O Fim de Ostara

De literatorturing

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Quando a princesa Oleandra descobre uma trágica profecia sobre sua irmã mais nova, ela decide que fará de tud... Mais

Prólogo
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20

Capítulo 1

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De literatorturing

O palácio possuía lugares diversos para se esconder. Fosse no jardim, no labirinto, atrás de uma pilha de livros ou em algum corredor daquele imenso amontoado de pedras, era fácil passar despercebido.

O problema é que pessoas invisíveis não têm muito o que fazer.

— Vossa Alteza. — A voz da criada ecoou pelas paredes frias e altas da biblioteca, acompanhada pelos estalos de seu tamanco no chão. — Seu chá.

— Obrigada. — Curvei ligeiramente a cabeça, dando a entender que estava lendo um dos livros à minha frente. Se fosse verdadeiramente honesta, já havia memorizado cada palavra escrita ali.

Havia uma porção enorme de outras opções para ler, mas nunca me interessei por ficção, história ou política. O que fazia meus olhos brilharem era, na verdade, o estudo da botânica, da herbologia e da cura. Meu interesse, no entanto, era muito específico e não muito explorado por escritores, o que me obrigava a reler as mesmas informações de novo e de novo.

A bandeja foi cuidadosamente pousada ao meu lado, e o ar quente do chá deixou uma nuvem nublada na janela. O tempo outonal cobria o reino com um lençol de neblina gélida, mas ainda se podia ver uma ou outra luz vinda da cidade.

— Você sabe onde está Primavera? — Perguntei despretensiosamente.

— A princesa Primavera está em sua lição de cítara, Alteza.

Tentei virar discretamente meu rosto para longe de seu campo de visão, de modo a não expressar nitidamente meu descontentamento. Todos ali tinham algo a fazer, algo maior que eles. Até mesmo Primavera, a caçula de nós quatro, descobrira sua verdadeira paixão, e eu, por outro lado, não tinha ambição alguma. Seria infantil invejar a própria irmã? Ou sentir ciúmes de seus afazeres, por me tornarem tão solitária?

Eu culpava aquele lugar, e, em especial, meu pai. O rei Bekko não deixava Teodas, Yrhena e Primavera descansarem; sempre que Teodas voltava de suas viagens, Bekko o jogava para algum trabalho beneficente na cidade. Yrhena vivia na sala de reuniões, mesmo não havendo guerra alguma para se discutir no momento, e Primavera, sempre que superava os ensinamentos de um tutor, era colocada para aprender mais um instrumento, ou a polir seu conhecimento com um tutor mais competente que o antigo.

Quando toda a sua família vive trabalhando, parece que você mora completamente sozinha.

Algumas luzes provenientes da cidade começaram a piscar alegremente, causando uma certa euforia na criada ao meu lado. Se eu forçasse meus olhos contra a janela, poderia enxergar algum movimento por trás da neblina, mas a cidade era distante demais da montanha do palácio para que eu conseguisse identificar uma silhueta sequer.

— Está havendo alguma coisa na cidade hoje? — Perguntei, observando a mulher à minha frente assentir com a cabeça.

— Há um festival no centro, hoje, para comemorar a vinda da chuva. Todos os Volvas do reino estarão lá.

Os Volvas eram pessoas que não nasceram bruxas, mas devotaram suas vidas à deusa Freya para seguir um caminho espiritual, especificamente através da prática da magia Seidr. Através da magia Seidr, eram capazes de se comunicar diretamente com os Deuses, trazendo-nos, em retorno, profecias, bênçãos e agouros. No Reino Fúngi, ou talvez até em todos os reinos do mundo de Rag, Volvas eram os bruxos mais sagrados e respeitados.

— Você vai? — Perguntei.

— Eu trabalho, Vossa Alteza. — Ela murmurou, cabisbaixa, em retorno.

— Deveria ir. Eu aviso que te liberei. — Sorri. Seu chapéu de cogumelo cobria toda a testa, mas ainda se podia ver um sorriso radiante em seus lábios.

— Agradeço imensamente, Alteza. — Com uma reverência empolgada, a criada foi embora.

Levei minha xícara à boca, sentindo o intenso vapor preenchendo minhas narinas com o cheiro de sálvia. Talvez eu devesse ir, também. Talvez devesse prestar uma visita à minha mãe, e convencê-la a ir comigo.

Minha mãe foi a única das três companheiras do rei que não morreu. Era comum, aliás, que mulheres do reino Fúngi não sobrevivessem a um parto, mas chegava a ser curioso que a única companheira do rei que conseguiu sobreviver também foi a que ele menos amou.

Bom, ao menos ele não a amou o suficiente para tentar ter mais um filho com ela, tal como fez com a mãe de Yrhena e Teodas. Assim, ela pôde viver tranquilamente a vida que sempre quis, longe do palácio e de todo o luxo.

Ela só teve de abrir mão de mim em troca de sua liberdade.

O assunto sempre pairou sobre nós, quase nos esmagando nos momentos mais silenciosos, apesar de eu saber que ela me amava. E, exatamente por esse motivo, mesmo sem entender por completo todas as suas razões para ter me abandonado em um lugar tão grande e frio, eu fugia para prestar-lhe visitas desde criança, e esse velho costume nunca morreu. Ainda hoje, eu poderia facilmente supor que minha mãe mantinha lençóis limpos e uma cama quente para mim, sempre aguardando pela minha chegada.

Decidi que uma só bolsa bastava para minha viagem, mas minhas roupas discordaram. Uma muda de roupas costumava caber em uma bolsa grande, mas, agora, até um simples robe era espesso demais para levar comigo, o que me fez perceber que fazia muito tempo que eu não ia para a casa de minha mãe. Um sentimento de culpa possuiu meu corpo, como se eu tivesse descumprido uma obrigação moral com ela, mas meus pensamentos foram rapidamente interrompidos por uma batida discreta na porta.

— Oli? — Perguntou Primavera, baixinho, antes de entrar no quarto. Seus olhos imediatamente capturaram a bolsa e os tecidos em minha mão. — Está indo a algum lugar?

Pelo semblante em seu olhar, era uma daquelas noites. Sempre que tinha aula de cítara, Primavera voltava três vezes mais desmotivada que antes, incerta de seu próprio talento e esforços. Minha irmã, entretanto, era grande o bastante para entender que nada que fizesse seria o suficiente para agradar ao seu tutor; eu mesma já havia dito isso a ela milhões e milhões de vezes.

— À casa de Aeg, passar a noite. — Respondi, com uma cutucada de culpa incomodando meu ombro. Eu sentia raiva de Primavera por se manter tão ocupada ao invés de passar os dias comigo, o que era completamente tolo e infantil; eu tinha uma mãe para me acolher quando eu precisasse, e Primavera não. Sua música era tudo o que ela tinha. — Está tendo alguma coisa na cidade, tipo um festival Seidr ou algo do gênero. Quer ir comigo?

— Vai terminar tarde?

— Provavelmente. Mas... — Pisquei para ela. — Acho que vai ter muita comida.

Minha irmã pareceu ceder, os olhos brilhando de maneira eufórica pouco antes de encolher os ombros e baixar a cabeça.

— Não sei se Aeg gostaria...

— Vocês são minhas duas pessoas favoritas no mundo, Vera. — Segurei suas mãos finas e calejadas. — Eu conheço minha mãe, e tenho certeza que ela aproveitaria sua presença. Aliás, você deveria levar a cítara! Aeg sempre gostou de música.

Primavera sorriu, mostrando os largos espaços entre seus dentes. Desde bebê até aquele momento, suas feições sempre foram muito mais belas que as minhas. O nariz largo e empinado, os lábios grossos e escuros, os olhos claros como duas pérolas, as bochechas gordas e os cabelos claros, crespos e cheios, faziam-na, provavelmente, a irmã mais linda da família. O cogumelo cor-de-café, antes tão pequeno, tornou-se um chapéu ao redor de sua cabeça, e, apesar de incomodá-la em certos momentos, ela nunca quis cortá-lo.

— Vamos, então. — Ela cedeu, fingindo que não estava empolgada para a viagem, apesar de seus olhos nunca mentirem. — Desde que me prometa que vamos voltar antes da minha primeira lição.

— Minha frostiana! — O abraço apertado de minha mãe me envolveu antes mesmo de eu ver seu rosto, enquanto ainda estava acomodando os nossos grandes sapos-cogumelo no estábulo. Ela me balançou de um lado para o outro em mãos, e afastou nossos rostos pouco antes de eu enlaçar meus braços em seu pequeno corpo. — Você podia ter me mandado uma carta dizendo que vinha, eu teria preparado um bom jantar! E quem é essa pequenina? — Seus olhos curiosos correram para observar Primavera, que se encontrava adoravelmente encolhida ao meu lado.

— Mãe, essa é Primavera. — Respondi, desfazendo o abraço para apresentá-las. —  Primavera, conheça minha mãe, Aeg.

— Muito pra...

— Ela é tão linda quanto imaginei! — Aeg interrompeu a fala de minha irmã, puxando-a para um abraço. — Princesa, você não me conhece, mas eu ouvi tanto falar de você que parece que a conheço há anos!

— Mãe, você está sufocando a Vera! — Não pude evitar de sorrir com sua amorosidade, especialmente por notar as feições de Primavera relaxando.

— Está tudo bem. — Disse a menor, com rubor nas bochechas pelos elogios e pela demonstração de afeto. Certamente não era algo que estava habituada.  — É um prazer conhecê-la.

— E tão educada também! Quantos anos você tem, mesmo?

— Dez.

— Deveria ensinar bons modos à sua irmã. — Aeg brincou, fazendo-me rolar os olhos, apesar do meu nítido sorriso. — Ela não era nem de longe tão educada assim aos dez anos.

A pele de minha mãe era de um tom suave de amarelo, tal como a minha. Em geral, éramos muito parecidas, ainda que seus cabelos fossem já grisalhos e os meus, loiro-perolados; também herdei de minha mãe suas sardas brancas pelo nariz e bochechas, acompanhadas por um rubor naturalmente alaranjado em seu rosto redondo. Os cílios claros escondiam pequenos olhos claros, puxados como os meus. Não sei se poderia considerá-la robusta, mas, ao longo dos anos, havia ganhado um peso saudável que a deixara ainda mais bonita. E seu sorriso, sempre se expandindo de orelha a orelha sem precisar de motivos para fazê-lo, era capaz de alegrar até mesmo um funeral.

O campo onde minha mãe morava era localizado em um dos lugares menos úmidos da nossa região. A grama ao redor de sua casa era rasa e de um verde amarelado; a casa em si, uma cabana feita com madeira escura, de onde sempre se podia sentir o cheiro de chá ou bolo exalando através das pequenas janelas.

Quando entramos, pude notar que poucas alterações foram feitas ao longo do tempo. Uma pintura de quando eu era criança, poucos anos antes de Primavera nascer, continuava ocupando um grande espaço na parede, bem acima da lareira; alguns bordados novos que minha mãe fizera ocupavam o restante das paredes.

— Não reparem na bagunça! — Disse Aeg, que já partiu para a cozinha, provavelmente à procura de algo para nos servir. Não conseguia enxergar a bagunça que havia citado; sua casa parecia estar sempre impecável, ainda que minha mãe não contratasse criadas para mantê-la de tal jeito.

Tirei meus sapatos, acompanhada por Primavera, e nós duas nos sentamos no sofá cor-de-vinho. Às vezes, eu chegava a pensar se seria uma pessoa diferente se tivesse sido criada ali; se tivesse ido para um colégio normal, ao invés de ter aulas particulares, e houvesse feito amizade com outras crianças da minha idade, ao invés de passar boa parte dos meus dias em completa solidão. Eu queria aquilo: viver no campo, com Aeg e Vera, em completo anonimato e sem nunca mais me importar com política, ameaças de guerra e o bem do país.

A minha única ambição era mais impossível que as de Yrhena, Theodas e Primavera juntas: ter uma vida normal.

Tentei afastar o pensamento quando minha mãe voltou com uma bandeja, e sorri ao perceber que havia feito minha bebida favorita: chá de alecrim, morango e lascas de árvore. A mais velha notou meu sorriso e disse suavemente:

— Nunca deixo faltar morango aqui em casa. Afinal, vai que recebo uma visita inesperada dessas?

Nós duas sabíamos o que isso significava. Minha mãe costumava dizer que vivia com desejo de morango quando eu estava em sua barriga, e a fruta nunca deixou de ser meu alimento favorito, competindo apenas com...

— Bolo de terra! — Exclamei, incapaz de esconder meu entusiasmo ao ver o conteúdo da bandeja, pouco antes de colocar um pedaço de bolo inteiro na boca.

— Esse é o famoso bolo de terra de Aeg Hopia? — Perguntou Primavera, rindo de minha reação eufórica.

— Você gosta? — Perguntou minha mãe, ao levantar um prato de bolo da bandeja e oferecê-lo à menor. Vera assentiu gentilmente e aceitou a oferta.

— É uma delícia. Você não vai se arrepender. — Murmurei, a voz abafada pela quantidade de comida em minha boca.

— Princesa Oleandra Hopia Lumigray, — repreendeu Aeg. — Você continua com essa mania de falar de boca cheia?

— Perdão. — Falei, de boca cheia, de novo.

— Você não tem jeito. — Minha mãe tocou meu nariz com uma repreensão carinhosa.

Tentei engolir o resto do bolo de uma vez só, mas o alimento desceu secamente pela minha garganta, então bebi um longo gole do chá.

— Eu ouvi que está tendo um festival. — Comentei.

— Ah, sim! — Respondeu a mais velha, seu olhar se direcionando à janela, fazendo-me deduzir que começaria a tagarelar em breve. — O festival de outono. As pessoas da cidade nunca ficaram tão empolgadas com um evento antes; acho que vai ter um Volva muito importante presente, ou algo do gênero. Vocês duas deveriam ir!

— Eu nunca vi um Volva antes. — Assentiu Primavera, como se tais bruxos fossem um espécime raro.

— Não quer vir com a gente?

— Ah, eu não gosto desse tipo de multidões, você sabe. Milhares de pessoas virão do reino inteiro para ter uma leitura de seus futuros, e, bem, eu já estou certa de que meu futuro será o mesmo que meu presente. — Ela sorriu.

Apesar da simplicidade de sua vida, minha mãe parecia verdadeiramente feliz, o que me fez concordar com ela; viajar até a cidade para saber de seu futuro seria perfeitamente inútil quando se está vivendo seu próprio sonho.

Isso me fazia sentir um pouco de inveja de minha mãe, mas era verdade. Só pessoas infelizes gostariam de saber sobre o que vinha pela frente.

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