Ela precisou parar para recuperar o fôlego. Mikoto a encarava de olhos arregalados.

-- E como alguém que fosse perigosa seria uma miko tão digna? Ou uma irmã caçula tão maravilhosa, que todo mundo quer de volta?

-- Então se eu voltar...

-- Todo mundo vai te receber como membro da família. E se algum youkai tentar encostar em você, nós vamos te proteger. É isso que irmãs mais velhas fazem.

Os olhos de Mikoto se marejaram de novo, e ela jogou-se em Takako num abraço. A jovem ficou surpresa no início, mas retribuiu o gesto, e quando a menininha se acalmou e parou de soluçar, Takako a pegou no colo e falou suavemente:

-- Vai ficar tudo bem.

A saída do abismo foi muito mais rápida que a entrada, e ao chegarem à praia, Sayuri ainda lutava contra os youkai, cansada e ofegante, recuando cada vez mais perto da entrada da fenda.

Mikoto se assustou e estendeu a mão para a jovem, quase caindo do colo de Takako. Instantaneamente os youkai desapareceram como a chama de uma vela que se apaga. Sayuri sorriu aliviada ao ver a prima bem, e não disfarçou o susto com a visão da criança em seu colo.

-- Mikoto? – perguntou boquiaberta. Takako assentiu e a menininha acenou timidamente, e Sayuri precisou processar a surpresa mais depressa do que gostaria – Certo... E onde está a hitodama?

-- Ela desapareceu? – Takako não tinha certeza de quando isso acontecera, talvez quando voltavam da fenda, mas como a luz se apagara sem que ela percebesse? Devia estar muito distraída com Mikoto para ter deixado isso passar.

-- Tem algo estranho acontecendo – Sayuri apontou para cima.

Nuvens de chuva se condensavam no céu fraturado, e as pérolas das duas mais velhas começaram a brilhar.

As três contemplaram as nuvens agora trovejantes se dividirem no formato de dois dragões e adquirirem cor, um verde e um amarelo. As primas reconheceram-nos das ilustrações que viam desde crianças, tanto em livros e pergaminhos da biblioteca quanto em murais da escola; os dragões celestiais que auxiliaram no banimento dos youkai para a outra dimensão e cederam suas pérolas às miko do clã Kairiku.

Takako pôs Mikoto no chão e prostrou-se em respeito aos seres divinos. Sayuri fez o mesmo, e Mikoto as imitou. Todas se faziam a mesma pergunta: "como isso pode estar acontecendo?!"

-- Não podemos mais nos comunicar diretamente pelo mundo físico, mas ainda estamos ligados ao mundo adormecido. Os corações de todas as detentoras das pérolas estão reunidos em um nível de consciência mais profundo do que já aconteceu em séculos – a voz do dragão verde se assemelhava ao ribombar de trovões – E foi o que nos permitiu falar diretamente a vocês.

Um pouco hesitante, as três se puseram de pé e olharam para os seres celestiais. Somente as cabeças e a parte superior de seu tronco eram visíveis por baixo das nuvens, o restante de seus longos corpos ondulava quase que infinitamente pelo céu, cuja cor acinzentada contrastava com o brilho colorido de suas escamas.

-- O que as traz aqui? – Takako perguntou num quase sussurro. Foi a vez do dragão amarelo se pronunciar, sua voz tão imponente quanto a do outro.

-- Entregar a última peça necessária para devolver à miko do céu seu coração. A verdade que remete ao dia em que recebeu sua pérola.

Da mesma forma que quando Takako tocou Mikoto e viu suas memórias, imagens surgiram nas mentes das três, de uma tempestade em alto mar, e uma pequena canoa velha e desgastada mal flutuando em meio às ondas que atingiam metros de altura.

Dentro da canoa um bebê chorava, vestido em trapos e completamente encharcado, sem esperança nenhuma de sobreviver. Mas como se o mar ganhasse vida, as ondas passaram a desviar da diminuta embarcação, e o vento a empurrou. A canoa deslizou tranquilamente entre as ondas até encalhar numa praia.

Uma pérola azul-celeste desceu das nuvens junto com as gotas de chuva e caiu ao lado da canoa encalhada. Pescadores que passavam viram o brilho azul e correram para ver o que era aquilo, para encontrar a criança que viria a ser Mikoto.

A visão se desvaneceu, e as três estavam novamente diante dos dragões celestiais.

-- Foram vocês que salvaram Mikoto da tempestade e a levaram para Iruka – o tom de Takako demonstrava sua surpresa.

-- Uma de nós a julgou merecedora. Ela nos orientou que poupássemos sua vida, e cedeu-lhe a própria Hoshi no Tama.

A hitodama azul reapareceu diante de Mikoto, encolheu até o tamanho de uma pérola e se acomodou no cordão em seu pescoço. Os dragões se tornaram nuvens novamente e se desfizeram, e o céu voltou ao seu estado acinzentado.

-- Isso foi incrível! – Sayuri pulou de empolgação – Os dragões sagrados falaram diretamente conosco, acho que é a primeira vez que isso acontece desde o banimento dos youkai! Ninguém em casa vai acreditar na gente, não é, Takako?

Mikoto ainda fitava a pérola, agora em sua mão, seu rosto infantil refletido na superfície perfeitamente lisa, congelado numa expressão indecifrável. Ela acomodou a pérola em seu devido lugar e ergueu o olhar para Takako e Sayuri, que aguardavam ansiosas por um pronunciamento seu.

-- Acho que estou pronta para voltar para casa – disse com um sorriso.

Sayuri tirou Mikoto do chão e rodopiou com ela antes de puxá-la junto ao peito, ambas rindo de prazer. Depois Takako se juntou a elas no abraço.

Mikoto levou a mão à pérola, que brilhava com cada vez mais intensidade, e ao seu redor o mundo rapidamente se consertava e voltava a ter cor.

O Conto da Donzela do SantuárioOnde histórias criam vida. Descubra agora