Qingshan e o imperador

By Malughiraldeli

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O imperador está morto, o Regente não se importa com o povo e o príncipe não é capaz de governar. Nesta relei... More

Prólogo - Sangue na Montanha
Capítulo 2 - O ladrão mascarado
Capítulo 3 - O valor de um soldado
Capítulo 4 - O povo da Montanha
Capítulo 5 - O Mercado Norte
Capítulo 6 - A joia de jade
Capítulo 7 - O cavalo de um guerreiro
Capítulo 8 - Infiltrado no conselho de guerra
Capítulo 9 - Novato
Capítulo 10 - O vilarejo em chamas
Capítulo 11 - O reencontro
Capítulo 12 - A morte do príncipe
Capítulo 13 - O aniversário do príncipe
Capítulo 14 - Jun
Capítulo 15 - Capitão Shang
Capítulo 16 - Um encontro ao luar
Capítulo 17 - A fé do capitão
Capítulo 18 - A guarda particular do príncipe
Capítulo 19 - As noivas do imperador
Capítulo 20 - Liling
Capítulo 21 - A máscara dourada
Capítulo 22 - O bezerro sacrificial
Capítulo 23 - Os olhos
Capítulo 24 - A grande cerimônia
Capítulo 25 - O discurso
Capítulo 26 - O imperador
Capítulo 27 - O dote de uma imperatriz
Capítulo 28 - Era uma vez uma guerreira
Epílogo - A casa de chá

Capítulo 1 - A família sem homens

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By Malughiraldeli


A família Li só tem um homem: meu tio Chen, que serve ao imperador e que, portanto, nunca está em casa. Para nós, as mulheres da família, ficou a missão de cuidar de... Bem, tudo. Somos uma das famílias mais antigas do vilarejo e vivemos praticamente isoladas. Nosso pequeno povoado fica próximo o suficiente da Muralha para estar sempre com medo, sentindo a tensão que ora se expande, ora parece desaparecer, entre o Império e o Povo do Outro Lado.

O Povo do Outro Lado, dizem as histórias, foi o responsável pela morte do imperador, dez anos atrás. Desde então o filho dele, o Príncie Arjun, aguarda ter idade o suficiente para tomar as rédeas do império do pai. Dizem que este ano ele estará pronto, mas também diziam isso no ano anterior e ninguém viu o príncipe Arjun assumir o trono, ao invés disso ele delega sua posição e seu poder aos seus tutores e ao regente; o conselheiro Zang Wei e seus generais.

Eu, como a mulher que sou, não deveria saber de nada disso, mas não resisto a ler escondida as cartas de minha tia, que por sua vez também não deveria saber de nada disso, mas a frustração de tio Chen é tão grande e o povo está tão cansado de viver com medo, aguardando que o príncipe cresça e derrote nossos inimigos, que até mesmo ele não resiste a lamuriar-se com a esposa.

A tia Mei esconde essas cartas embaixo da lenha na cozinha, que é para não esquecer de queimá-las mais tarde, mas Ru Shi, a filha dela e minha querida prima, é tão sorrateira quanto uma doninha e como ela pretende um dia arrumar um bom partido que a leve do vilarejo, Ru Shi monitora com afinco toda a correspondência dos pais. A principio ela só queria informação sobre os soldados, quem está com qual patente e quem é mais promissor — eu sei que ela vem guardando dinheiro para subornar a casamenteira do vilarejo vizinho, então esse tipo de informação pode vir a ser muito útil. — Mas então as cartas do tio Chen começaram a ficar mais sombrias, seu desgosto com o reino maior e a angustia e preocupação de Ru Shi ficaram maiores que seu medo de ser pega compartilhando informação sigilosa, foi o que a fez mostrar as cartas para mim.

Eu sou Qingshan. A única filha de Li Liang e Li Guan Tao, um dia um general do império, mas que morreu anos atrás durante uma invasão da Muralha. Eu tento ser a filha que dá conta de tudo, mas na maioria das vezes é difícil, pois sem um homem na família é praticamente impossível se manter. Nós não temos autorização para viajar desacompanhadas, nem exercer muitos trabalhos. A família Li só se mantém graças à casa de chá que por sinal é meu único dote e o último presente que meu pai me deixou. É por isso que, ao invés de estar comprando sedas bonitas no mercado e saindo em busca de um bom partido, estou aqui, atrás do fogão a lenha, com minhas roupas mais velhas, fervendo ervas aromáticas e aprontando bandejas de chá enquanto Ru Shi, em seu quimono lilás mais bonito, serve cada uma das mesas de nossos clientes.

Infelizmente nenhum deles é considerado um bom partido.

— Qingshan! — grita Ru Shi assim que atravessa as portas que levam à cozinha, que é onde estou, ajoelhada na frente do fogão, verificando porque a porcaria da madeira não quer pegar fogo. Eu empurro uma tora e sou premiada com uma lufada de fumaça que me faz tossir. — Papai está vindo com um regimento! Vão ficar hospedados aqui!

Eufórica, ela se ajoelha ao meu lado abanando no ar uma folha amassada que ela vinha escondendo no interior do quimono até então. Ainda tossindo e com olhos lacrimejando, eu me levanto içando-a comigo. Será que ela não percebe que está sujando seu último quimono bonito?

— Que ótimas notícias! — tento comemorar entre uma tosse e outra, mas não consigo realmente me animar. Um regimento hospedado no vilarejo, sob a tutela de nosso tio e, obviamente, das mulheres Li, vai nos fazer gastar ainda mais nossos já parcos recursos. Tenho certeza que essa é uma armadilha do tio Chen para casar a filha logo e, talvez com sorte, me casar também.

O pensamento me traz uma pontada de desconforto.

— Está tudo bem aí? — Minha mãe, que até então estava no quintal separando as folhas de chá, entra na cozinha e nos espreita com seu conhecido olhar desconfiado. Ru Shi esconde as mãos nas costas e rezo para que minha mãe não decida inspecionar. Não consigo sequer calcular o tamanho do castigo que receberíamos se ela descobrisse que vínhamos interceptando a correspondência da tia Mei.

— Sim, mamãe, eu só me engasguei — respondo com um sorriso, puxando uma bandeja e acomodando mais duas xícaras aleatoriamente, que empurro na direção de Ru Shi. — Nós precisamos de mais folha de amora. — comento, dando a deixa para Ru Shi se retirar.

Minha mãe não responde, só solta com certa força o cesto sobre a mesa, passando a encher meticulosamente uma bacia com água. Sei o que a preocupa. Nosso estoque de tudo está baixo, não temos dinheiro sequer para repor as folhas de chá que não temos plantadas, os comerciantes passam cada vez mais esporadicamente, afinal nosso vilarejo não compra muita coisa, e o mercado mais próximo está a dias de viagem. Somos um desastre anunciado.

Ah sim, eu me pergunto se ela já sabe que tio Chen está voltando... com um regimento.

Um regimento é composto por pelo menos vinte bocas famintas depois de perambular pelas estradas do imperador. A base de tio Chen é na metade da Muralha, o que dá mais ou menos seis dias de viagem até o vilarejo. Não é o melhor dos lugares para se estar em termos de recursos e, acredite em mim, se você está no meio da Muralha, não vai querer descer para o sul, onde nós estamos. É aqui onde os recursos ficam mais escassos e é exatamente onde o Povo do Outro Lado costuma tentar invadir.

Na verdade eles costumam tentar invadir por todos os lados, mas o sul fica mais próximo dos portões por ser estrategicamente mais afastado do palácio real. São dias de uma longa viagem cansativa entre vilarejos empobrecidos, bases militares e florestas inóspitas. Estes somos nós, um povo muito acolhedor. Eu francamente não vejo razão para o Povo do Outro Lado querer invadir nossas terras, mas as histórias dizem que são gananciosos e querem transformar nosso reino no reino deles, afinal, embora o sul tenha sido prejudicado pela Muralha, pela sombra das montanhas e pela presença deles, o norte, onde fica o palácio, é extremamente próspero.

É por isso também que no sul faltam bons partidos, a maioria dos jovens rapazes quer se tornar soldado, não por dever militar, mas pela oportunidade de morar na cidade do imperador, aos pés do palácio, onde poderão comer bem, se vestir bem e desfrutar de boa companhia e segurança.

Eu sei, você vai me perguntar: "Mas Qingshan, então por que vocês moram no sul?", bem, nós não tivemos escolha. Os primeiros generais após o assassinato do imperador e da construção da Muralha foram mandados com seus regimentos e suas famílias para estes pequenos vilarejos inóspitos onde poderiam tomar conta da muralha e, consequentemente, da segurança do jovem príncipe... Que deve dormir em uma cama de ouro, em um quarto quente, cheio de comida, em seu palácio no próspero norte. Que nós protegemos com nossos bons partidos, nosso suor e nossas lágrimas.

Alguns com seu próprio sangue.

Tenho que admitir... Eu odeio o jovem príncipe Arjun. Mas gostaria que ele assumisse logo o trono e pudesse tomar conta da própria vida, assumir suas próprias batalhas e deixar a todos nós em paz. Tudo o que o conselheiro real sabe fazer é formar tropas para proteger Arjun, enviar regimentos para caçar invasores da Muralha — que podem assassinar Arjun — e formar ainda mais regimentos para vigiar ainda mais o palácio e a Muralha. Enquanto isso nós sofremos tentando nos manter.

Meus pensamentos me deprimem, sinto o peso em meus ombros como se fosse uma velha que já não tem expectativas quanto a vida, mas sigo trabalhando, servindo xícara de chá após xícara de chá até o céu ficar laranja com o entardecer e Ru Shi recolher a última mesa do último cliente, então nos sentamos juntas no degrau da varanda comendo os últimos bolinhos de arroz — com parcimônia, pois o arroz também está acabando e não sabemos quando poderemos ir ao mercado comprar.

— Não se preocupe, tenho certeza que meu pai trará comida e dinheiro — assegura Ru Shi, sentando ao meu lado — ele sempre traz.

Gostaria de ter mais animação, mas só consigo assentir e suspirar.

— Com tantos soldados aqui, talvez a gente consiga arranjar um bom partido — ela me dá um empurrãozinho com o ombro, estendendo a carta amassada. — E nem precisaremos gastar com a casamenteira.

A ideia de casar não causa em mim o mesmo entusiasmo que causa em Ru Shi, não sei dizer por quê. Minha prima sonha com casas decoradas por ela mesma, crianças bonitinhas chamando-a de mamãe e um homem bonito e leal que aqueça sua cama. Ela é alguém prática. Já eu... Eu não sei o que sou. No momento sou a garota que serve o chá, mas também sou a filha de um general morto, sou curiosa e um dia já fui chamada de indomável, embora agora esteja cansada demais pelas dificuldades para me sentir tão selvagem. Ainda assim a perspectiva de ser uma dona de casa não acrescenta nenhuma alegria a meu coração, mesmo que eu não saiba que outra opção existiria para mim. Posso ser a dona da casa de chá até o último de meus dias, claro, mas será que é isso que desejo? E, se não for, então o que eu desejo?

A pergunta me corrói noite e dia, mas nunca deixo que ela transborde pelos meus lábios. As pessoas da vila jamais entenderiam meus anseios. Nem eu entendo.

Ru Shi ainda está segurando a carta na minha frente, então eu a pego e passo os olhos pela letra de meu tio, absorvendo vagamente suas palavras.

— O Dragão atacou de novo. — Comenta Ru Shi que acompanha minha leitura. — É por isso que eles estão deixando o forte. Claro que papai vai aproveitar para nos apresentar para seus homens, mas o motivo real é o Dragão.

O Dragão, obviamente, não é uma fera mitológica, mas um homem. Um dos do Povo do Outro Lado, sem nenhuma característica mágica. A única capacidade extraordinária do Dragão é a de invadir a Muralha quando bem entende. Ele passa de um lado para o outro como se a Muralha não fosse guardada por soldados noite e dia, como se as forças do império não estivessem todas voltadas para essa fortificação. Ele passa como um fantasma. Em um piscar de olhos está exilado do outro lado, no outro está disfarçado entre nós súditos, roubando de nossos armazéns, saqueando vilarejos, levando tudo o que consegue carregar e então desaparecendo.

Ninguém consegue pegar o Dragão.

Eu quase o invejo. Quase.

Ele é livre de uma forma que eu jamais vou ser.

Devolvo a carta para Ru Shi e me espreguiço. Ficar cuidando do fogão e preparando xícaras de chá em pé o dia todo me deixa tão cansada quanto apostar uma corrida entre povoados, com a diferença de que esta não me dá a sensação de vitória ao término, só a sensação de que temos cada vez menos clientes e ainda menos dinheiro.

Eu olho para as mesas silenciosas e vazias, para o céu que escurece e para as cigarras que cantam ao longe. Penso em meu pai e no que ele desejaria para mim.

— Nós não vamos conseguir sobreviver assim. — Anuncio e minha frase parece agourenta ao anoitecer.

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