O NASCIMENTO DE UM DEMÔNIO: O PRINCÍPIO DO FIM

“Choramos ao nascer porque chegamos a este imenso cenário de dementes.”

(William Shakespeare)

Quando se trata de contar uma história, o melhor a se fazer, ou pelo menos o mais sensato, é começar do início. Sendo assim, vamos a ele.

Em um dia qualquer, em meio ao tédio das profundezas, o Diabo em pessoa sentiu-se inspirado a fazer o mal. Apanhou, então, a mais bruta rocha da mais profunda masmorra do inferno e forjou, com suas próprias garras, uma criança recheada de maldade e obcecada pela violência, atirando-a na terra para disseminar a dor entre os fracos, bondosos e patéticos seres humanos.

Se você pensa que é assim o nascimento de um psicopata como eu, sinto informar que está redondamente enganado, e por mais que seja interessante imaginar-me surgindo para a existência de forma tão épica e assustadora, não estou aqui para enganar, ainda que eu o faça maravilhosamente bem. Meu intuito, nesse momento, é o de contar uma história, uma vida. A minha história, a minha vida.

Eu cheguei a este mundo sujo e vil no dia 06 de junho de 1980. Aquele dia também foi marcado por acontecimentos menos importantes, como a conquista, pela primeira vez, do título de campeão brasileiro de futebol pelo Flamengo. No dia seguinte morreria o escritor Henry Miller, mas eu juro que não tive nada a ver com isso. O ano em que eu fui entregue aos braços de mamãe não foi um ano qualquer. Em 1980 foi criado certo partido político liderado por barbudos de língua presa e vocabulário parco. Foi o ano das olimpíadas de Moscou, boicotada pelos Estados Unidos da América por motivos políticos — ou seja, torpes. Foi o ano de lançamento de um dos meus filmes favoritos, “O Iluminado”. O Zeppelin de Chumbo parou de voar, Back in Black do AC/DC foi lançado, a República de Vanuatu foi declarada independente e o Zimbábue foi admitido na ONU. Não que isso tenha alguma importância nesse momento.

Contrariando as expectativas dos mais empolgados, meu nascimento foi como o de qualquer criança “saudável”. Após cerca de duas horas de trabalho de parto, enfim deixei o ventre de minha progenitora e testemunhei pela primeira vez a luz. Apesar de possuir uma memória invejável como poucos, não posso dizer que me lembro do ocorrido. Mas provavelmente foi algo do tipo:

A primeira coisa que meus olhos registraram foi uma luz ofuscante, um calor luminoso que parecia queimar minhas pupilas dilatadas. Após meus olhos se acostumarem com o brilho das lâmpadas apontadas para minha face, divisei estranhas criaturas vestidas de branco, usavam máscaras que tapavam seus rostos abaixo dos olhos, e tinham a cabeça envolta em tecido. Um deles, provavelmente o líder, me carregou, segurando meu corpo pelo tronco, abaixo dos braços, olhou-me com aquele rosto coberto e seus olhos pareceram sorrir. Eram amarelados, cobertos por uma pele branca e enrugada. Não eram bonitos, mas nem por isso eu chorei.

Não satisfeito com meu silêncio, o sujeito me virou de costas e espalmou minhas nádegas. Achei aquilo uma falta de respeito, mas logo percebi o que ele queria e dissimulei um choro estridente que, inexplicavelmente, fez com que todos ao meu redor sorrissem. “Que bando de idiotas”, pensei. Como alguém pode sorrir ao ouvir um ruído tão irritante quanto o choro de um bebê? Mais tarde saberia que aquilo era realmente verdade: eram mesmo um bando de idiotas.

Depois de fazer meu “show” de choro, limparam-me porcamente com um pedaço de tecido e levaram-me àquela a qual, futuramente, eu chamaria de mãe. Era bem mais bonita que aquele que me espalmou as nádegas. Contudo, eu preferia quando estava dentro dela. “Pelo amor de Deus”, eu pensei, “estamos em um hospital, será que dá para fazerem um pouco de silêncio?”. Mas não houve silêncio, não até – pela graça de Deus – levarem-me ao berçário.

Depois do primeiro trauma, comum a todas as pessoas, fui para casa onde seria criado com todo o amor e carinho que qualquer criança precisa. Morávamos na aconchegante cidade de Felicidade, no interior de Minas Gerais; um pequeno fim de mundo com menos de 10.000 habitantes.

Papai era médico, o único da cidade, e sempre era tirado da cama de madrugada para atender algum cidadão. Por incontáveis vezes, teve seu sono interrompido para acudir algum caipira idiota com gazes ou prisão de ventre. No entanto, o velho Doutor Humberto adorava seu ofício, e nunca se irritou por ter que atender a um paciente, mesmo que nos momentos mais inoportunos.

Mamãe era professora, ensinava nos primeiros ciclos do ensino fundamental, mas era graduada em letras, e podia lecionar para classes mais avançadas, contudo, preferia os pequenos. Seus alunos a chamavam, carinhosamente, de Tia Alzira; coisa que ela adorava. Assim como papai, venerava seu trabalho e tinha sempre um semblante bondoso e um conselho acolhedor a qualquer um que a procurasse.

Meus primeiros anos foram tranquilos, eu era uma criança saudável e bonita, com coradas e rechonchudas bochechas que as amigas de minha mãe insistiam em apertar. Quando aquelas mulheres insuportáveis faziam isso, eu sentia uma estranha sensação a qual não conseguia entender. Hoje eu sei bem o que era: eu queria matá-las.

Desde cedo, mamãe me fez interagir com outras crianças, e isso nunca foi um problema para mim. Eu tinha algo de especial que fazia com que todos gostassem de mim, e isso me agradava. Evidentemente, as outras crianças me entediavam, pois pareciam retardadas e eram tão espertas quanto o nosso cachorro, Linguiça, um basset gordo e preguiçoso que meus pais achavam que eu adorava. Quando ele morreu, fiquei muito aliviado, mas mamãe nunca soube disso. E antes que pergunte, a resposta é não, não fui eu que o matei. Linguiça morreu de velhice aos 12 anos de idade, escornado em seu travesseiro com a barriga estufada de comida.

Na medida em que eu crescia, papai e mamãe se orgulhavam cada vez mais do quanto seu filhinho era esperto e inteligente. Adoravam ostentar para os amigos como, aos quatro anos, eu podia montar um quebra cabeça de 500 peças com espantosa destreza. Alzira sempre dizia a todos que seu filho era um gênio, apesar das intervenções do Doutor Humberto que retrucava afirmando que era cedo para saber, mas que de fato eu era uma criança muito inteligente.

Enquanto o único médico da cidade era de pouco carinho, e dificilmente me abraçava, mamãe fazia questão de me agarrar e beijar como uma adolescente desvairada a violar uma fotografia de seu ídolo de pouco talento. O contato corporal nunca me agradou, mas eu percebia que aquilo era importante para ela, e, talentosamente, fingia adorar suas irritantes carícias. Não é possível manipular alguém sem agradá-lo um pouquinho.

Além de exaltar o filho por sua inteligência fora do comum, Alzira adorava fazer inveja nas amigas, dizendo que, além de ser um gênio, seu filhinho era tão bonzinho que, desde que nascera, nunca chorava e quase não dera trabalho quando bebê. Era o sonho de qualquer mãe, um neném lindo, gordinho e de bochechas cor de rosa, que além de ser inteligente como o Bill Gates, não fazia barulho, não chorava e nem acordava os pais à noite. Eu era mesmo um tesouro de criança, todas as qualidades de qualquer criança normal, mas sem os defeitos mais incômodos. Uma coisa ela ainda não sabia: eu não era qualquer criança.

O Quarto Cavaleiro: a autobiografia de um psicopata inveterado [AMOSTRA]Where stories live. Discover now