Capítulo 3 O encontro

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Trabalhar como guia era um ótimo passatempo, pois fazia Dânia esquecer sua realidade por algumas horas. Era bom estar com os diferentes públicos que visitavam o local: excursões de estudantes que vinham de várias escolas para conhecerem um pouco da história da região; caravanas da terceira idade, (esses eram os mais animados e seus preferidos); grupo de amigos que estavam se aventurando pelo interior do estado; mochileiros solitários recuperando suas energias para continuar a jornada; casais enamorados à procura de um novo cenário para atualizar suas fotos nas redes sociais.

Durante os intervalos, ela aproveitava para caminhar pelo parque. No passado, São João Carlos fora uma cidade que cresceu rodeada por fazendas cafeeiras. Quando o café entrou em decadência, a cidade minguou junto. O que restou desse período, acabou sendo, literalmente, alagado devido a construção de uma barragem próxima dali. Dânia se sentia ligada a história daquele lugar, tanto pelo passado de escravidão na era do café, quanto pelas pessoas, que sem muitas escolhas, foram forçadas a abandonar suas casas a pedido do governo. Sua alma encontrava consolo em saber que ali pisaram pés que sabiam como era ser tratada como uma propriedade.

Naquela tarde, sua mente vagueava tentando esquecer a discussão com seu pai. Carregando sua bolsa, uma garrafinha de água e um livro, sentou encostada em uma das poucas paredes das ruínas. Assustou-se quando ouviu alguns passos que pararam ao encontrá-la. Alto, moreno claro, magro. Os cabelos beiravam o ombro. A barba bem aparada passava uns três centímetros abaixo do queixo lhe dando um perfil de ator turco. Com uma mochila nas costas ele levantou os óculos escuros o que a deixou mais constrangida diante dos olhos negros desenhados em diagonal que a encaravam.

Dânia começou a arrumar suas coisas e, quando percebeu que ele se aproximava levantou-se rapidamente. Ele parou. Ela deu um passo atrás. Ele, um para sua direção. Ela ergueu a mão, como se aquilo fosse lhe dar poderes para fazer aquele homem de quase 1,90 recuar. Impossível. Com mais dois passos ele deixou que a mão dela encontrasse seu peito. Era forte:

- Para trás.

Dânia falou quando conseguiu retomar a consciência.

- Olá, minha menina. Estava ansioso em te conhecer.

Ele disse recuando diante do pedido dela.

Que atrevimento! Como aquele desconhecido ousava utilizar o pronome possessivo para se referir a ela? E que voz firme. Os sentimentos embaralhados não se encaixavam.

- Como assim me conhecer? Quem é você?

Perguntou enquanto tentava unir alguma peça do quebra-cabeça espalhado sobre sua mente.

- Eu sou o Arthur, muito prazer.

Maldição. Ela não queria vê-lo antes do casamento. Sua melhor amiga insistia para bisbilhotar o perfil de seu futuro esposo nas redes sociais. Nunca teve interesse e a fez prometer que jamais lhe falaria nada. Também conseguiu impor semelhante condição aos seus pais. Afinal, que diferença faria vê-lo?

- Eu sei que você pediu para não nos conhecermos. E realmente não era a minha intenção, mas... eu não resisti. Busquei seu perfil na rede social e me encantei. Seus cabelos cacheados combinando com seus olhos castanhos. Morena com um ar despretensioso em cada foto. Você demonstrava ser tão forte, tão sincera, que eu precisava te encontrar pessoalmente antes do casamento.

Dânia saiu da frente dele revoltada. Perdida.

- Se não está aqui para desfazer esse contrato absurdo, pode voltar pelo mesmo caminho por onde veio. Eu não sou um brinquedo para você ficar testando. E outra coisa, não serei sua. Você pode ter minha assinatura em um papel, mas nunca terá meu coração. Nunca!

Arthur lançou-lhe um olhar penetrante indicando não se intimidar.

- Não vou embora. Eu devo algumas explicações.

- Muitas, a propósito. E você poderia começar explicando como é que um homem jovem, rico e lindo se submete a um casamento arranjado?

As palavras saltaram tão rápido da sua boca que ela não conseguiu conter o adjetivo "lindo" no meio de sua frase, o que foi o suficiente para ele levantar uma de suas sobrancelhas.

- É o que pretendo. Sim, você pontuou muito bem as características minhas que eu deveria ter desfrutado com sabedoria, mas não o fiz. A combinação desses três fatores pode levar a um caminho perigoso que eu acabei seguindo. Não me orgulho disso. Pelo contrário, carrego a marca da minha inconsequência.

Dânia começou a prestar atenção, mas precisou se esforçar para não deixar transparecer.

- Eu não estou nem aí para o que você fez o deixou de fazer.

Ele tocou seus lábios levemente fazendo-a calar imediatamente. Que força magnética era aquela que a fazia se desconcertar diante dele!

- Deixe-me continuar, não é fácil o que tenho para falar.

Prosseguiu:

- Nessa época eu frequentava muitas festas achando-me invencível. Bebidas, drogas e sexo eram comuns nesses lugares. Naturalmente me envolvi com várias mulheres.

Dânia deu de ombros fingindo não se importar.

- Apenas uma delas foi o suficiente para mudar toda a minha vida.

- Ah, você tem um filho bastardo. Muito típico.

Em uma ocasião normal, Dânia jamais usaria esse termo para se referir a ninguém, mas sua intenção era realmente ofendê-lo. Logo, não se preocupou em medir suas palavras.

- Antes fosse.

Dânia sentiu um frio na barriga. Percebeu que a coisa podia ser pior do que supunha quando Arthur abaixou o olhar e com a voz trêmula falou:

- Sou soropositivo.

Dânia empenhou-se para agir de forma imparcial. Não conseguiu.

- Meu Deus! Como você pode ser tão estúpido? Bastava usar preservativos. Riquinho idiota! Você acabou com a sua vida.

Ele não esboçou reação em contradizê-la.

- Mas você vai morrer? Como se vive com Aids? Desculpa, eu... eu não sei o que dizer na verdade.

- Não tem problema. Essa doença ainda é muito marginalizada. Poucas informações e muito preconceito. Foi um choque para a minha família quando eu contei. Meu pai andava de um lado para o outro e me xingava. Levou um bom tempo para aceitar. Foi nesse período que ele conheceu o seu pai e como um bom negociante, viu nessa situação uma oportunidade de casar o filho doente e evitar especulações que pudessem manchar a imagem da família.

E concluiu:

- Você pode ficar tranquila, eu não vou te contaminar. Não sou um monstro. Eu vim aqui para esclarecer as coisas. Dizer que eu não vou fazer nada que não seja da sua vontade. Prometo não te incomodar mais. Nos veremos no dia do casamento.

Virou as costas e partiu.

Dânia ficou um tempo atônita. Sozinha. Tentando processar tanto o noivo que acabara de conhecer quanto às informações que acabava de receber antes de voltar para casa.

RuínasWhere stories live. Discover now