BRUXAS NÃO EXISTEM

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Oruguapé, 1810.

Oruguapé era uma pequena vila ao norte do que hoje conhecermos como a fronteira do Acre com o Peru. Com menos de quinhentos habitantes, a cidade tinha uma localização específica, pois em seu centro se fixava uma enorme floresta chamada Olho D'água, pelas diversas correntes de rios que serpenteavam por entre a relva úmida.

A cidade em si não era tão distante da floresta, mas muitos evitavam se aventurar por entre os enormes carvalhos e cinchonas que se expandiam rumo aos céus e construíam praticamente toda a luz do dia. O lugar era enorme e embora muitos soubessem aonde a floresta começava, ninguém sabia ao certo aonde terminava.

A vila vivia em uma quase constante harmonia, apenas uma presença afetava a paz dos moradores, a presença de Katherine Dontraz. A mulher recém chegada em Oruguapé despertava a serpente escondida por debaixo das más línguas, e sua insistente visita as árvores frutíferas no interior da floresta reforçavam a crença popular de que Katherine era uma bruxa que viera fugida da caça às bruxas que se iniciou pela Europa no século XV e se estendeu até o século XVIII.

A mulher em si não fazia mal a uma mosca sequer, porém também não se defendia das calúnias, vivia sua vida em uma pequena cabana que beirava a floresta e toda vez que precisava ir até a vila de Oruguapé, aguentava em silêncio os maus olhares e xingamentos dos moradores da comunidade.
Existe um mal reforçado pela ignorância que é difícil de exterminar, as sombras que existem em nós se exteriorizam em meio ao desconhecido e o ódio que o desconhecido pode causar inflama os corações daqueles que são covardes demais para buscarem o conhecimento.

A família Russordos vivia a margem das fofocas da vila, ainda que soubessem de todas. Eles moravam em uma fazenda ao sul da pequena vila de Oruguapé. Na entrada da fazenda era possível enxergar o enorme brasão da família Russordos cintilando ouro e prata. A família fornecia leite e ovos para a vila, além de algumas frutas. Jonatha Russordos, o patriarca da família, se considerava razoavelmente bem sucedido e exibia com orgulho seu sobrenome italiano, enquanto para muitos a família Russordos era imensamente rica.

Em tempos como aqueles onde a caça às bruxas havia acontecido tão recentemente, não havia entretenimento melhor do que sentar em volta da fogueira antes do jantar para ouvir as histórias de Jonatha sobre bruxas e bruxarias. Dona Claire, sempre repreendia o esposo sobre a influência maléfica e as más energias das histórias de terror, porém suas filhas Anne, Jasmine, Tereza, Miriam e Valkíria insistiam para o pai continuar. Que mal poderia fazer algumas histórias inventadas sob a influências de lendas e a fértil imaginação de Jonatha?

Dentre todas as garotas, Valkíria era a que mais adorava as histórias do pai, com seus olhos escuros e arregalados, ela admirava cada conto, lenda ou mito. Enquanto suas irmãs enxergavam as aparências horrorosas e atitudes malditas das bruxas, Valkíria apenas conseguia notar força e poder. A admiração da garota para com essas figuras matriarcais era mantida em segredo, pois os pais católicos não aprovariam em nada sua interpretação peculiar.

O medo toma formas estranhas, mas a coragem pode ser a mais bizarra qualidade humana, exceto talvez pela curiosidade. Durante às noites era comum que Valkíria se sentasse em frente a janela de seu quarto encarando os céus sobre as copas das árvores da grande floresta Olho D'água, aguardando pacientemente reconhecer a figura de uma mulher nua flutuando sobre os ares para dançar à meia noite com seu amante, o próprio Satanás. Segundo as histórias do pai, as bruxas eram esposas do Diabo.

Apenas uma pessoa conhecia a admiração secreta de Valkíria e esta era sua irmã gêmea Miriam, ambas confessavam tudo uma a outra em um elo de amizade que ainda no útero se eternizou. Enquanto a irmã adorava as histórias de terror, Miriam sentia medo na mesma intensidade. E todas as noites era Miriam quem chamava a irmã de volta para cama, quando acordava e a via sentada em frente à janela.

BRUCIARE, A LENDA (CONCLUÍDO)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora