Por onde andei...

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Nem tudo foram flores, com toda certeza!
Passados todos os percalços da vida considero-me uma pessoa feliz e realizada.
Andei por muitos lugares, estudei, trabalhei, criei os filhos, abstrai, me revoltei, me acalmei, amadureci, me impacientei, sofri, me resignei, descasei, frustrei, viajei, fui intensa, fui covarde, enfim, sou uma uma mulher igual a muitas que sonhou, sofreu, superou.
Tive um casamento precoce, onde meu principal papel foi ser mãe, por onze a doze anos.
Mudamos  para a cidade grande e as crianças já estavam mais independentes.
Nessa época me conscientizei de que eu era responsável por mim, pelos meus sonhos, pelo meu futuro.
Assim do nada? Voces se perguntarão.
E eu digo que não. Não foi assim do nada.
Foi dum misto de vergonha, dor e indignação! De queimar o rosto, de dar um nó na garganta, de segurar as lágrimas e sair torcendo para que ninguém percebesse.
Antes, bem antes, aos 17 anos eu já tivera uma experiência parecida. Mas eu ainda era imatura demais para que doesse tanto. Ou foi também, porque não foi com pessoas da família.
Minha bebê adoeceu e eu a levei ao posto de saúde. Saí de lá com uma receita na mão. Olhei a rua e não sabia para onde iria. Lembrei-me que meu irmão era amigo do dono de uma farmácia, e que ficava justamente no caminho da casa dos meus pais onde eu estava morando.
Apressei o passo, pois ela ardia em febre e com mais de um ano, já pesava bastante. Cheguei à farmácia e pedi para falar com o rapaz.
— Sou irmã de Fulano, minha filha está doente e estou com uma receita, o senhor poderia me atender? Meu irmão se responsabiliza por mim!
— Mas senhora, eu não a conheço.
— Sim, mas sou irmã de Fulano, moro ali na rua tal, onde ele também mora. Meu pai é o senhor Fulano, o senhor o conhece.
— Ah sim, sei quem é. Mas não posso vender fiado.
Eu tirei minha aliança do dedo, e disse
— Deixo minha aliança como garantia. É de ouro, está gravado o nome do meu marido, eu consigo o dinheiro e venho buscar!
— Não, não posso!
Fui embora, cabeça erguida, não chorei, nem me indignei. Minha pressa era chegar em casa e dar um banho refrescante para abaixar a febre da minha filha.
Como ela sarou sem remédio é mais uma das histórias que eu contaria sobre o apoio dos meus pais e remedios da natureza, e que deixo à imaginação de vocês.

O episódio que realmente me fez acordar para a vida eu já estava com 25 anos e mais uma vez morando na casa dos meus pais.
Minhas irmãs, jovens, modernas, independentes. Eu, a casada, com filhos e marido estávamos mais uma vez morando com eles.

Havia uma loja de departamentos famosa que anunciou uma liquidação para o dia seguinte.
Ir a lojas não fazia parte da minha vida, quem não trabalha, não tem salário, não compra.
Mas minha irmã se arrumou e foi cedo para aproveitar bem a liquidação.
Lá pelas onze da manhã ela chegou cheia de sacolas nas mãos.
Ela esperou as outras duas irmãs que chegariam do serviço para abrir as sacolas.
E eu ali junto com elas.

Toda história que me machuca eu passo rapidinho por ela. Não os respeito, caros leitores. Respeito a mim, não gosto de repisar em feridas.
Pois bem.
— Olha que lindas estavam essas blusas! Baratíssimas!
— Nossa, que lindas! Mas ainda é moda! Porque a estão liquidando?
—Porque vai mudar a estação e elas são outono inverno.
— Que ótimo! Quero esta!
A outra irmã: — Eu, esta!
A outra — Vou ficar com mais esta.
E eu ali ao lado esperando qual seria a minha! Saiu as minhas cores preferidas, amarela e azul.
Daí saiu a verde.
— Ai, Meu Deus, será a vermelha? Não, não era!
— Poxa, só tem mais duas : uma verde escura e uma preta. Não são cores que eu gosto, mas enfim pensei comigo mesma.
Pronto! Acabaram-se as blusas! Nenhuma foi sequer cogitada para ser minha!

Nesse momento foi que acabou minha inocência de vida, minha "distração" de que aquilo que eu vivia era o que me servia, eu engoli o nó que se formou na minha garganta e fui ao banheiro, com o rosto queimando de dor, ódio, vergonha, indignação!
E lá, eu mesma me dei um ultimato: Nunca, nunca mais você vai depender de ninguém para te dar as coisas ou ser responsável pela sua vida! Nunca mais, entendeu bem? Engoli as lágrimas, morri ali e nasci outra mulher.
Aquela blusa cacharrel foi um divisor de águas em minha trajetória.

                        Dona de Mim

Com muita determinação, vencendo muitas dificuldades eu assumi o papel principal que era meu e de mais ninguém. Foi o que determinou os próximos  anos da minha vida.

Estudei, fiz cursos, me preparei para começar a trabalhar, ter meu próprio salário, fazer faculdade, ser mais do que mãe e dona de casa.

Quando consegui essas realizações me senti inserida no mundo e ganhei  novo ânimo.
Foi um período muito bom, eu tinha muita energia e a sensação de existir me completava.

Claro que o fato de ser casada teve seu fardo, como por exemplo, às sextas-feiras eu ir para casa e ao passar de ônibus ver jovens como eu, se esbaldando em risadas, conversas, rodinhas de amigos por todo o trajeto da avenida e eu encostava a cabeça no vidro da janela e tinha a sensação de que eu mesma me roubei.

As jovens da minha época tinham muitas ilusões tiradas de livros açucarados, o cinema também enfatizou em filmes água com açúcar o "felizes para sempre" e a minha vida real não se mostrou dessa forma.

A convivência exige maturidade, superação, paciência e se há muita discordância nos pontos de vista, diferenças de idéias e de ideais, o amor pode acabar ou se acomodar, dessa forma eu percebia que o casamento ou o amor nao sao duradouros ou eternos, assim como em romances.

Embora meus pais ficaram casados por quase 50 anos, o casamento deles não mudou minha percepção de que não existe o "felizes para sempre".
Talvez os casamentos fossem duradouros porque os tempos e costumes eram outros.
Estive casada por 30 anos e nos separamos quando meu papel principal se acabou, meus filhos cresceram, ficaram adultos, saíram de casa e o descompasso em nosso casamento ficou muito evidente.

Nos dias atuais percebe-se os casais com o amor consciente, onde o indivíduo quer ser um bom marido, um bom pai, e a mulher  quer sua vida profissional e ser mãe sem se sentir sacrificada.
Como também é visível quando o casal decide  não ter filhos por escolha e muitos passam a dedicar-se  aos animais de estimação.
Nos dois casos as pessoas estão fazendo uma opção responsável.

E nestes tempos difíceis, de pandemia, os casais estão 24 horas em casa e acredito que acontecem grandes descobertas entre eles.
Sairão mais fortalecidos e convictos, como também podem ocorrer um grande número de divórcios, convictos também!

Aos da terceira idade que estão juntos cabe o cuidar um do outro e a todos que estão sozinhos tem muito amor a ser vivenciado  até que se encontre ou não o amor da sua vida.

Aposentei-me com 38 anos de trabalho, aos 65 anos, para cuidar da minha saúde e viver o "laissez-faire"
Costumo dizer que curto o meu ócio, que é um ócio digno! Eu o sedimentei.
Estou na terceira idade e não me engano com tratamentos estéticos para rejuvenescimento. Sinto-me bem com o que vejo no espelho.

Gosto e faço pequenas ações em prol dos meus pares da terceira idade. Creio que podemos e devemos  exercitar a solidariedade, fazer parte de grupos que trabalham em prol do bem comum,  olhar o menos favorecido, animar os doentes e idosos, ter uma presença amável por onde formos.
Àquela jovem que se casou precocemente, cuja mente era sonhadora e curiosa, que amava seus filhos acima de si mesma, que viveu e superou muitas dificuldades, e que apesar das dúvidas que tinha do amor conjugal, valorizava a família e esteve casada por 30 anos, a essa jovem que eu fui um dia eu digo:
Eu a respeito e a liberto!
Pode descansar, você já cumpriu o seu papel ao meu ver, lindamente!

Hoje eu gosto da idosa que eu me tornei e estou me tornando, sem tantas contradições e usufruindo o que a vida me proporcionou como resultado das minhas batalhas, dúvidas e incertezas e que hoje é seguro e concreto: construí uma grande família, filhos, genros, nora e dez netos, que são a razão da minha felicidade!
Ainda sonho? Sim!
Ainda leio? Mais ainda!
Ainda aprendo? Com certeza!
E ainda me surpreendo porque descobri que além de ler, eu gosto também de contar histórias!
Essa sou eu, Maria Elza Garcete Gonçalves.
Bisneta de Gumercinda
Neta de Juan Estevez Garcete
Filha de Jorgelina Garcete Goncalves

E de
Bisneta de Alphonsa Gonzales
Neta de Ramona Gonzales
Filha de Justo Pastor González

Mãe de Quatro Filhos e Avó de Dez Netos!






Fim

Vem Viver Comigo? AutobiografiaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora