Três

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O JARDIM DE INFÂNCIA: “DEIXA EU TE MACHUCAR? VAI SER LEGAL, VOCÊ VAI VER”

“Brincadeira de criança
Como é bom, como é bom
Guardo ainda na lembrança
Como é bom, como é bom”
[1]

01 de fevereiro de 1985.

No ano em que morria Orson Welles e nascia a mãe do Bruninho, e que um presidente eleito morreria antes de assumir, em favor de certo político maranhense, me iniciei no ambiente educacional, o habitat natural de mamãe, e um lugar de muitas descobertas.

Meu primeiro dia no jardim de infância foi marcado por lágrimas e clima de ruptura familiar. Talvez você ache isso um tanto quanto exagerado, e de fato está certo. Naquele dia, em frente à porta do maternal, eu tentei me controlar, segurar meu ímpeto que tentava saltar da boca por entre os dentes cerrados, mas não fui capaz de conter e o que eu tentava segurar se esvaiu, empurrando meus lábios para fora e atingindo Alzira bem no peito.

— Pare com essa choradeira, mamãe! – disse. – No fim da tarde estaremos em casa, todos juntos.

Até pensei que ela fosse se zangar, mas, no fim das contas, minha atitude madura e equilibrada a fez inflar-se de orgulho, tal qual um balão de São João. Assim, despedimo-nos e ela se foi, cortando o céu azul e soltando fumaça pelo fundilho flamejante.

Quando entrei na sala, vi muitos conhecidos; as insuportáveis crianças de baixo intelecto que mamãe insistia em me empurrar como amigos. Segui por entre as mesas, sorrindo simpaticamente para todos, até encontrar um bom lugar ao fundo da sala. Sentei-me a uma mesa vazia. Era uma redonda e feita de madeira, forrada com um tecido azul claro e cercada por quatro cadeiras, todas vazias. Mas aquele confortável isolamento foi temporário, e logo chegaram os retardatários, ocupando os lugares sobressalentes.

Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e progressivo, disse Kafka, em certa ocasião. Contudo, o jardim de infância foi uma boa escola, ao menos para mim.

Logo que o sinal tocou, a professora distribuiu folhas brancas e giz de cera para todos, e os pequenos começaram a rabiscar formas distorcidas e incongruentes. Pareciam macacos que não sabiam descascar bananas. A principio, fiquei quieto, apenas observando meus colegas primatas se debruçarem sobre suas parcas habilidades artísticas. Mas logo a irritantemente atenciosa professora se aproximou de mim.

— Por que não está desenhando, Leonel?

É bem mais divertido observar os pequenos chimpanzés profanarem toda e qualquer forma de arte, pensei em responder, mas concluí que a jovem professora do maternal não estava preparada para aquilo, não no primeiro dia de aula.

— Não sou muito bom em desenho – respondi. Com isso certamente ela saberia lidar.

— Não existe desenho ruim – começou ela, e eu me perguntava quanto tempo aquilo iria durar. – Tudo que vem daqui – continuou, tocando o lado esquerdo do meu peito com seus dedos finos e gélidos – é lindo, cada um com sua beleza.

Tá bom, Barbie!, falei para mim mesmo, e no intuito de me livrar daquela mulher, que parecia ter saído de um livro de colorir para crianças de 0 a 6 meses; comecei a rabiscar, imitando os macaquinhos que se divertiam enquanto justificavam o desmatamento com sua arte pífia. E assim foi meu primeiro dia no jardim de infância; basicamente, fiquei desenhando bonecos magricelos com membros de palitos e observando. O desenho não valeu de nada, mas a observação me levaria longe.

O sinal tocou e assim que me levantei dei de cara com mamãe. Ela estava ansiosa, parecia que não me via há no mínimo 1000 anos. Alzira me abraçou tão forte que me faltou o ar; não quebrei nenhum osso, mas alguns estalaram. Pelo menos não precisei pedir, e antes que meus lábios ficassem roxos, ela afrouxou o abraço e me encheu de perguntas preocupadas.

O Quarto Cavaleiro: a autobiografia de um psicopata inveterado [AMOSTRA]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora