Conto 1 - Olá, Eu Sou A Morte.

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Olá, permitam-me que me apresente: sou a Morte e vagueio pela Terra, este Éden desolado por vocês humanos, patéticos seres cheios de egos que idolatram o dinheiro e não se preocupam com o outro. Apesar de o meu propósito ser vos retirar desta existência, deixando-vos requiescant in pace, que, traduzido do latim, significa descansar em paz.

Eu nunca suportei os humanos. Não me levem a mal, mas como poderei eu amar seres tão desprezíveis? São seres fracos e inconsequentes. É talvez por isso que alguns humanos me chamaram a atenção. A vossa inconsequência às vezes até me fizera reparar em vós. Apesar de vos detestar, confesso que às vezes eu sinto uma pontada de pena. Pena essa que desaparece tão rapidamente quanto aparecera.

Ao contrário de outros anjos, e também demônios, eu possuo o livre arbítrio e, consequentemente, posso fazer o que bem entender desde que respeite o frágil equilíbrio. Ou seja, tanto tiro uma vida quanto posso dar uma segunda oportunidade se achar que vale a pena. Isso permitiu-me ter várias experiências com humanos. Ver a sua escuridão, mas também apesar de raro, a sua luz.

A história que vos contarei é a minha mais recente experiência. Nela, ir-me-ão conhecer melhor.

Na data do vosso calendário definida como trinta e um de outubro de 2020, no dia conhecido por muitos de vós como Halloween ou Dia das Bruxas. Onde muitas pessoas estavam disfarçadas com diferentes tipos de máscaras e vestes estranhas. Alguns tinham as suas caras pintadas com uma maestria invejável. E até havia crianças que batiam nas portas das casas, estas que também tinham enfeites bizarros, gritando "doces ou travessuras". Passei por eles, desviando-me de um grupo de adolescentes, e entrei em um parque de diversões chamado de Oblitus Park. A definição em latim de parque dos esquecidos. Lembro-me de pensar para comigo que aquele nome era estranho para um lugar de diversão.

Naquele dia, apesar do meu ódio, esta cena deixou-me com uma sensação diferente. Eu... eu tive pena de uma pobre alma.

Na minha rotina de levar as almas para o seu lugar, deparei-me com uma imagem inquietante.

Uma mãe a dar à luz.

Por muito que adorasse a morte, adorava igualmente o nascer de uma nova vida. Não pude resistir em me aproximar. Ela apenas sentiu uma brisa, mas eu estava ali a observar cada instante, até o choro da menina.

Quando a mãe segurou a menina, eu esbocei um pequeno sorriso. Mas rapidamente se transformou em cólera quando a mãe lançou a recém-nascida contra a parede, atravessando a minha presença espectral. A mãe ainda suada de todo o esforço parecia inalterada. Não controlei a minha fúria e como tenho livre arbítrio, eu apareci perante essa humana. A expressão dela mudou ao ver a morte, pois sentiu o arrependimento do que acabara de fazer. Misericórdia era a última coisa que passou pela minha mente, e com um sutil movimento arranquei a vida do corpo que caiu inanimado diante de mim. Os seus olhos ainda esbugalhados e a sua boca aberta por algo que ela tentara dizer, mas não teve tempo de o pronunciar.

Eu sentia a doce fragrância da morte, ao virar para o cadáver da recém-nascida. Sentia-me profundamente triste por tamanho desperdício de um ato imperdoável. E, sem que eu pudesse controlar, uma lágrima fria e solitária desceu pela minha face. Fazendo-me lembrar de que aquele sentimento que eu estava a presenciar era o mesmo que os humanos sentiam quando eu levava a alma dos seus entes queridos. Então, deixei que aquela lágrima lentamente fizesse o seu caminho pela minha cara abaixo e pingasse no rosto da recém-nascida. Cada lágrima que caía na pele da menina, penetrava nela com uma luz branca a iluminar-lhe as feições delicadas por poucos segundos.

Quando as lágrimas secaram da órbita dos meus olhos, a luz branca cessou de igual forma e o fôlego da vida preencheu os pulmões da pequena diante dos meus pés. O choro da cria humana se fez ouvir alto pelo parque de diversões, naquele lugar cheio de gente que se divertia. E rapidamente apareceram pessoas curiosas à procura daquele som que o vento levara até eles. Ao perceber que ela estava finalmente segura, com um último olhar na sua direção, eu saí do parque de diversões e continuei o que eu estivera a fazer antes: buscar as almas.

Um sorriso rasgara dos meus lábios pálidos. Pela primeira vez pude sentir a empatia por uma humana que, apesar de ser pequena, já me tinha feito sentir-me vivo.

Eu sempre servia ao equilíbrio, e nada mais certo seria dar à filha a vida que sua mãe tinha retirado. Uma doce poesia; mórbida, mas poética, sem dúvida.

Fim

801 palavras

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