Capítulo 1 - Azul Oceano

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     Já se tinham feito três anos que meu pai foi dessa para melhor. Três dolosos e lancinantes anos.

     O calendário de parede sempre fazia questão em me recordar, junto com uma pontada de tristeza; ano 2081, informava seus números desbotados. Eu lembrava muito bem de quando não me passava de uma fedelha. Os olhos sempre úmidos e o ódio transbordando, assim como a mente no passado e no que poderia ter sido. Mas foi aí que segui meu rumo. Percebi que não ganharia nada remoendo o que já aconteceu. Então movi meu ódio para o presente, e as coisas começaram a andar.

     Meu "sonho" era entrar nas Forças Armadas — ou mais próximo disso que tive desde então —. Por ter me inscrito no teste de aptidão física do Exército, hoje seria o grande dia, o que me fez ralar por todos esses anos: o pré-teste, o teste antes do teste de verdade. Cerrei os dentes e tensionei o maxilar ao encarar a pia branca. Não olhei no espelho.

     Perguntas e apreensões martelavam minha cabeça sem parar. "E se eu fosse escalada para outra cidade?", "E se eu não for boa o suficiente?"; eram algumas delas. Acreditava eu que meu pai ter sido um sargento era algo a se contar. Lorota. Soltei um longo suspiro, sequei meu rosto e dei algumas piscadas rápidas, para me despertar do sono. Com um elástico de cabelo em mãos, puxei meus fios médios e marrons com vontade num rabo de cavalo apertado e empinado. Eu tinha que fazer a avaliação, tentar pelo menos. O medo não daria dinheiro. "Eu ia arriscar", concluí ao sair de supetão até a mesa de jantar, meus passos pesados e decididos.

     Meu vô estava de pé, preparando o café com uma animação contagiante, apesar de suas mãos tremerem um pouco. "Petronilla e Sorin devem estar dormindo ainda, aposto", supus sem dificuldade nenhuma ao sentar em uma das seis cadeiras da mesa de jantar, no cômodo espremido que chamávamos de cozinha e sala, ou cozinha-sala para os íntimos.

      — Estou terminando — disse vovô Dan, ao ter me olhado de relance.

     — Sem problemas — falei sem rodeios, pensativa.

     Normalmente, eu iria barrar meu avô por fazer esforço assim. Porém, eu tinha percebido em seus olhos azuis cor do céu a felicidade de executar aquela coisinha simples. Ele se sentia inutilizado à medida que os anos passavam. Imaginei o quão ruim deveria ser.

     Apoiei os cotovelos na mesa, imersa em minha própria mente. Querendo ou não, a morte de meus pais tinha causado mais estragos do que uma simples memória triste no fundo de meu ser. Seria até melhor se fosse o caso. Mas desde que se foram, nossa renda caiu drasticamente, e a oportunidade de nos tirar da miséria estava toda em minhas mãos. Não que eu fosse especial, longe disso na verdade. Para minha infelicidade, eu era a filha mais velha, e a única com um pé na idade adulta.

     Eu poderia fugir como um covarde, mas descartei essa possibilidade - não logo de cara. Eu nem gostava de pensar, justamente para não chorar como um bebê e desejar pateticamente ter nascido fora da fronteira; fora da "România Regală", a quem os sanguessugas chamavam de forma presunçosa e vil com orgulho. "Ia dar tudo certo", pensei de imediato. Agarrei-me em uma esperança cega, me inibindo de pensar no futuro incerto, como eu tinha programado meu cérebro para agir. Negar que o esforço seria em vão era a melhor coisa que eu poderia fazer.

     Me recuso a dar meu sangue a eles, enfim, afirmei mentalmente. Era meu único plano.

      Na sociedade horrenda que eu vivia, os privilegiados eram aqueles que não tinham de doar seu sangue ao atingir a maioridade. Pessoas doentes ou com trabalhos que exigiam muito esforço não eram obrigadas — os monstros eram seletivos quanto seu alimento —. Estava aí um motivo bem óbvio de eu querer ingressar no Exército. Lá, além de um ótimo salário, ganharia a liberação de brinde. Era a resolução de todos os meus problemas em um pacote bem amarrado com fita de cetim.

Distopia RomenaWhere stories live. Discover now