Capítulo 23

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Continua a acudir muita coisa vaga e encontrada ao pensamento de Carlos —. — Dança de fadas e duendes. — Frei Dinis o fado-mau da família. — Veremos, é a grande resolução nas grandes dificuldades. — Carlos poeta romântico. —Olhos verdes. — Desafio a todos os poetas moyen-àge do nosso tempo.

Não há nada como tomar uma resolução.

Mas há de tomar-se e executar-se; aliás, se o caso é difícil e complicado, pouco a pouco as dúvidas surgidas começam a enlear-se outra vez, a enredar-se... a surgir outras novas, a apresentarem-se as faces ainda não vistas da questão... enfim, se o intervalo é largo, quando a resolução tomada chega a executar-se, a maior parte das vezes já não é por força de razão e de convicção que se faz, mas por capricho, ponto de honra, teima.

Carlos tinha resolvido ir ao prazo dado, no fim do dia. Mas o dia era longo, custou-lhe a passar. Todas as ponderações da noite lhe ocorreram ao pensamento, todas as imagens que lhe tinham flutuado no espírito se avivaram, se animaram, e lhe começaram a dançar na alma aquela dança de fadas e duendes que faz a delícia e o tormento destes sonhadores acordados que andam pelo mundo e a quem a douta faculdade chama nervosos; em estilo de romance sensíveis, na frase popular malucos.

Carlos era tudo isso; para que o hei de eu negar?

Entre aquelas imagens que assim lhe bailavam no pensamento, vinha uma agora... talvez a que ele via mais distinta entre todas, a da avó que tanto amara, em cujo maternal coração ele bem sabia que tinha a primeira, a maior parte... da avó que tão carinhosa mãe lhe tinha sido! Pobre velhinha, hoje decrépita e cega... Cega, coitada! Como e porque cegaria ela?

Havia aí mistério, que Joaninha indicara, mas que não explicou.

Atrás da paciência e humilhada figura daquela mulher de dores e desgraças, se erguia um vulto austero e duro, um homem armado da cabeça aos pés de ascética insensibilidade, um homem que parecia o fado-mau daquela velha, de toda a sua família... o cúmplice e o verdugo de um grande crime... um ser de mistério e de terror.

Era Frei Dinis aquele homem; homem que ele desejava, que ele cuidava detestar, mas por quem, no fundo da alma, lhe clamava urna voz mística e íntima, uma voz que lhe dizia: “Assim será tudo, mas tu não podes aborrecer esse homem”.

Sim, mas sobre Frei Dinis pesava uma acusação tremenda, que o fizera, a ele Carlos, abandonar a casa de seus pais! Acusação horrível que também compreendia a pobre velha, aquela avó que o adorava, e que ele, ainda criminosa como a supunha, não podia deixar de amar...

E destes medonhos segredos sabia Joaninha alguma coisa?

Esperava em Deus que não.

Desconfiaria alguma coisa?... O quê?

E iria ele poluir o pensamento, desflorar os ouvidos, corromper os lábios da inocente criança com o esclarecimento de tais horrores?

Havia de lhe falar na infâmia dos seus? Havia de lhe explicar o motivo por que fugira da casa paterna?

Havia de?...

Não.— Se Joaninha tivesse suspeitas, havia de destrui-las, antes; se ela soubesse alguma coisa, negar-lha.

Mentiria, juraria falso se fosse preciso.

E não havia de ir ver a avó, não havia de entrar na casa dos seus a consolar a infeliz que só vivia duma esperança, a de ver o filho de sua filha?

Não, nunca... O limiar daquela porta, que ele julgava contaminado, infame, manchado de sangue e cuspido de opróbrios e desonras, tinha-o passado sacudindo o pó de seus sapatos, prometendo a Deus e a sua honra de o não tornar a cruzar mais.

Viagens na minha terraWhere stories live. Discover now