Terra Proibida - Essência

By EvaSans86

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Em um entrelaçar de passado e presente, mergulhe em uma trama que desafia os limites da razão e da sanidade... More

Nota da Autora
[Agora] A queda
[45 anos atrás] A proposta
Cap. 2 - Tormenta
Cap. 3 - Ecos do Passado
Cap.4 - A medalha
Cap. 5 - Revelação
Cap.6 - O nada
Cap. 7 - Oráculo
Cap. 8 - Isadora Moraes
Cap. 9 - Elizabeth Detzel
Cap. 10 - Segredos ao pôr do sol
Cap. 11 - Sangue quente
[45 anos atrás] A Alma à venda
[45 anos atrás] A casca
[Agora] O Salto
Cap. 12 - Despertar
Cap. 13 - O Animal que me tornei
Cap. 14 - Presente de grego
Cap. 15 - Feito de lágrimas e cinzas
[45 anos atrás] Ninguém se lembrou
[45 anos atrás] Inferno
[45 anos atrás] Quando todos os homens falharam
[45 anos atrás] Mais que morrer
[45 anos atrás] Seus pensamentos
[45 anos atrás] Miserável
[45 anos atrás] Esse tipo de amor...
Cap. 16 - Versões de uma mulher
Cap. 17 - A casa
Cap. 18 - Terceira morte
Cap. 19 - Primeira vida
Cap. 20 - Alguém tem que morrer
Cap. 21 - Sete Palmos
Cap. 22 - O Centro do Universo
Cap. 23 - Essência

Cap. 1 - Sentimentos Ocultos

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By EvaSans86

[2ª Edição]


[1 ano atrás]

Benício Speltri

— Eu vou te matar!

A frase proferida pela companheira na mensagem de áudio que recebeu duas horas atrás tilintavam na mente de Benício como sinos infernais.

Não respondeu à mensagem, tão pouco o ghosting era intencional, apenas, desta vez, não sabia o que e como responder.

Quando foi que tudo começou a dar errado? Se Perguntava. O problema, é que agora ela tinha fotos que comprovavam uma suposta traição, mas que diabo de fotos seriam essas?

Apoiado no parapeito da sacada do salão de festas do hotel, Benício olhava para a lua que cintilava acima do mar. Completamente alheio ao evento que rolava no interior prédio e tomando — sabe-se lá — sua quarta ou quinta dose de whisky, brincava com a corrente da medalhinha de ouro branco que ganhou de tia Elizabeth quando criança, enquanto ponderava sobre as tais fotos que Olívia dizia ter.

Tudo parecia vago e isso o irritava.

Na verdade, ultimamente tudo o irritava.

O evento onde estava, uma exposição póstuma com as obras de Maria Madalena Ortega, sua mãe, era um evento anual que reunia a nata da alta sociedade, importantes parceiros comerciais dos negócios do pai, amigos íntimos da família e claro, uma oportunidade perfeita para encontrar uma das pessoas que mais admirava no mundo, a incrível tia Elizabeth Detzel.

— Você está lindo. – disse ela, de longe, em uma falha tentativa de se aproximar, sendo interrompida pelos convidados.

Elizabeth trajava um belíssimo vestido branco que combinava perfeitamente com as arrojadas joias que adorava usar. Suas vívidas madeixas vermelhas se encontravam presas em uma cascata lateral que caía levemente até abaixo dos ombros. Ela inspirava fundo o aroma das flores que ornavam o lugar, enquanto os convidados elogiavam o evento ou faziam perguntas sobre as obras. Era a curadora da exposição e nos perfeitos lábios vermelhos malagueta estampava um sorriso satisfeito. Em seus aproximadamente cinquenta e poucos anos, Elizabeth Detzel era, de fato, magnífica. Na cabeça de Benício, se os deuses existissem, ela com toda certeza seria um deles, então a adorava.

Por um bom tempo Benício se esqueceu dos problemas e se concentrou em observar e admirar aquela mulher. Admiração que compartilhava com o pai, Raul, que do outro lado do salão, bem de longe, também mantinha os olhos fixos nela.

— Bê, a baba chega está escorrendo! – disse Henri, aparecendo sorrateiro ao seu lado com cara de nojo.

Henri era o irmão mais novo de Benício. Vestia um costume cinza, com uma gravata listrada e seus cabelos louro-escuros milimetricamente penteados, coisa que raramente fazia. Ele era o galã da família com seu estilo surfista libertino. Esse maldito sol ambulante. Iluminava por onde passava.

— A tia Liz só está linda. Como sempre. — Benício não conseguia esconder a admiração.

— Não sei como a Olívia nunca descobriu essa sua paixão secreta pela tia Liz! É tão... Obvia!

— É só um amorzinho platônico que conservo desde quando nasci. Bobagem. — desconversou.

— Ual! — Henri dava ênfase em cada sílaba, puxando o maço de cigarros do bolso acendendo um em seguida. — aceita?

— Você vai fumar do meu lado? Isso mata.

— Vou morrer de qualquer forma, então foda-se. Um de nós dois tem que ser o "bad boy".

— Se seu "bad boy" se resume a fumar, digamos que você está bem "aquém" da minha possibilidade de ser o cara mau da história.

— Aquém? Como assim?

— Olívia, minha... não sei nem se posso dizer, mulher, disse por mensagem de voz que vai me matar.

— Ela disse isso? Tá gravado? Já denunciou essa doida? Eu te disse pra não juntar com essa mulher, que ela é um demônio e você me ignorou. — Henri deu um forte trago, liberando a fumaça objetivamente — Conselho de advogado, faça um B.O. assim que voltar pro quarto. Melhor... Faz um B.O. AGORA!

— Deixa de ser paranoico! Ela tem uns parafusos a menos, mas não é má pessoa.

— Aham. Confia. Sabe quantos casos assim aparecem no meu escritório? Isso pode dar merda...

Enquanto o irmão enumerava as possibilidades de coisas ruins que podiam acontecer, falando sem parar, Benício estava em automático, sua mente e seus os olhos pairavam em outro lugar, no interior do salão. Seu pai e Elizabeth agora brindavam alegremente suas taças de champanhe e conversavam algo que parecia divertido. Seriam um casal perfeito, e constatar isso despertava uma pontadinha de ciúmes.

— Por que esses dois não ficam juntos e se beijam logo de uma vez? — perguntou retoricamente, ignorando o falatório do irmão.

— Como? — interrompeu o mais novo chateado.

— Ele pode, não pode? Viúvo e completamente desimpedido, mesma faixa etária, nada mais justo.

— Espera, você ignorou mesmo tudo o que eu tava falando?

— Claro.

— Olha só, Bê! Assim como eu levo em consideração tudo o que você me diz, você também deveria me ouvir. Sou seu advogado, porra! — tomou ar. Benício o ignorava solenemente — A tia Liz era a melhor amiga da nossa mãe, e por mais que eu ame o nosso coroa, não faz sentido! Nem ele e nem você são dignos de uma pessoa tão espetacular quanto ela. Acorda!

— Desse jeito, parece que você gosta dela mais que eu!

— Gosto. Mas meu sentimento por ela é o de filho. Ela é uma terceira mãe pra mim e não me confunda com você, que pegava qualquer menina ruiva na adolescência quando estava bêbado, jurando que era a tia e olha só no que deu? Terminou sendo ameaçado de morte por uma dessas doidas.

— Joga na minha cara o meu passado sórdido, santo Henri! — perdendo a paciência — Quer mexer nas merdas do passado mesmo? Não tem nenhuma mulher sozinha nessa festa pra você alugar, não?

— É. Esse assunto já tá ficando chato! Aliás, você é chato. — olhou multidão e focou em uma mulher acompanhada por um senhor caquético, a apontou mostrando a Benício. — vou dormir com aquela.

— Duvido.

— Aposta quanto?

— Vai se ferrar!

Com um piscadinha safada, Henri se dirigiu ao alvo enquanto Benício voltava à amargura. O garçom trocava mais uma vez o copo por um cheio e a resistência ao álcool começava a ruir. Gostava de Olívia, mas preferiu, por hora, não contar para Henri sobre o motivo da ameaça, pois sabia que ele não largaria do pé a noite toda para saber detalhes, e como contar detalhes que nem ele mesmo sabia quais eram?

Vislumbrou o próprio reflexo na vidraça que separava a sacada do interior do prédio e ao contrário de Henri, que passou por uma verdadeira metamorfose ao sair da puberdade, se tornando belíssimo, Benício se achava comum, ainda mais agora, nos seus trinta e quatro anos. No fundo, se desprezava. Era como se a pessoa que enxergasse refletido fosse outra e isso o fazia questionar o tamanho ciúme que Olívia sentia, porém, nada fazia sentido.

— Fiz um ótimo trabalho escolhendo esse terno. — disse tia Elizabeth interrompendo o momento introspectivo. — realçou sua beleza.

A resposta de Benício foi um contrariado e amargo sorriso de canto.

— O que há de errado, meu amor? — perguntou ela com seu carinho habitual.

— Nada.

Elizabeth segurou o rosto de Benício com as duas mãos, fixando o olhar no dele, naquele exato momento, parecia que ela folheava a sua mente. Os lábios da ruiva se curvaram em um sorriso tranquilizador, deixando seus dedos acariciarem suavemente a vasta cabeleira de Benício, bagunçando as negras mechas onduladas.

— Hum... Seus olhos me dizem o contrário. — sussurrou ela.

Naquela altura do campeonato, o álcool já tinha bagunçado os sentidos de Benício, que se controlava ao máximo para não puxar o corpo dela contra o dele e beijá-la. Parecia um déjà vu. Por fim, acalentou o beijo levando uma das mãos da tia até os lábios, inspirando o perfume que dela exalava, fechando os olhos.

— Ah! Tia Liz, casa comigo?

— Benício Speltri. Você está bêbado! — ela riu e se aproximando do ouvido dele, disse baixinho — quem sabe na sua próxima vida?

— Isso é uma promessa?

De longe, Henri os observava perplexo. Qualquer um que visse a aproximação dos dois diria que Benício estava prestes a dar um daqueles beijos cinematográficos em Elizabeth. Raul, o patriarca, tinha a mesma expressão chocada de Henri, a única diferença era que além do espanto, os olhos começaram a marejar. O alívio veio em seguida, com o desfecho em um caloroso abraço.

— A exposição, mais uma vez, é um sucesso! — disse Raul aproximando-se do filho, interrompendo o abraço, puxando Elizabeth para si. — filho, onde está Olívia?

— Tramando algo macabro contra mim, no mínimo.

— Os dois brigaram. — Elizabeth falava com uma certeza tão grande que chegou a assustar Benício. — Olívia teve outro ataque de ciúmes, só que dessa vez prometeu matá-lo.

Benício não se recordava de ter dito nada sobre a mensagem de Olívia e mesmo assim Elizabeth sabia exatamente sobre o que se tratava. Poderia ela ter lido sua mente? Sobre o que mais ela sabia? Era uma conexão estranha que tinha com ela. Ela sempre sabia.

Um fotógrafo havia pedido uma foto da família, Elizabeth procurava por Henri com o olhar e logo foi atendida assim que o rapaz percebeu o chamado.

— Ainda bem que sua tia escolheu nosso figurino. — confidenciou Raul a Benício. — ela quer uma foto estilo esses comerciais de margarina.

— Deixa de ser maldoso Raul! — intrometeu-se Elizabeth, com um sorriso deslumbrante. — Vocês três são a família que adotei e nada mais justo que uma bela foto nossa para a posteridade.

Aos olhos do fotógrafo, a foto estava perfeita. Elizabeth e Raul ao centro, Benício ao lado do pai e Henri ao lado da Tia. Todos segurando suas taças de champanhe com incandescentes sorrisos estampados em suas faces.

— Agora sim! — exclamou Henri ao ouvir as primeiras notas da música que a banda começara a tocar em uma tenda na praia. — começou a verdadeira festa! — Saiu puxando Benício para a pista de dança, deixando Elizabeth e Raul a sós.


Elizabeth Detzel

A fria brisa do mar assanhava os cabelos de Elizabeth, que logo foi acolhida pelo blazer de Raul em seus ombros, a abraçando como o casal que um dia já foram, enquanto caminhavam pela praia.

— Obrigado pelo filho maravilhoso que você me deu. — disse Raul. — Ele foi um sopro de vida para a Madá e a razão de tanta inspiração para esculpir, pintar e produzir essa caralhada de arte... Sem ele, talvez, essa noite nunca fosse possível. — se posicionou de frente a Liz e a olhou no fundo dos olhos. — mais uma vez, obrigado.

Elizabeth deixou o sorriso a iluminar.

— Madalena era inacreditável, não era? E sabe o que foi o mais engraçado em toda a nossa trajetória juntas? Ela sempre soube que Bê não era o filho dela.

— Como? — perguntou surpreso — Eu fiz de tudo pra esconder, ela nem chegou a ver o nosso bebê morto?

— Mães sempre sabem Raul! Antes que o bebê de vocês nascesse, ela já sabia que ele estava morto. — um breve silêncio — e por isso ela agradecia todos os dias aos deuses pelo filho novo que recebeu. O Bê foi a oportunidade que ela precisava.

— Então ela sempre soube...

— Sempre. Mas ele não sabe, e assim deve permanecer.

Caminharam em silêncio durante alguns minutos, sentindo na pele o frescor da noite.

— Você já parou pra pensar que hoje tudo poderia ser diferente? — perguntou Raul, enquanto se distanciavam do evento em direção ao mar, ainda de mãos dadas.

— Sim. — respondeu a ruiva com ar nostálgico, encostando a cabeça no ombro de dele. — Se você não tivesse sido um filho da puta comigo, eu poderia ter me casado com você. Talvez hoje estaríamos em uma aconchegante casa em Minas Gerais, cheios de netos — ela parou e com tristeza continuou. — Mas vamos combinar que ele foi bem além. Ele não me julgou, não cuspiu na minha cara, e também não me abandonou quando eu mais precisei.

— Até hoje você guarda essa mágoa? Mas, Liz! Como eu poderia saber? Tudo conspirava contra nós!

— Você poderia ter me escutado antes e julgado depois, né querido? — ela o encarou com olhos cheios de lágrimas.

— Como a vida é irônica. — respondeu Raul irritado. — Aposto que você estava vendo o Diego quando estava olhando para o Bê.

— Quem, ou o que, eu estava vendo não interessa. — desconversou.

— Liz, afinal, quem são os pais dele? Pergunto porque você nunca engravidou e ele é igualzinho ao Diego.

— Ele é filho da Madalena Ortega e o pai dele é você, ora bolas! Não começa.

— Mas o que aconteceu com o Diego? Por que você nunca fala nele?

— Raul! Deixe que os mortos, permaneçam mortos.


Benício Speltri

O relógio marcava três horas da manhã e Benício despertou assustado.

A suave luz da lua parecia bruxulear por trás das cortinas do seu antigo quarto, fazendo com que as sombras tomassem espectros fantasmagóricos.

Com dificuldade para respirar, sentou na cama, colocando a cabeça entre as mãos em um exaustivo esforço para se livrar do pânico que este último pesadelo deixou.

Inspira... solta... Inspira...

Ofegante e febril, olhou para a mesinha de cabeceira e pegou o celular que estava nela. Fez mais um exercício de respiração. Fechou os olhos, engoliu a saliva em seco, colocou o celular e um potinho de comprimidos no bolso do pijama, e silenciosamente saiu de carro pela cidade afora.

Chuviscava e pelo tardar da noite, não havia quase ninguém nas ruas. Por mais que tentasse se afastar dos pensamentos intrusivos, onde flashes do dia anterior se misturavam a cenas do pesadelo, eles surgiam o tempo todo, exterminando qualquer possibilidade de paz.

Agora era um homem solteiro.

Foi expulso de casa por Olívia, sua agora ex, completamente transtornada, o acusando de algo que não tinha feito: traí-la.

Estavam juntos desde a adolescência. Passaram por crises homéricas, desde entraves financeiros, até o baque da infertilidade, que devastou a relação e culminou nas pesadas crises de ciúmes de Olívia. Mas mesmo com todos os empecilhos, ele gostava dela. Eram quase vinte anos de relacionamento e agora tudo estava acabado.

Não queria voltar para casa do pai. Também não queria ficar em um hotel. Quem dera o silêncio das ruas de Brasília fosse capaz de apaziguar o turbilhão de emoções que o bagunçavam.

Estacionou o carro em um lugar aparentemente seguro, onde dava para ver uma das belíssimas obras de Niemeyer, olhou bem ao redor, e quando percebeu que não havia ninguém por perto, constatou que aquele seria o cenário perfeito para narrar suas tragédias íntimas. Desde muito jovem gravava os pesadelos que tinha e também as sensações ruins quando as sentia, para um dia, estudá-los em algum experimento.

O pesadelo que o despertou naquela noite era recorrente. Ligou o gravador do celular e começou o relato.

– Como de costume, quando estou puto com a vida, tive mais uma noite terrível regada a pesadelos vindos diretamente dos quintos dos infernos – As palavras saíram ríspidas, tomou fôlego. – nesse pesadelo, matei minha mãe outra vez naquele maldito cenário medieval. Porra! Eu queria tanto a minha mãe viva...

Passou meia hora falando para o nada. Interrompeu a gravação quando a chuva começou a romper e permitiu que a água o encharcasse, para quem sabe assim, ela lavasse e levasse suas dores.

A decisão veio como um relâmpago. Naquela noite seu refúgio seria a casa de tia Elizabeth. Fazia quase uma década que não ia pra lá, mas desconfiava que a tia mantivesse o lugar apenas para que ele pudesse ir se precisasse. Liz preferia ficar na casa de praia no litoral baiano ou viajando mundo afora.

A casa ficava em uma das regiões mais caras da capital brasileira, de frente para o Lago Paranoá. O controle que abria o portão ainda funcionava, mesmo que todo o sistema de segurança da casa já tivesse sido trocado por, pelo menos, três vezes.

Estacionou o carro na garagem e entrou na casa. Era tudo tão tecnológico, porém, ao mesmo tempo, tão acolhedor e familiar, que aquela, sim, parecia sua real casa. Não tinha absolutamente ninguém e como estava molhado, não hesitou em tirar as roupas e ficar completamente nu apenas com uma toalha, conectou o celular no sistema de áudio da casa e colocou sua playlist favorita pra tocar.

Tia Liz tinha uma adega fenomenal. Examinou com bastante cuidado os rótulos e assim que encontrou um que agradasse seu paladar, se serviu uma taça.

Agora sentia-se perfeitamente à vontade. Era como se a vida fora daquela residência nada tivesse a ver com ele. Ou será que o vinho era mais forte do que deveria?

Ignorando que tinha que trabalhar no dia seguinte, secou a primeira garrafa e já estava na metade da segunda.

Música, livro, tela.

Lembrou de uma obra que não tinha terminado de pintar, no estúdio de arte da casa: O sorriso de Elizabeth, pintura que começou quando era adolescente e que nunca terminou. Subiu as escadas, entrou no cômodo, caminhou até onde a tela estava, tirou o pano que a cobria e com um sorriso bobo, ponderou que quando começou a pintar, acreditava que Madalena e Raul eram seus pais biológicos. Quando descobriu que não, foi a primeira vez que seu mundo desabou.

Misturou as cores. Outro gole de vinho. Não era fumante, mas naquele momento, queria muito um charuto e como mágica, o tinha nas mãos. Ou será que estava muito bêbado e nada daquilo era real?

Colocou o charuto agora aceso na boca, chupou o ar suavemente preenchendo a boca com a fumaça, para alguns segundos depois soltar.

Dedicou-se a obra e ao terminar, assinou.

Diego Ferri.

Cochilou sentado por alguns minutos. Acordou no susto ao cair da cadeira. Pegou com um pouco de dificuldade o celular em cima da mesinha de apoio, verificou as horas, mandou uma mensagem. Riu da própria desgraça.

Foi até a cozinha da casa preparar algo para comer e quem sabe, amenizar o porre, já que estava em sua quinta garrafa de vinho.

Enquanto mastigava seu sanduíche, fantasiava uma vida diferente, uma vida onde pudesse ser feliz como qualquer outro mortal. Nesta vida, sua esposa era uma versão jovem da tia Elizabeth Detzel e eles tinham uma filha de três anos.

— Seu velho caquético! Múmia! – Praguejava a Elizabeth de sua imaginação, jogando almofadas, nele. Soprando as mechas vermelhas que caiam no rosto. – Olha a cor desta criança!

Ela mostrava a ele uma garotinha sorridente, suja com tinta de todas as cores possíveis.

— Bruxinha, ela precisa se expressar! Deixa a menina pintar, depois eu limpo a bagunça. – respondeu rindo e pegando a filha. – Olha como ela tá linda, toda colorida!

— Você vai dar banho!

Imaginar a cena, ao mesmo tempo que o divertia, trazia uma tristeza tão profunda que não era capaz de cessar as lágrimas. Não importava o quanto acumulasse em suas reservas bancárias, o sucesso na carreira, a felicidade era só aparência. Ele não podia gerar filhos, tão pouco admitir amar Elizabeth.

Passou o dia bebendo e fantasiando.

O alarme do celular despertou. Hora do remédio. O santo antidepressivo que o mantinha vivo.

Foi até onde havia jogado o pijama, pegou dentro do bolso o frasco de comprimidos, tomou dois. Eles desceram rasgando a garganta, dilacerando o estomago e o que mais havia por dentro. A dor era tanta, que a última coisa que viu em vida foi o sangue que cuspia no chão.

Acordou para o sono dos mortos. 

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