, com certeza é alguma espécie de ritual, esperei ela voltar a superfície pra perguntar.

— Pode falar sobre o gesto que fez ao entrar na água?

— É uma questão de respeito, devemos pedir permissão ou agradecer ao entrar em uma área que não é nossa, antes de mim o rio já estava aqui, então eu tenho que pedir permissão para me apropriar. 

— Interessante, muito interessante. - Sorri.

— Iandê não faz isso?

Franzi o cenho.

— Iandê?

Ela demonstrou impaciência no rosto, que culpa eu tenho dela ficar misturando as línguas?

— Você. 

— O que tem eu?

— Iandê.

— O que é Iandê?

— Você. 

— Eu o que, Camila?

Ela coçou a testa.

— Iandê é você! - Gesticulou. 

Fiquei olhando pra ela, como se falasse grego, e só então minha ficha caiu, então não segurei a risada.

— Desculpa. - Falei ainda rindo. — As vezes meu cérebro. - Bati o dedo na cabeça. — Não funciona, ele entra em pane, mas respondendo sua pergunta, não, não costumo pedir permissão, será que ele aceita se eu pedir agora?

Ele olhou para os lados e então deu alguns passos em minha direção, como se fosse contar um segredo. 

— Tenta, antes que ele te puxe.

— Não me assusta. - Fiz o gesto, mas diferente dela eu parei ainda no queixo.

— Assim ele vai puxar só o pé. - Ela fez uma piada comigo? — O jeito certo é esse. - Colocou o dedo em minha testa e foi descendo, nariz, boca, queixo, colo, e por fim abdômen, senti meu ventre se contrair ao sentir o toque dela em minha pele. — Pronto, protegida.

— Obrigada.

Ela nada falou, apenas se afastou novamente, esperei a pintura sair do seu corpo, mas parecia a prova d'água. Ela nadou pra longe, e eu continuei parada no mesmo lugar, até que um instalo em minha mente me fez se mover, e voltei para perto da queda d'água.

— Como é onde você mora? - Ela perguntou, e se abaixou um pouco na água, deixando apenas os olhos pra fora.

— Minha casa? - Assentiu. — Hã… - Nunca tive que descrever minha casa, logo não sei por onde começar. — Ela é branca, tem dois pavimentos. - Gesticulei. — Meu quarto fica na parte de cima, embaixo tem salas, banheiros, uma cozinha, e também uma área de jogos, em cima apenas quartos mesmo, na área externa tem uma piscina, que é como um rio particular, e também tem a academia, o jardim, a garagem, e… acho que só isso.

Ela subiu novamente pra poder responder. 

— Sua casa é uma em cima da outra? E tem um rio só seu?

— Quase isso.

Ela soltou uma risada, mas não uma risada comum, uma muito alta, senti meu rosto corar, ela está rindo de mim?

— E não é que os Cari gosta mesmo de mentiras.

— Hey! Eu não estou mentindo. 

— Não existe riu de uma pessoa só.

— Não é bem um rio, mas tipo, é grande, fundo, tem água e só eu posso usar, porque é na minha casa.

Ela riu de novo, o que me fez estreitar os olhos.

— Cari mentirosa!

— Não é mentira! Eu tenho fotos no meu celular, quando voltarmos eu vou mostrar pra você. 

Ela riu outra vez e nadou pra longe de mim. 

Que garota ousada! Nadei atrás dela, mas ao notar minha tentativa de aproximação ela nadou novamente para outra direção, não desisti e fui atrás, e assim ficamos por um longo período, em uma brincadeira silenciosa. Me surpreendi quando sai da água e vi que já eram 17h, como passaram tantas horas e eu não notei? Vesti uma calça soltinha branca e um top na mesma cor, aqui o calor é absurdo, estou até tentada a ficar sem roupas igual aos demais, Camila não recolocou os adereços ao corpo, deixando sua nudez a vista, e dessa forma voltamos para a aldeia, ela parece com menos medo de mim, o caminho todo ela fez ao meu lado, diferente na hora de virmos pra cá que ela ficou distante. 

— Vocês não tem uma fruta aqui? Estou com fome.

Ela me olhou.

— Quer tatu? - Fiz uma careta e balancei a cabeça em negação. — Cari ingrata.

— Diz que tem uma fruta, por favor. 

Ela me olhou e rolou os olhos.

— Tem.

— Isso. - Fechei a mão e joguei o cotovelo pra trás em comemoração, a qual não passou despercebida por ela. 

Segui para a oca e ela foi pegar as frutas. Ajeitei o cabelo, passei creme, perfume e por último fui responder minhas mensagens para atualizar meus amigos, esses que não param de me mandar fotos se divertindo pela região, enquanto isso eu estou aqui em um cárcere que não é cárcere mas pode custar minha vida. Ergui a cabeça ao ver Camila entrar, ainda estou na rede, ela me olhou, depois inalou o ar.

— Esse cheiro é muito bom, o que é?

— Perfume. - Apontei o mesmo sobre a esteira no chão. — Pegue pra ver. 

Ela olhou pra mim, se aproximou e me entregou uma tigela idêntica a de ontem, mas agora tem várias frutas cortadas ali dentro, o que me fez sorrir. Observei Camila ir até a esteira e pegar o frasco, ela aproximou lentamente do nariz, fiquei observando a cena calada e comendo.

— Aperta em cima que o líquido sai.

Ela me olhou, pareceu ponderar se faz ou não, mas acabou por fazer, e… desastre, ela se assustou com o spray e soltou o vidro, fechei os olhos em puro reflexo para esperar o som dele colidindo no chão, mas nada ouvi, tornei a abrir os olhos e ela mesmo tinha pegado o frasco antes de atingir o chão, ao ver os seus olhos vermelho eu levantei de sobressalto, deixei a tigela no chão e me aproximei. 

— Meus Deus! Você deixou cair no olho. - Peguei uma das minhas garrafas d' água, abri e despejei o líquido no rosto dela, tirei o perfume de sua mão e o soltei sobre minha bolsa. — Está doendo?

— Bastante. - Falou piscando os olhos que não param de lacrimejar.

— Me perdoa, eu deveria ter avisado pra você prestar atenção para não disparar no rosto. 

— A culpa é minha.

Ela tenta manter os olhos abertos, mas não consegue, o que me faz se culpar ainda mais.

— Licença. - Falei antes de segurar o seu rosto com as mãos, feito isso soprei lentamente em seus olhos, ela parou de piscar, não sei se pela minha ousadia de tocá-la ou porque está funcionando. 

Fiz o mesmo procedimento no outro olho e então me afastei. 

— Melhorou?

— Parou de arder. - Passou a mão nos olhos.

— Desculpa outra vez.

— Tudo bem. - Olhou o perfume no chão. — É muito bom esse seu cheiro. - Olhou pra mim. — Mas agora me mostre sua casa de mentira. 

Soltei uma risadinha e peguei meu celular, abri a galeria e virei a tela pra ela.

— Olhe. 

Ela chegou mais pra perto de mim, as mãos para trás do corpo e os olhos atentos a casa.

— Você mora aí?

— Sim.

— Só você? Nessa casa desse tamanho?

— Só eu.

— Você está mentindo. 

— Céus, eu não estou. - Passei a foto para o lado, nessa eu apareço em um dos ambientes. — Olhe eu aqui.

— Posso tocar? 

Assenti e coloquei o celular na mão dela, ela aproximou do rosto, afastou, aproximou, afastou, deixei ela descobrindo a tecnologia e voltei pra rede na intenção de continuar minha refeição, fiquei observando ela e comendo, alguns minutos depois ela olhou pra mim e se aproximou, na verdade ela se sentou ao meu lado na rede.

— Quem são? 

Olhei pra tela, ela mudou de foto.

— Eu, meu irmão, e meus pais.

Ela assentiu e passou para a outra.

— E esse?

— Oliver.

— Seu marido?

— Meu amigo.

Ela continuou deslizando as fotos e perguntando um a um quem é, de quê interessa o nome de pessoas que ela nunca vai ver eu não sei, mas estou respondendo, senti meu corpo tensionar quando ela parou em uma foto específica, nela está uma ex ficante, e ela está sem roupas, ela me enviou essa foto há tanto tempo que eu tinha até esquecido a existência, minha vontade é puxar o celular da mão de Camila, mas ela não esboçou reações, apenas pulou para a próxima foto, e era melhor ter continuado na outra, nessa eu estou beijando a mesma garota da foto anterior, minha galeria precisa urgentemente de uma limpa, Camila alternou o olhar entre eu e a tela várias vezes.

— Você está… beijando… outra mulher?

Senti o nervosismo se apossar do meu corpo.

— Hã… nós namoravamos. - Falei a primeira coisa que me veio à cabeça, e nem era um namoro de verdade. 

— Que estranho. - Passou a foto para o lado, e aquilo me fez soltar o ar aliviada. — Nunca ouvi falar nisso, namorar outra mulher. 

— Nunca?

— Nunca.

— Hã… você pode guardar esse segredo? Eu não quero acabar morta.

Ela me olhou rapidamente. 

— E por que iriam matar você?

— Hã… não sei, o que sua tribo acha disso?

— Nada, como eu disse, não são práticas conhecidas por aqui, pelo menos eu nunca ouvi falar, mas ninguém vai matar você por isso.

— Ainda assim prefiro que guarde segredo, pode ser?

— Como preferir. - Voltou a olhar para o celular. — Essas pessoas parecem presas aqui dentro disso. 

— Mas não estão, todos se encontram confortáveis em suas casas.

Ela continuou passando as fotos, e é engraçado que ela imitou o movimento que fiz pra alternar entre as fotos, e agora só faz ele, sempre no mesmo lugar da tela e de uma forma quase robótica.

— É isso o mar?

— Sim.

Ela ficou olhando a foto por mais tempo que as outras, então passou para a próxima, ela só parou quando chegou ao fim da galeria, e ali tem mais de mil fotos.

— Gostou? - Perguntei quando ela me devolveu o celular. 

— Não.

Ergui a sobrancelha. 

— Ingrata. - Murmurei voltando a galeria, ela tinha visto todas as fotos do meu álbum pessoal, então resolvi mostrar algo diferente. — Olhe essas fotos aqui então. - Coloquei o celular na mão dela novamente. — São outras tribos que fizemos visita e acolhimento. 

Ela ficou mais chocada do que com o nude que tinha no outro álbum. 

— Você visita outras tribos?

— Sim, nossa ONG trabalha com os nativos, alguns pedem nossa ajuda, outros nós oferecemos, igual vocês. 

— E por que eles se vestem igual os cari?

— Hoje em dia algumas tribos são mais… modernas, vivem com alguns costumes dos cari, mas também tem os mais naturalistas  olhe. - Passei as fotos até outra tribo. — Ver? Eles também ficam sem roupas, como vocês. 

Ela voltou toda a atenção para as fotos, e de uma forma atenta foi passando as mesmas, fiquei olhando pra ela, que olha pra tela. 

— Eu posso fotografar você? - Ela olhou pra mim. — Tirar fotos, como essas que você está vendo, posso?

— Aram não quer virar foto.

— Só uma.

— Não. 

— Tudo bem. - Assenti e resolvi não insistir. — Então seu nome é Camila Aram?

— É. - Olhou pra tela, mas no mesmo instante olhou pra mim. — E antes que pergunte, Aram é sol.

— Obrigada por me poupar o desgaste. - Brinquei. — Camila Sol, gostei.

— Camila Aram. - Corrigiu. — Você tem Aram nas costas.

— Sim, eu tenho. - Esbocei um pequeno sorriso. — Eu gosto do astro rei, e também gosto da lua, tem espaço pra todos aqui.

Ela não falou mais, e voltou a passar as fotos, como da outra vez ela só parou no fim da galeria.

— E agora gostou?

— Não. 

— E você é tão difícil de agradar assim?

Ela deu de ombros, notei seus olhos indo até os meus, acho que é a primeira vez que ela me olha nos olhos, e de tão perto.

— Posso tocar iandê?

— Pode.

Ela virou mais em minha direção e ergueu uma mão, como da primeira vez ela aproximou lentamente do meu rosto, mas agora esperei paciente pra não assustá-la de novo, ela apertou o dedo em minha bochecha, apertou muito, como se seu dedo fosse capaz de atravessar minha pele, passou os dedos em minhas sobrancelhas, nariz, em volta dos olhos, e finalizou indo para as orelhas.

— Jaci aisó.

Esperei ela explicar sozinha qual significado, mas não aconteceu. 

— Que significa…?

— Camila cansou de te ensinar as palavras. - Tirou a mão do meu rosto e se levantou. — Levanta. - Levantei. — Hoje tem noite de contos na aldeia, você quer vir?

— Se eu puder, com certeza. 

— Você pode fazer o que quiser, com tanto que não desobedeça as ordens do cacique, você é uma mulher livre.

— Então posso ir embora? - Brinquei e ela sorriu negando com a cabeça. 

— Anzu não deixa.

— Tudo bem. - Fui até a mochila, peguei minha câmera e coloquei no pescoço. — Talvez eu ache um sangue bom que me deixe fotografar.

Ela resmungou. 

— Camila é sangue bom.

— Não sei não, me negando uma simples foto.

Seguimos para o lado de fora, o que mais me diverte em Camila é a cara de insatisfação que ela faz quando eu falo alguma coisa que ela acha desagradável. 

Acredito que toda a tribo está aqui do lado de fora, agora não só Camila está pintada, todos eles estão, inclusive o cacique, como era esperado recebi alguns olhares, mas nada além disso, o cacique e os que eu julgo serem os guerreiros da tribo são os que permanecem me olhando com desconfiança, os demais aparentam mais uma curiosidade. Uma fogueira está acesa bem no meio do terreno e em volta dela tem alguns troncos que estão sendo usados como assento.

— Sente aí. - Camila indicou e logo saiu.

Observei ela até que entrasse em uma das ocas.

— Olá. - Falei para a mulher ao meu lado, que não para de me olhar.

Ela não respondeu, ainda me olha com curiosidade, levantei rapidamente, o que fez ela se afastar, me desculpei mas acredito que não fui compreendida, fui até minha mochila, peguei alguns chocolates e retornei, geralmente os presentes são bem aceitos e eles passam a ser mais receptivos, eu poderia ter trazido algo mais atrativo, mas não imaginei que iria demorar aqui, me sentei novamente ao lado da mulher, abri a embalagem e apontei pra ela, que recusou, levei até minha boca e mordi, para mostrar que era algo seguro e comestível.

— Pegue. 

Ela continuou parada, mas depois de alguns segundos pegou e mordeu, ela mastigou com desconfiança, mas aos poucos foi sorrindo e balançando a cabeça, os outros nativos percebendo minha interação se aproximaram, distribui chocolate para todos, e assim, em instantes eu já estava recebendo sorrisos sem desconfiança.

— Você permite? - Apontei minha câmera e gesticulei que queria tirar uma foto.

Não fui compreendida, então ainda gesticulando eu apontei a câmera e depois me inclinei para tirar uma foto da fogueira, o flash assustou alguns, mas logo voltaram, mostrei a fotografia e acredito ter sido finalmente compreendida, me levantei e tirei uma foto sem foco específico, apontada para todos eles, feito isso logo correram para trás de mim na intenção de ver a foto na tela da câmera, com a confiança adquirida consegui fotos particulares e mais profissionais, esse povo é fotogênico por natureza, pele bonita, dentes bonitos, sorriso escancarado, são sempre bons modelos.

Ainda agachada eu parei de fotografar, afastei a câmera do rosto e as mantive em minhas mãos, meus olhos foram para Camila, as pinturas pretas de mais cedo ainda estão em seu corpo, mas agora foi adicionada mais algumas na cor vermelha, Camila e vermelho, combinação perfeita, digo sem medo de errar. Ela sorriu pra mim, e embasbacada eu sorri de volta, a gritaria dos indígenas ao meu redor parece ter cessado de uma hora pra outra, pensei em erguer a câmera e fotografar Camila vindo, mas não vou fazer isso sem sua permissão. 

— Vejo que fez amizades. - Parou na minha frente. 

— Os comprei com alguns chocolates. - Me obriguei a levantar. — Inclusive fiz ótimas fotos, veja. - Parei ao lado dela e mostrei a pequena tela da câmera. 

Ela sorriu e foi identificando os companheiros, a cada um que aparecia ela falava o nome animada. 

— Agora vai deixar eu fazer uma sua?

— Não. - Segurou meu braço e me puxou para longe dos outros. — Deixa eu pintar você?

— Deixo.

Ela alargou mais o sorriso e continuou me puxando para perto de uma das casas, entrou, voltou com algumas coisas que julgo ser tintas e me sentou em um banco ali mesmo do lado de fora.

— Gosta de azul?

— Gosto.

Ela colocou a mão livre em minha perna e as afastou, me fazendo abrir mais para que ela se encaixasse de pé ali no meio, com a mão em meu queixo ela me fez erguer a cabeça, é compreensível eu ficar nervosa, certo? Porque estou, muito.

— Gosto dos seus olhos. - Disse antes de se inclinar um pouco mais pra frente. 

Ela melou o pincel na tinta e com máxima atenção começou a traçar algumas linhas em meu rosto, devido a posição não tinha como eu parar de olhar pra ela, e muito menos me afastar.

— Obrigada, também gosto dos seus.

Ela parou de olhar pra pintura e olhou em meus olhos, com um sorriso meio desacreditado.

— O meu é igual aos outros. - Voltou a olhar para o pincel.

— Não é, a cor pode ser semelhante, mas seu olhar é diferente dos outros. 

Ela soltou uma risadinha nasal.

— Diferente como?

— Eles mostram um universo que só tem em você, e isso é único. 

Ela parou a pintura e subiu novamente o olhar para o meu, nada falou, nem eu, com alguns segundos ela balançou a cabeça e voltou a pintar.

— Você não namora mais aquela mulher da foto?

— Hã… - Pigarreei. — Não. 

— Por quê?

— Porque… estávamos em uma época diferente, queríamos coisas diferentes, então acabamos nos afastando. 

— Você chorou?

— Não.

Ela franziu o cenho, mas não comentou, apenas voltou a se calar.

Demorou alguns longos minutos até ela terminar, feito isso fiz um autorretrato para ver o resultado, ela fez algumas poucas linhas, sem muito exagero, e alternando entre o azul e o preto.

— Ficou muito bonito, obrigada.

Fiquei sem resposta ao agradecimento, ela guardou as coisas e nos guiou para a roda novamente. Alguns estão contando suas típicas histórias, eu não entendi nada, mas Camila ficou ao meu lado, traduzindo o que era falado em um tom mais baixo e próximo do meu ouvido, aquilo me fez ficar travada durante boa parte da noite, apenas sentindo o calor que sua boca emanava e batia direto no meu pescoço. 

— Vou pegar carne pra você. - Falou me olhando, na verdade ela não para de olhar pra mim, me pergunto se alguém está notando e se isso é o normal dela.

— É de tatu?

Percebi a luta que ela travou pra não rir.

— Vou jogar você no fundo do rio. - Ameaçou antes de se levantar.

Ela se afastou e então olhei em volta, e senti minha garganta travar ao notar o olhar do cacique, Camila passou por ele e deixou um beijo no rosto do homem, e aquilo o fez sorrir, e meu coração aliviar, talvez ele não seja um bárbaro. A maioria parece adaptado com minha presença, percebi também que Camila é uma pessoa querida pelos outros, ela é a que mais distribui abraços, e uma hora ou outra uma criança agarra as pernas dela, como agora por exemplo, Camila se abaixou, colocou o menino que deve ter uns 4 anos nos braços, e girou com ele pelo espaço, o arrancando gargalhadas altas. Fiz uma nota mental de insistir com Camila sobre as fotos, ela é a que mais me traz vontade de puxar a câmera e fotografar.

Ela sorriu quando estava voltando pra perto de mim com um prato, assim que ela sentou eu olhei dentro.

— O que é isso?

— Abre a boca. - Pegou um pedaço. 

— Quero saber o que é antes.

Ela bufou e mesmo contra minha vontade enfiou a carne de origem desconhecida na minha boca, mastiguei com receio, o gosto é bom, não muito, mas é.

— Você não precisa saber o que é. - Piscou um olho e colocou mais em minha boca.

Não insisti, durante o resto da noite ela me empurrou os mais variados tipos de comida, sempre colocando em minha boca, e nunca falando o que é, ela também me contou algumas coisas culturais sobre a tribo, e aquilo fez a noite passar em um piscar de olhos, era 3h da manhã quando eu resolvi entrar e ela me acompanhou.

— Deixa eu ver o mar de novo. - Pediu.

— Você disse que não tinha gostado. - Provoquei pegando o celular. 

— Do mar eu gostei.

Abri o vídeo e entreguei pra ela, peguei um chocolate na mochila e sentei na rede, ela se sentou ao meu lado, vidrada no celular.

— Você aceita? - Ela negou com a cabeça, abri a embalagem, e então ela me olhou. — Certeza que não quer? - Coloquei metade do chocolate na boca, o deixando preso entre os dentes, porque se ela mudar de ideia, eu mordo o mesmo ao meio.

— Espera. - Sorriu e pareceu ponderar um pouco, até que apoiou uma mão em minha perna e se inclinou em minha direção, enquanto ela se aproximava meu coração parava de bater, ela deixou o rosto bem próximo ao meu e mordeu a parte exposta do chocolate, senti meu rosto esquentar. — Obrigada. - Falou mastigando e voltou a sua posição inicial. 

Por que ela fez isso?

— Eu vou dormir aqui com você. - Avisou voltando sua atenção ao celular. 

— Por quê?

— Porque eu quero, não posso não?

— Ihh, grossa. - Bati meu ombro no dela.

Camila nada falou, voltou a ver o mar, e eu fiquei olhando pra ela, até que percebi que seu olhar mudou, mudou assim, como uma magia, um sorriso foi se formando em seus lábios, ela olhou pra mim e depois pra tela e aquilo me fez fazer o mesmo, pigarreei ao ver que ela tinha parado de novo na maldita foto que eu beijo uma garota. 

— Deixe eu me livrar disso. - Falei e fiz menção de pegar o celular, mas ela não deixou. — O que?

— Camila gosta desta fotografia. 

Senti meu corpo travar em nervosismo. 

— Hã… que… bom?

Como ela mudou toda a fisionomia de uma hora pra outra? A Camila que estou acostumada parece nunca ter passado por aquele rosto que está ali no momento, ela me olha de uma forma provocante, insinuante, talvez até sensual… sorri sem graça e me afastei um pouco, mas inútil, a rede me empurrou de volta pra perto. 

— Camila nunca beijou uma mulher. 

Puta que me pariu.

— Legal.

L.E.G.A.L.

Porra Jauregui, que resposta fajuta.

— Camila quer experimentar… - Fez uma pausa e largou o celular. — Com você. 

Deus!

— Eu acho melhor não. - Neguei com a cabeça. 

— Por quê? - Ela tirou o sorriso do rosto.

— Hã… porque não é apropriado.

— Por que? Eu já beijei antes, homens, mas já beijei, até sexo eu ja fiz.

Eu sinto que posso morrer a qualquer segundo.

— Eu ainda acho uma má ideia, porque… - Parei pra pensar em algo convivente, na verdade eu não posso beijar ela porque estou em um lugar estranho, e porque um dos princípios da ONG é não nos envolver dessa forma com os indígenas, e venho cumprindo esse papel direitinho nos últimos anos. — Porque sim.

Ela riu.

— Só uma vez. - Insistiu. — Eu não gosto de ficar curiosa, e eu já tenho idade pra isso, tenho 17 anos.

Deixei meu queixo cair e pulei pra fora da rede.

— Quantos anos você tem? - Perguntei sem conter a surpresa. 

— 17, por quê?

— De verdade?

— Sim, 17, por quê? - Insistiu. 

— Eu achei que você tinha um pouco mais.

Ela se levantou e veio na minha direção, fui para o outro lado da rede, em uma clara fuga.

— Só um beijo, Cari.

— Não, não, não. - Balancei as mãos. — Você é muito novinha, agora que não posso fazer isso mesmo, pare.

— Certo, então eu tenho 40 anos.

Acabei rindo, mas sem me livrar do nervosismo e me afastando a cada vez que ela tentava se aproximar. 

— Você pode… sair? Eu preciso dormir. 

— Iandê está expulsando Camila? - Perguntou em um tom magoado.

— Não! - Ela sorriu e veio novamente na minha direção. — Quer dizer, eu estou sim, eu quero que você saia. - Gesticulei. 

Ela me olhou daquela mesma forma insatisfeita que fez outras tantas vezes, e então virou e saiu, coloquei a mão na altura do coração, e tentei regularizar os batimentos. 

Onde diabos eu vim parar?

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