Alcimare Dalbone

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O elevador

Que eleva é uma das definições de elevador segundo o dicionário Aurélio. A outra é o aparelho que serve para fazer transportes de um a outro nível. A curiosidade em pesquisar esta palavra específica ocorreu-me logo após o desconcertante episódio em uma destas caixas angustiantes. Aquela situação fez crescer, em mim, um quê de claustrofobia que, até então, nem sabia que poderia existir. Aquele era para ter sido mais um dia comum em que eu, comumente usava meu uniforme de escola pública municipal. Era para ter sido, mas não foi. Portanto, perdoe-me caso a mulher madura que agora lhes narra se confundir com a menina, porque, depois do acontecido, como que numa reminiscência pós-traumática, ficou impossível distinguir uma da outra.

Tudo começou pela aula de geografia em que a professora, mais empolgada que a turma com sua brilhante proposta de avaliação, anunciou que deveria ser entregue, ao final de uma semana, uma maquete que, por sorteio, minha equipe teria que fazer sobre vulcões. O sinal bateu encerrando as aulas que tinham sido entediantes, mas no portão, Pedro, pela primeira vez me cumprimentara com um sorriso tímido e logo em seguida, meu whatsapp me notificava de uma mensagem me chamando para ir ao cinema no sábado. Olhei para ele retribuindo com um sorriso afirmativo. A noite tinha sido longa porque, numa inversão de papéis, precisei ficar acordada até mais tarde cuidando de minha mãe que ardia em febre. Meu pai estava embarcado naquela quinzena e, nesses períodos, acabávamos uma cuidando da outra. O convite de Pedro fez meu sacrifício de ter acordado cedo ter valido a pena. Acompanhando tudo de perto e feliz porque, enfim, eu teria oficialmente um encontro, Gui, meu melhor amigo, resolveu acompanhar minha mudança de trajeto na volta para casa. O que eu amei, já que odiava fazer longas caminhadas sozinha. O dia estava agradável e contrastava com a cara séria dos pedestres sempre apressados. Nós dois, ao contrário, íamos devagar, contando casos e tentando não criar expectativas, fazendo parecer que tínhamos todo o tempo do mundo.

Chegamos ao edifício de dez andares, onde a papelaria, ali, escondidinha no final do corredor do último andar, tinha o preço bem mais em conta que a das outras do centro da cidade. Depois de algumas discordâncias sobre qual tamanho de isopor levar, qual cor de tinta e se uma ou outra ferramenta, como estilete e pistola de cola quente era realmente necessária, saímos, de modo geral, satisfeitos com as compras.

Apertamos o botão do elevador e fomos para a janela admirar a altura em que nos encontrávamos. Cheguei a comentar algo sobre como saltar de bungee jumping deveria ajudar a aliviar a ansiedade. Era uma vertigem boa que, mesmo não praticando tal esporte, eu sentiria até sábado. Gui estava dizendo que era melhor criar cactos que expectativas quando a porta se abriu e eu, cumprindo um ritual da vaidade feminina, fui até o espelho para dar uma arrumada no cabelo, com Gui assegurando que Pedro me acharia linda do jeito como eu estava e que não havia com o que me preocupar, já que cada fio continuava em seu devido lugar, cumprindo sua função de proteger meu couro cabeludo das agressões solares. Ri da "piada" que ironizava alguma matéria sobre qual a função dos pelos em nosso corpo. A verdade é que estava rindo à toa e acharia graça até da coisa mais idiota que ele dissesse.

Cerca de vinte segundos nos separariam daquela vertiginosa sensação de perigo decorrente da altura e nos levariam de volta à ilusória segurança do piso térreo. Mas foi então que, naquele rápido intervalo, meu pavor por elevadores teve início. O percurso foi interrompido e, no nono andar, o homem entrou. Alto, barriga saliente, barbudo, o cabelo ralo e grisalho; aparentava uns cinquenta anos de idade. Agora, não sinto dificuldades em descrevê-lo, mas, de fato, não sei, dos três, quem reparou em quem primeiro, já que, naquele momento, só o que senti foram os tais pelos de meu corpo se eriçando e dali em diante, tudo que por muito tempo me recordei foram dos olhos que me trespassaram.

Alguns homens podem alegar que todas as mulheres gostam de se sentirem desejadas, porém algum sentido, não sei qual, insistia que desejo não era a palavra correta para expressar o que, em mim, só causava repulsa. Dele, exalava um odor forte que me causava náuseas. Fiquei imóvel, em pânico por não ter para onde correr. Medo de que sacasse uma arma e nos obrigasse a sair do prédio com ele, ferir Gui e me... Já tinha sido encarada de muitas formas, e posso garantir que o suor frio que me secou a boca não era uma reação ao exagerado fruto de minha imaginação. A fixação daquele olhar me analisava tão sem escrúpulos que me reduzia a bunda, coxas e peitos esperando para serem abatidos. Gui virou-me para ele e, mesmo de costas, soube, pela face de meu amigo, que o alvo ainda não havia se desviado. Ergui a cabeça, demonstrando uma confiança que deveria estar presente, e me arrependi no instante em que cruzei o meu olhar com aquele que, mesmo vindo de um espelho, não me refletia; refratava-me.

Refratava-me os sonhos de menina adolescente rasgando minhas roupas e despedaçando um resquício de pureza que teimava em ficar, mesmo dilacerado. Aquele olhar me penetrava sem consentimento, sem uma mínima permissão, sem qualquer autorização de minha parte, para invadir, de modo tão cruel, a intimidade que era ainda tão minha. Por que o primeiro andar não chegava e aquele escape não surgia logo? Olhei para cima almejando que estivéssemos a céu aberto e a vastidão azul pudesse me livrar da pequenez que, em mim, se instaurava, mas só o que enxergava era um cinza metálico, sem vida. Apertei as unhas contra a carne das palmas de minhas mãos para ver se suportava melhor aquela descida que mais parecia me atirar ao inferno. Só que eu estava muito mais para vulcão adormecido que para ardente fogo dantesco.

Porque era tão violento o poder embutido naquele olhar que me desnudava, fiquei sem reação. Depois pensaria em tudo que poderia ter feito e dito, como, por exemplo, um sonoro "Está olhando o quê?" ou "Perdeu alguma coisa aqui?", todavia, nunca me ocorreu estar presa numa situação daquele tipo. Se levasse em conta as garotas mais populares da escola e do bairro, poderia se considerar uma sensualidade quase nula na magreleza de meu corpo, de menina de treze anos, que nem seios fartos não tinha. Minha boca não era carnuda e meus olhos nunca sugeriram nada de "caliente" naquela fatídica quarta-feira. Não usava maquiagem e, como, especificamente, naquela manhã, acordara atrasada tanto pelo cansaço como por ter esquecido de ajustar o despertador do celular, o cabelo, nem de longe, havia visto uma piastra. O que, então, em mim, despertara a frieza do olhar cortante e pontiagudo daquele homem? Por que tanta vontade, nele, de me reprimir em tal estágio de constrangimento? Por que ele parecia ter tanto prazer em me fazer sentir acuada pelo medo? Por que Gui e eu não nos demoramos mais dez minutos na papelaria? Isso teria evitado todo esse mal estar. Se não fosse comigo, teria sido com qualquer outra, independente de roupa e idade? Se a violência se tornasse física, será que Pedro compreenderia ou passaria a ter nojo de mim? E se fossem publicadas nos jornais, notícias que envergonhassem meus pais? A garganta queimou, mas contive as lágrimas. Não queria parecer mais fragilizada do que já estava. O que doía mais era saber que não estava diante de nenhum monstro ou E.T. e sim, de um homem, apesar de, nele, não transparecer humanidade alguma. Com minha mente fervilhando estes questionamentos, virei-me, num impulso, para alcançar a saída, assim que a porta se abrisse.

No entanto, quando a luz do sol clareou minha visão, meus pés, grudados naquele falso chão, só conseguiram se deslocar depois que uma leve pressão em meus ombros conduziu-me ao hall do prédio. O homem saiu levando consigo seu olhar, e deixando apático, o meu. Porém sua ausência não foi suficiente para que me acalmasse. Algo havia morrido em mim. Gui, temeroso de que ele estivesse nos esperando em uma esquina qualquer e que algo pior, pudesse acontecer na rua, mesmo que cheia de carros e pedestres circulando, ligou para que sua mãe fosse nos buscar de carro. A secretária ofereceu-me um copo de água alegando que, pela palidez, eu deveria ter tido uma queda de pressão e, nem um obrigada, consegui verbalizar. Algo havia se calado em mim. A queda havia sido outra, invisível e não detectada por nenhum aparelho médico. A minha autoestima é que tinha despencado nove andares em eternos e infernais vinte segundos.

Meio sem jeito, peguei o copo e, lavando-me, internamente, com aquela água, soube que, ao sair daquele elevador, eu, M. L., já não era mais uma menina e suas ilusões. A selvageria daquele olhar havia me transportado ao nível de mulher e seus constantes constrangimentos.

***Este texto recebeu o Prêmio Maria José Maldonado de Literatura 2018

Escritor SolidárioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora