O excesso de felicidade que aterra e confunde também.— Pasmosa contradição da nossa natureza.—- De como os olhos verdes de Joaninha se enturvaram e perderam todo o brilho. — Que o coração da mulher que ama, sempre adivinha certo.
Carlos tinha a mão de Joaninha apertada na sua: e os olhos úmidos de lágrimas cravados nos olhos dela, de cujo verde transparente e diáfano saíam raios de inefável ternura.
Dizer tudo o que ele sentia é impossível tão encontrados lhe andavam os pensamentos, em tão confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem um nem outro; mas falaram assim longos discursos.
Enfim, Joaninha voltou á sua primeira insistência e disse para o
primo:
— Olha, Carlos, amanha é sexta-feira. Já te disse, vem Frei Dinis:
quando haja a menor dificuldade do comandante, a ele não lhe recusa nada...
— Por quanto há no céu, Joaninha, pela tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra ao frade da minha estada aqui! A ele, oh! a ele jurei eu não tornar a ver. E se minha avó...
— Basta: não lhe direi nada. Mas à nossa avó quando lho hei de dizer, e quando hás de tu ir vê-la?
— Por ora não: preciso licença de Lisboa, ou do quartel-general quando menos, para fazer uma coisa que todas as leis da guerra proíbem, que nas atuais circunstâncias e em semelhante guerra ainda é mais defesa. E sem isso — tu bem sabes que as minhas resoluções não se mudam — sem isso não o faço. Em todo o caso, que Frei Dinis nem sonhe!...
— E quanto tempo, quantos dias se hão de passar?
— Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.
— E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer de saudades...
— Consola-a tu, Joaninha: diz-lhe que tiveste novas minhas, que estou bom, que me não falta nada, que tenho esperanças de vos ver muito cedo.
— E eu... eu posso, eu hei de ver-te todos os dias: não, Carlos?
— Amanhã é sexta-feira...
— Amanhã é o dia negro... nem eu queria: amanhã não pode ser, bem sei. Mas, tirado amanhã, meu Carlos, oh! todos os dias!
— Sim, querido anjo, sim.
— Prometes?
— Juro-to.
— Suceda o que suceder?
— Suceda o que... Só há uma cousa que... Mas essa não... não é possível.
— O que é, Carlos? Que pode haver, que pode suceder que te impeça de...?
Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se pálido... quis dizer-lhe a verdade e não ousou...
Por quê... E que verdade era essa? Não a direi eu, já que ele a não disse: fiel e discreto historiador, imitarei a discrição do meu herói.
Pois era discrição a dele?
Não... em verdade, era outra coisa.
Era um pensamento reservado?
Não.
Era tenção má, engano premeditado, era?...
Não, também não,
O que era pois?
Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade, a mentira congenial e obrigada, a necessária falsidade do homem social.
Carlos mentiu e disse:
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Viagens na minha terra
RomanceViagens na minha terra - Publicado em 1846, o livro de Almeida Garret é uma mistura de realidade e ficção. No livro, o autor narra uma viagem verdadeira entre Lisboa e Santarém.