Naquela madrugada | Capítulo Um

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Paris, Outono de 1934

Mayer caminhava pelas ruas da imponente cidade de Paris, não conseguindo deixar de imaginar a forma como cada recanto poderia ser fotografado, a forma como a sua essência poderia ser guardada em apenas um segundo.

O frio cortante da madrugada obrigava-o a enterrar o nariz no casaco de bombazina que lhe chegava até aos pés. Porém, o seu coração aqueceu quando começou a entrar no parque Monceau, a sua parte favorita no caminho a pé até ao trabalho. Deixou-se contemplar a beleza da natureza enquanto fazia um esforço para não pegar na sua câmara Nikon S, pendurada ao pescoço. Muitas foram as vezes que chegara atrasado ao escritório por ter ficado a fotografar tudo o que via.

Para sua surpresa, constatou que algo naquela paisagem destoava do habitual. Àquelas horas em que começava a nascer o Sol, Mayer habituara-se a ter o esplendor daquele parque todo só para si. Contudo, naquele momento, alguém partilhava com ele esse mesmo esplendor.

Era uma mulher que, como ele, parecia estar na casa dos vinte anos. Trazia um vestido comprido até aos tornozelos e um sobretudo que cobria todo o seu comprimento. O seu cabelo cor de mel caia-lhe para o lado enquanto ela se inclinava num esforço de fotografar um canteiro de rosas deslumbrante.

Mayer poderia ter seguido o seu caminho, mas algo fê-lo parar no lugar onde estava. Não conseguiu pensar em mais nada a não ser que necessitava de captar tamanha beleza. Pegou na Nikon e aproximou-se ao de leve, tentando evitar fazer ruído de modo a não desfazer o quadro tão belo diante de si. O "click" que ressoou quando pressionou o botão desmascarou-o, mas Mayer não se importou, já tinha imortalizado aquilo que tanto queria.

A mulher ao ouvir o som reproduzido pela câmara, deu um salto e endireitou-se, colocando instintivamente a mão no peito, enquanto o olhava perplexa.

- O que pensa que está a fazer? - perguntou-lhe indignada.

Mayer não conseguiu evitar um sorriso que se formou no canto dos lábios. Ela era encantadora, até mesmo quando o perscrutava com os seus olhos cor de avelã, e franzia o sobrolho desconfiada.

- Como se chama? - o homem perguntou, voltando a deixar a sua câmara pendida no peito, e colocando as mãos nos bolsos do casaco.

A mulher reagiu ao seu atrevimento encolhendo-se, enquanto escondia a câmara que trazia entre as mãos, dentro do seu sobretudo.

- O que lhe interessa? - ripostou, desviando o olhar do dele. Como ela é bonita, pensou, ao mesmo tempo que admirava o seu rosto de pele morena que reluzia à luz do sol nascente.

Mayer começava a notar pelo sotaque meio desleixado que ela não era francesa. Aliás, ele próprio em tempos tivera esse mesmo sotaque, nas primeiras semanas em que chegara a Paris, há cerca de um ano atrás. Decidiu arriscar na pergunta seguinte.

- És judia, não és?

A mulher empalideceu, e Mayer começou-se a arrepender do que tinha feito, embora tivesse conseguido confirmar as suas suspeitas. Meio cambaleante, a figura diante de si começou a recuar, e o homem conseguiu entender no seu olhar que ela se preparava para largar numa corrida longe dali.

- Espera! Eu também sou judeu! Chamo-me Mayer! - disse num tom urgente, estendendo a mão.

Uma sensação de alivio invadiu-o quando a mulher deixara de recuar e o olhava com curiosidade.

- "Aquele que brilha" - murmurou. Mayer sentiu o coração falhar uma batida. Ouvir o significado do seu nome hebreu nos lábios daquela maravilhosa figura parecia um sonho.

Assentiu, ainda com a mão pendente no ar.

- E tu és?

Mayer conseguia sentir que ela se mantinha apreensiva, mas quando falou a sua voz saiu convicta.

- Eu sou a Liora.

- "A Luz" - disse Mayer, baixando por fim a mão.

Talvez por ter provado saber o significado do seu nome em hebraico, Liora pareceu descontrair-se, começando a destapar a câmara escondida entre o tecido do sobretudo.

- Gostas de fotografar? - Mayer perguntou, permitindo-se aproximar um pouco mais da mulher. Liora não se retraiu, e isso deu-lhe confiança para se chegar mais perto dela, o suficiente para agarrar na câmara que essa apertava contra o peito.

- Posso? - pediu.

Com alguma relutância, Liora deixou que ele analisasse o objeto. Tratava-se de uma Contax IIa que, à semelhança da sua Nikon S, era uma câmara de lente de curto alcance, o que obrigava a que o fotógrafo estivesse sempre muito perto daquilo que quisesse fotografar.

- As fotos só saem boas quando estão perto o suficiente, não achas? - disse, não conseguindo evitar esboçar um sorriso perante tamanha coincidência.

Para sua surpresa, os lábios de Liora também se retorceram num sorriso tímido. Os seus olhos cor de avelã encararam-no finalmente, e Mayer sentiu o seu interior estremecer.

Como ela é bonita.

803 palavras

Fotógrafo de Guerra  ✔Where stories live. Discover now