Capítulo 12

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De como Joaninha desembaraçou a meada da avó e do mais que aconteceu. — Que casta de rapariga era Joaninha. — Dá o A. insigne prova de ingenuidade e boa fé confessando uma grave senão do seu ideal.

Insiste porém que é um adorável defeito. — Em que se parece uma mulher desanelada com um Sansão tosquiado. — Pasmosas mostruosidades da natureza que desmentem o credo velhos dos peralvilhos. — Os olhos verdes de Joaninha. — Religião dos olhos pretos estrenuamente professada pelo A. Perigo em que ele se acha à vista de uns olhos verdes. — De como estando a avó e a neta, a conversar muito de mano a mano, chega Frei Dinis e interrompe a conversação. — Quem era Frei Dinis .

— Aqui estou, minha avó: é a sua meada?... Eu lha endireito. — disse Joaninha saindo de dentro, e com os braços abertos para a velha. Apertou-a neles com inefável ternura, beijou-a muitas vezes, e tomando-lhe o novelo das mãos num instante desembaraçou o fio e lho tronou a entregar.

A velha sorria com aquele sorriso satisfeito que exprime os tranqüilos gozos de alma, e que parecia dizer:

— Como eu sou feliz ainda, apesar de velha e de cega! Bendito sejais meu Deus.

Esta última frase, esta benção de um coração agradecido que espira suavemente para o céu como sobe do altar o fumo do incenso consagrado, esta última frase transbordou-lhe e saiu articulada dos lábios.

— Bendito seja Deus, minha filha, minha Joaninha, minha querida neta. E Ele te abençoe também, filha!

— Sabe que mais, minha avó? basta de trabalhar hoje; são horas de merendar.

— Pois merendemos.

Joaninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha redonda, cobriu-a com uma toalha alvíssima, pôs em cima fruta, pão queijo, vinho, chegou-se para o pé da velha, tirou-lhe o novelo da mão e arredou a dobadoira. A velha comeu alguns bagos de um cacho doirado que a neta lhe escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho, e ficou calada e quieta, mas já sem a mesma expressão de felicidade e contentamento sossegado que ainda agora lhe luzia no rosto.

As animadas feições de Joaninha refletiam simpaticamente a mesma alteração.

Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo de gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezesseis anos, havia por dom natural e por uma admirável simetria de proporções toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo.

Mas nesta foi a natureza que fez tudo, ou quase tudo, e a educação nada ou quase nada.

Poucas mulheres são muito mais baixas, e ela parecia alta: tão delicada, tão élancés era a forma airosa de seu corpo.

E não era o garbo seco e aprumado da perpendicular miss inglesa que parece fundida de uma só peça; não, mas flexível e ondulante como a hástea jovem da árvore que é direta mas dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que nasceu, e tenra que a estala qualquer vento forte.

Era branca, mas não desse branco importuno das loiras, nem do branco terso, duro, marmóreo das ruivas — sim daquela modesta alvura de cera que se ilumina de um pálido reflexo de rosa de Bengala.

E doutras rosas, destas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de um sangue que passa livre pelo coração e corre à sua vontade por artérias em que os nervos não dominam, dessas não as havia naquele rosto; rosto sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o vento... Ali dormiam as paixões.

Viagens na minha terraWhere stories live. Discover now