Elvis Magalhães

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Nas décadas de oitenta e noventa, a única resposta que a medicina oferecia para uma pessoa que tivesse doença falciforme ou "anemia falciforme" poderia ser definida pelas palavras: "apaziguar," "escapar" ou "levar em frente e ver no que vai dar"...

Entrar em uma emergência com dores álgicas, pneumonia, priapismo ou uma úlcera de tornozelo infectada era apenas um pedido de socorro que seria atendido momentaneamente. Rapidamente, o que lhe seria oferecido como ajuda lhe deixaria uma leve sensação e a reflexão de que "desta vez eu escapei". Num primeiro momento um hemograma, depois, dependendo da ausculta, um pedido de raio X, talvez um exame de urina... Se o médico identificasse o foco da infecção, começava ali o tratamento com antibióticos, ou simplesmente hidratava, deixava de repouso, amenizava as dores com dipirona injetável, dolantina, petidina, voltaren e outros... Era o que podia ser feito para uma criança, adolescente ou adulto em uma época em que se falava menos ainda de uma doença tão antiga e extremamente cruel.

Depois da crise e de todo resquício da sensação de morte, com o espírito fortalecido, voltava pra casa, para meus amigos, trabalho e escola, para a vida, sempre acompanhado de esperança. Nunca exigi da vida mais do que sua presença...

Sim! Pedi por diversas vezes que não faltasse aos nossos encontros e cafés da manhã, que dormisse ao meu lado e que jamais se ausentasse!

O que diferencia os dias de quem tem doença crônica de qualquer outra pessoa é o compromisso diário com a vida, com a esperança e com a dor. Desde cedo compreendi isso. Apesar de não aceitar, eu compreendia mesmo. Esta seria a minha sina e absolutamente nada iria mudar, por mais que minha mãe me aconchegasse em seu colo e tentasse me ninar durante a dor, por mais que esfregasse minhas pernas, e braços, e costas ... a dor não iria melhorar. A iodex nunca teria o poder da morfina ou da dolantina! Ninguém poderia afastar os fantasmas da enfermaria e nem dizer a eles (fantasmas) que se fossem e levassem o medo da morte.

Fazer o TMO (Transplante de Medula Óssea) é um exercício de paciência, persistência e comprometimento. Em primeiro lugar, é feito uma quimioterapia de alguns dias para "matar" a medula do receptor. Depois é inserida a medula óssea do doador.

Resumindo: serão ao menos 30 dias de isolamento, depois mais 70 dias de hospital dia. Após a alta do isolamento, todos os dias eu ia ao hospital no ambulatório da clínica de TMO e lá eram feitos os exames e recebidos os medicamentos. Se estivesse tudo bem, éramos liberados, eu e Márcia, minha eterna companheira e esposa, para voltar ao flat onde estávamos hospedados.

Jamais me arrependi! O "preço" do transplante foi muito pequeno para quem convivia com úlceras extremamente doloridas, priapismos que roubavam as noites de sono, dores incompreensíveis, lascinantes e desesperadoras. Sinceramente?!? Um valor irrisório...

Quando a medula de meu irmão produziu células saudáveis, meus olhos clarearam, ficaram brancos, minha pele ficou mais rosada! Era inacreditável! Parecia um sonho. E era muito bom! Olhando para traz, é assim que vejo! E é assim que me vejo: como uma criança que ganhou um presente, como alguém que se viu livre de um peso cada vez mais difícil de carregar, ou um contrato que não poderia mais ser cumprido por falta de recursos físicos e mentais! Talvez pelo cansaço que os dias me impuseram, talvez pelas perdas dos anos ou dos caminhos que percorri.

Ouvi e vi a Legião Urbana ao vivo em vários shows. E me emocionei com seus acordes e com suas letras sobre acreditar e alcançar, "Não ser escravo de ninguém e sim senhor do meu caminho". Tive a crença de que devemos seguir "sempre em frente, pois não temos tempo a perder!"...

As coincidências e o destino me demonstraram que estava no caminho certo e que não tenho, ainda hoje, como sair desta estrada...

Escritor SolidárioOnde as histórias ganham vida. Descobre agora