Capítulo 2 - Morfináceos

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Os olhos de Katniss estavam tão calmos. Seu braço, largado sobre mim, parecia se render a um cansaço que durara dias. Eu, por outro lado, mal conseguia dormir. Ela estava ali, adormecida como um anjo, cabeça recostada em meu peito e sua mão direita envolvendo a mim num abraço terno. Suas bochechas rosadas apertavam minha pele devido ao peso de sua cabeça e, ali, onde ela adormecia, minhas sinapses pareciam em constante atividade.

Cada vez que sentia sua respiração quente tangenciar meu peito, um alívio tomava conta de mim. Por dentro, meus pensamentos inquietos ainda remetiam àquela cena em que eu havia saído de meu quarto para acalmá-la após um pesadelo, no trem para a Capital ou para os Distritos, ou mesmo em nossos aposentos antes dos Jogos. Snow e seus eficientes médicos-psicopatas haviam se assegurado de que essas lembranças, pinçadas de um extremo mais profundo de minha mente, viessem à tona a todo instante e se transformassem numa daquelas desculpas para que Katniss me enfraquecesse aos poucos, fazendo com que eu acreditasse que ela, de fato, precisava de mim.

E tal lembrança causava uma dor aguda em minha cabeça. Eu podia sentir, aos poucos, minhas têmporas vibrando, martelando no ritmo do meu coração e meus olhos forçados a se fechar para que eu não simplesmente me movesse bruscamente e retirasse dela o sono profundo em que se encontrava, recostada a mim. Consegui me controlar. Respiração ofegante, mas contida. Pupilas dilatadas e punhos cerrados. Eu sabia que amava Katniss. Eu tinha certeza de que ela estava ali porque também me amava, ao seu modo, e essa nossa primeira noite juntos de verdade era a prova de que mesmo refugiados de uma dor, poderíamos encontrar um no outro uma forma de arrancá-la de nosso peito devagar.

A noite caíra. As janelas um pouco abertas traziam consigo um vento ríspido, gelado e um céu arroxeado, tornando-se cada vez mais manso e sereno enquanto suas cores se transformavam. O laranja que eu adorava. A calma. Ali, na Aldeia dos Vitoriosos, poucos pássaros ainda sobrevoavam. Víamos de relance, por vezes, alguns tordos solitários, que logo eram espantados por urubus, os donos de um território ainda marcado pela devastação causada pela capital. Puxei o ar com um pouco mais de força e pude perceber Katniss se mexendo suavemente.

_É mais bonito ainda quando não estamos muito bem.

Katniss também olhava pela fresta na janela enquanto formava as primeiras palavras do nosso novo dia.

_Tudo parece mais bonito quando contrapõe o que estamos sentindo.

E isso era verdade. Até mesmo a cor quente acompanhando a frieza dos últimos dias escuros parecia contrapor nossos sentimentos, chamando-nos à vida, fazendo um convite ao pouco que nos restara de disposição para encarar um dia após o outro.

_A gente podia fazer algo diferente, hoje.

Katniss olhava para mim, desta vez, esboçando um leve entusiasmo meio surpreendente.

_Claro, mas… O que há de diferente hoje no nosso Distrito 12?

_A floresta.

Eu entendia que a floresta era o lugar de paz de Katniss. Talvez essa não seria uma atividade particularmente diferente para ela. Aquele entusiasmo se mostrava pelo fato de que ela queria me levar até lá. Por um momento me senti acuado, imaginando todas as vezes em que ela havia levado Gale. Era óbvio que lembranças atacariam em cheio, que talvez ela desistisse de me arrastar a certos pontos, talvez eles até tivessem um espaço só deles, um recanto dos dias felizes.

_Eu posso te ensinar a nadar.

Um sorriso escapou de meu rosto, de repente.

_Katniss, eu sei nadar.

_Sabe? Andou praticando na banheira da mansão?

_Pratiquei nos Jogos.

Por um instante nos calamos. Percebi as feições de Katniss franzindo e desconversei.

RefugiadosWhere stories live. Discover now