Povoado Ribeirinha

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Freya iria para a segunda parte da sua investigação, saber os segredos dessas águas. Para isso, chamou a única pessoa que apoiava ela, o veterano Isaque, talvez o funcionário mais antigo na delegacia - com exceção do Martins - ele parecia uma pessoa amigável e que também seria útil com o conhecimento adquirido nesses anos.

Veloso optou por ir ao povoado na parte da tarde, havia chegado em casa quase com o sol raiando, não existia perigo em andar sozinha por aquelas ruas no breu tanto quanto em grandes civilizações urbanas. Além das pessoas, em sua grande maioria, saber quem ela era, cidade pequena em que todos se conhecem, noticias costumam correr rápido, por mais que a nossa detetive seja reservada e mal tenha interagido com os outros residentes, seria difícil passar despercebida carregando o título de ser "a primeira mulher no esquadrão principal de investigação do município de Santarém", ainda mais sob a gestão de Martins; mesmo nunca tendo participado de casos tão relevantes, sempre acabava sendo descartada quando algum crime intrigante acontecia, ainda que fosse uma situação anormal para o ritmo tranquilo.

Passava do meio-dia quando chegaram ao povoado, eles se encontraram em frente da delegacia - por sorte, ambos estavam de folga - e seguiram juntos até o local. A primeira vista se resumia em palafitas, seguidas de casas feitas de madeira afastadas da margem do rio e uma vegetação densa ao fundo; poucas vezes havia enchentes, nível estava baixo no momento, não havendo necessidade de transitarem entre as casas por pontes suspensas feitas de tábuas que formavam caminhos entre as palafitas.

Logo avistaram um senhor, ele estava sentado em um banco em frente a sua casa, distraído olhando a vizinhança, com uma expressão neutra, que se transformou em alegre quando avistou os policiais.

- Isaque! Por onde andou? - Disse se levantando de onde estava para cumprimentar o homem. - O telhado da minha casa está apresentando goteiras novamente. - Completou.

- Seu João! Como vai o senhor? - Respondeu com a mesma euforia em que o mais velho se expressou. - Eu andei ocupado na delegacia ultimamente, mas ficarei honrado de reparar o seu telhado, só deixe eu apresentar uma amiga. - Disse, ignorando a mão que estava estendida em sua direção, abraçando o velho. - Essa é a tão falada Freya Veloso - Anunciou quando se soltou, mantendo um braço nos ombros do ribeirinha e o outro esticado em direção da mais nova. - Freya, esse é o João da Silva.

- É um prazer conhecer o senhor. - Falou meio sem jeito, cumprimentando o homem com um aperto de mão.

- Minha fia, senhor só o do céu, eu sei que estou quase lá, mas ainda não tô no céu. - Respondeu com um riso no rosto, recebendo um olhar de censura de Isaque.

- Você sabe que não gosto quando fala assim sobre si mesmo, ainda tá jovem e eu tenho muitas partidas de dominó para perder. - Pronunciou o veterano, ainda com o braço ao redor dos ombros do mais velho, substituindo a expressão de censura por uma divertida e continuou. - Veloso, ele é sem dúvidas, o mais sábio deste povoado e sei que ele deve saber todos os segredos desse lugar. - O homem elogiado balançou a cabeça em negação em um ato modesto. - Dê uma volta por ai, converse com algumas pessoas, quando eu acabar de consertar o telhado, me encontro com você e deixo vocês conversarem.

Freya se despediu de Seu João e começou a tomar distancia, ainda conseguiu ouvir o mais velho falando "ah, Isaque, queria eu ter a minha disposição da juventude, já te contei da vez que quase caí do telhado tentando pegar um papagaio? Caí e minha mãe ainda me deu uma 'conchada' daquelas de pegar feijão, sabe? Naquela época era uma casca de coco seco amarrada em um graveto", negou rindo sozinha enquanto andava, ela tinha gostado do 'sábio', parecia o típico senhor que ficava olhando a vida alheia e sempre que podia contava as aventuras da infância, que parecia ter sido bastante animada - e dolorosas.

A cacheada andou pela margem do rio, conversou com várias pessoas, mas nenhuma delas tinha algo relevante para o caso, elas não sabiam o que poderia ter acontecido em 1999 e nem viram algo de estranho no rio ou nas redondezas recentemente.

Cansada de andar pelo vilarejo, sentou-se na beira do rio com as pernas dobradas na altura do peito, com os braços as abraçando... Ficou naquela posição por algum tempo, mirando o nada e pensando sobre o caso, conversou com todas as pessoas que tinham o potencial de terem testemunhado algo ou contar algum detalhe relevante, mas nenhuma nova informação surgiu; começou a se sentir insegura com a própria intuição, entretanto sabia que não era coisa de sua cabeça, não poderia ser coincidência, algo atraia ela para aquele caso, por mais que todos naquela delegacia fossem tão "cabeças duras", eram competentes, assim como o Isaque, ele também poderia ter notado um padrão, mas não o fez, ninguém observou as mortes como ela, nesse mistério tinha algo, algo predestinado a ela.

Em meio a devaneios, a detetive direcionou sua atenção a outra pessoa que estava mergulhando no rio, fazendo Freya não se recordar nem o que estava pensando um segundo atrás; toda aquela cena parecia estar em slow motion. - mesmo sabendo que isso era algo irracional e ficcional, ela não tinha mais racionalidade naquele momento e nem senso crítico para distinguir a ficção da realidade, estava cruzando a fronteira entre a razão e o fantasioso. - Aquela garota emergindo das águas, como se as moléculas se soltassem para que ela surgisse, como se a tensão superficial da água fosse inexistente e a força intermolecular tivesse sido refutada naquele momento, diante de seus olhos, desafiando a própria física e todo o conhecimento que a humanidade desenvolveu nos campos da ciência e filosofia, pois nem os questionamentos levantados ali teria alguma resposta racional; sem nenhum resquício de gotas em sua pele, somente o cabelo perfeitamente moldado denunciava que estivera submersa no rio; sua tonalidade em harmonia com os raios solares refletido na correnteza e seu corpo acompanhando o movimento, o por-do-sol em plano de fundo, pois nem a maior estrela do sistema solar poderia competir com ela, ele poderia reger com maestria cada planeta, mas ela representava um buraco negro absorvendo a luz para inflar seu ego de nada ter mais destaque que ela. Freya sentia vergonha que sua mera existência não alcançaria o brilho e a magia daquela cena, daquela mulher com fortes traços indígenas saindo do rio com um biquíni de um tecido que Freya não reconheceu, porém que pouco importava a peça de roupa que a garota usava para Veloso, ela não se referia ao físico da mulher, como se o corpo dela fosse um objeto, não; a deslumbrada se referia ao que aquela garota transmitia, algo muito além de aparência, que de forma alguma faz referência a algo lógico e banal quanto estrutura física.

- Parece que você conheceu a Caupé. - A policial se assustou quando ouviu a voz de Isaque atrás de si, esse que estava se sentando ao seu lado.

- Caupé? - Questionou Freya, tentando voltar ao mundo real, após ir tão longe em segundos que equivaleram uma vida inteira. - Acho que já tinha lido algo sobre esse nome... - Falava pegando seu óculos para limpar na barra da blusa, ele havia embaçado, um feito incomum, pois tinha situações específicas para tal fenômeno. - Deve ter sido em algum livro sobre deuses da mitologia ou folclore. - Comentou simples.

- Caupé é a deusa da beleza na mitologia Tupi-Guarani, alguns considera ela a Afrodite indígena. A Caupé que você estava quase se afogando no rio para olhá-la - Destacou de forma divertida, empurrando o ombro de leve contra o braço de Freya, no mesmo instante em que ela corava. - Tem esse poder de hipnotizar aqueles que a contemplam, ela tem um espírito muito puro, eu, por exemplo, sempre sinto paz olhando para ela, uma beleza de alma... Por isso o apelido. - Completou.

Freya balançava a cabeça em concordância a cada palavra, até algo chamar sua atenção e ela questionar:

- Espera! Apelido? - Perguntou em um tom mais alto devido a surpresa.

- Sim, ninguém sabe o nome dela. - Respondeu simples e com um riso discreto no rosto, se levantando e limpando sua roupa. - Mas venha, vamos falar com Seu João. - Acrescentou oferecendo a mão como apoio para a novata, que não tardou em segurar, se levantando e seguindo o homem.

A detetive ficava ainda mais animada a cada descoberta - ou mistério - que iria surgindo, essa cidade tinha mais coisas a oferecer do que ela imaginava, não iria apenas quebrar um paradigma que foi o porquê escolher a cidadezinha de Santarém, localizada no interior do Pará, muito distante de onde nasceu, que era ser a primeira mulher a ter destaque naquele esquadrão e até hoje não sabe ao certo como teve conhecimento da equipe comandada por Martins, o que reforçava a ideia de que algo a atraia a este caso.

Nas Margens da Justiça (Em Revisão)Donde viven las historias. Descúbrelo ahora