-- Mas eu falhei com elas! – as lágrimas rolavam pelo rosto de Mikoto – Eu atrapalhei, posso ter causado coisas terríveis. Eu não merecia estar com elas, por isso voltei. Eu nunca deveria ter saído.

Megumi nunca vira a neta tão abalada. Não fez mais nenhuma pergunta, e a conduziu para dentro de casa, uma pequena residência atrás do templo, onde a família da miko morava há gerações. Deixou que Mikoto dormisse, e falasse quando estivesse pronta.

O cansaço e a tristeza do último dia pesaram sobre a jovem, que só acordou depois de anoitecer. O jantar esperava sobre a mesa, e o cozido de Megumi nunca tivera um cheiro tão delicioso.

Depois de comer, as duas se sentaram na varanda de trás da casa para ver a lua minguante se erguer. Ali Mikoto contou tudo, desde os estranhos sonhos que a impulsionaram a fugir há um mês, até a suspeita que a fez voltar para casa, temendo pelos outros.

-- Acho que os céus cometeram um erro ao me consagrar uma sacerdotisa. Eu não mereço isso – ela tirou a pérola azul e a pôs de lado. Megumi segurou sua mão.

-- Não, Mikoto. Não se desfaça de um presente dos céus. Se não for para usar essa pérola lá fora, contra youkai, use-a aqui, mesmo em suas mais humildes funções.

Um pouco relutante, Mikoto manteve o colar, mas não o colocou. Queria algum tempo para voltar à normalidade, e para isso precisava de um tempinho longe de magia. No dia seguinte, tudo seria exatamente como sempre foram antes do último mês.

Logo de manhã Mikoto foi para o litoral oeste, onde quase todos da sua idade se reuniam nas férias. Sakura, Yona e Misaki, do clube de naginata, correram até ela no instante em que a viram e a bombardearam com perguntas. Mikoto contou uma versão modificada da verdade, onde o clã Kairiku a dispensou por ser muito perigoso para alguém com pouca experiência, e a mandaram de volta para casa.

-- Pouca experiência? – Yona ficou indignada – Mas você arrasou. Vi você na televisão um monte de vezes.

-- É, você estava em Kuroi durante o bombardeio e em Shiro também. Usou a naginata, foi demais – os olhos de Sakura brilhavam de animação. Misaki estava menos exaltada.

-- E youkai existem de verdade. Como eles eram?

-- Assustadores. Foi uma experiência assustadora. Parte de mim ficou bastante aliviada em vir para casa.

-- Pena que não pôde ver como isso tudo termina – Sakura encolheu os ombros. Yona ainda sorria.

-- E daí? Mesmo que não tenha ficado até o fim, agora Mikoto tem histórias para contar até o dia em que for avó.

Apesar de ser verdade, Mikoto preferiu ouvir as histórias de casa, e passou o restante do dia se deliciando com as atividades de férias que o clube de naginata realizara no último mês e o que ainda planejavam fazer com as próximas semanas.

O dia rapidamente se tornou noite, e com ela as luzes do pequeno festival de aniversário da fundação de Iruka. As meninas vestiram yukatas e seguiram para o centro da cidade.

-- Eu tinha me esquecido completamente que era hoje – Mikoto comentou ao andarem pelas barracas de comida.

Logo seria a hora dos fogos de artifício. Todos já olhavam para cima, as crianças particularmente ansiosas, mas passou-se o tempo e sem sinal do espetáculo pirocinético, algo muito incomum de se acontecer. As pessoas começavam o burburinho quando um grito cortou o ar, seguido por outros.

A multidão debandou apavorada. A visão de um mujina se erguendo acima das barracas fez o sangue de Mikoto gelar. As meninas gritavam atrás dela.

-- Mujina!

-- É de verdade! – Sakura parecia ao mesmo tempo impressionada e apavorada. Misaki parecia prestes a desmaiar.

-- Vão para o santuário, depressa! – Mikoto agarrou as mãos de Yona e Misaki e disparou para a colina.

Muitos também pensaram em se abrigar lá, o local estava mais abarrotado do que nos dias sagrados. Mikoto se esgueirou entre as pessoas, novamente agradecida por seu tamanho facilitar a tarefa, entrou em casa e tirou os presentes de Takako da caixa e pôs novamente a pérola.

Devidamente equipada, ela voltou para fora e começou a dança e a oração da barreira. Percebeu que todos a olhavam como se fosse louca, momentaneamente esquecidos do medo que os dominava instantes atrás, mas em pouco tempo as expressões se alteraram para espanto ao verem a barreira azul cintilante aparecer ao redor do santuário. Megumi-sama estava boquiaberta como os outros, mas diferente deles, seu rosto demonstrava um completo orgulho.

-- Os youkai não podem passar do torii. Fiquem aqui e estarão seguros – Mikoto avisou por cima do ombro e desceu a colina.

Foi para a escola e procurou na sala do clube de naginata, mas todas eram de treinamento, com madeira no lugar de lâminas. Nunca imaginou que viriam youkai para Iruka, senão teria trazido a naginata de Sujin. Agora teria que se virar com as de treinamento, que sequer eram afiadas, mas esperava que fossem pesadas o bastante para servir de porrete.

O mujina não era o único atacando. Na entrada da escola Mikoto encontrou dois tanukis, tão entretidos com a diversão de se transformar em monstros maiores para assustar que passasse, que não perceberam a menina se aproximar por trás.

Ela acertou a cabeça de um, e antes que o outro pudesse reagir, bateu nele também. Mikoto passou por cima de seus corpos desmaiados e correu para encontrar o mujina, no momento a maior ameaça.

Encontrou-o ainda em meio às barracas do festival, derrubando tudo por onde passava. A naginata de madeira não seria muito útil contra ele, então Mikoto a quebrou, transformando-a numa estaca de madeira. Precisaria acertar um ponto vital, talvez a nuca? Inspirou fundo e correu para o youkai.

E foi derrubada por uma rasteira. Sentiu gosto de sangue ao bater no chão, e a mão que ainda segurava a naginata foi dolorosamente esmagada por uma sandália. Yasha olhava para Mikoto com os olhos faiscantes e o rosto contorcido numa expressão que só podia ser descrita como pura fúria.

O Conto da Donzela do SantuárioWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu