✨Texto Final - Cianuretto

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- VOVÓ! EU SEI QUE VOCÊ MATOU A MULA-SEM-CABEÇA! - o pequeno Lucas adentrou o quarto aquela noite, com o dedo indicador apontado para a senhora.
                         

...

O garoto já havia meditado sobre todas as vezes em que a avó o explicava que não deveria temer tal bicho, enquanto a mesma discretamente encarava ambas as mãos que foram queimadas com correntes de ferro quente há anos. 

Após trancar a porta do aposento, com um sinal de silêncio a velha chamou o neto para acomodar-se ao seu lado na cama. Tinha a noção que, mais cedo ou mais tarde, aquele momento aconteceria. O menino Lucas não deixava passar nada e com certeza juntaria pistas que os trariam à situação atual. 

- O que contarei agora, Lucas, precisa prometer que guardará segredo. 

- Sim, vovó. 

Ambos iniciaram aos sussurros.

- Você sabe o motivo que levou o seu pai a abandonar a vida de padre antes mesmo de conhecer sua mãe, sim? 

- Sim, havia outra moça. O nome dela era Miranda. 

Dona Gedalva riu fraco. É óbvio que o neto também já havia feito tal descoberta.

- Eu era a mãe mais feliz do mundo naquele época, Lucas. Meu filho primogênito se tornou o décimo padre consecutivo de nossa geração. E isso, para todos os parentes, era uma honra, além de uma tradição familiar que fora cumprida. Eu não poderia me sentir mais realizada e agradecia à Deus todos os dias pelo acontecimento... Até que... Ela apareceu. 

- O que aconteceu, vovó? 

- Fazia dois anos desde que seu pai dera a primeira missa na igrejinha local, onde toda a nossa vizinhança frequentava. Já era um padre declarado e todos o reconheciam como tal. Mas isso fora ameaçado e destruído quando Miranda chegou na cidade e visitou a capela pela primeira vez. 

- O papai se apaixonou por ela? 

- À primeira vista, criança. E eu, como boa mãe, pude notar isso desde o princípio. Naquela mesma tarde, quando voltamos para casa, eu tive uma conversa séria com ele acerca de toda aquela troca de olhares indiscretos que presenciei durante a cerimônia. Eu havia o avisado sobre o quão aquele ato fora errado aos olhos do Senhor. Mas ele desconversou. Disse-me que eu estava equivocada sobre o ocorrido e deu um basta imediato no diálogo, nunca mais dando brechas para que eu comentasse sobre... Aquela noite, eu dormi com a sensação de que meu orgulho se esvaziaria.

- E o que você fez, vovó? 

- Apenas apelei para que Deus não me deixasse perder George de tal modo. Mas infelizmente, em menos de três meses, foi o que aconteceu. Ele ficou louco. Livrou-se do cargo e afirmou que fugiria imediatamente com Miranda, pois a moça havia engravidado e ele era o pai. - os olhinhos curiosos de Lucas se encontravam mais vidrados do que nunca. Ambos encarando a figura melancólica da idosa. - Ele fugira tão sorrateiramente quanto voltara depois de um ano. Contou-me sobre o nascimento da criança, dizendo que era uma menina linda e saudável, com os olhos da mãe. Disse-me que não me preocupasse com reputações, pois a bebê fora enviada para a adoção e ninguém teria conhecimento sobre ela. Eu tinha esperanças de que a história da gravidez fosse apenas uma farsa e entrei em choque quando descobri que tudo era real. Mandei-o embora e, pela primeira vez depois de muitos anos, pequei ao amaldiçoar com todas as minhas forças o nome de Miranda. 

- Você ficou muito triste, vovó? 

- Na verdade, eu senti raiva. Aquela moça me tirou duas das coisas que eu mais prezei em toda a minha vida: meu filho e minha honra. Em tão pouco tempo que foi inevitável não tê-la como rival. Mas na madrugada do dia seguinte, eu tive um sonho profético onde a mulher tornava-se uma aberração quadrúpede, com labaredas de fogo no lugar da cabeça, bem em minha frente. Depois do amanhecer, notei que rolava histórias na vizinhança sobre algo parecido que estava a rondar a mata mais próxima. E então eu soube que o Senhor havia me vingado. De maneira tardia, mas havia. E eu estava imensamente agradecida por isto. 

- Então por que a matou? 

O silêncio fez-se presente no aposento. Dona Gedalva ponderava as palavras, sabia que não era algo que devia tratar com uma criança.

 - Naquela época, o seu avô trabalhava como peão de rodeio. Numa das noites de comemoração, enquanto eu o assistia dominando um dos touros mais temidos pelos seus demais companheiros, tive a ideia: encontraria a mula-sem-cabeça e faria o mesmo com ela. Naquela mesma noite, eu já tinha tudo preparado. Providenciei uma corrente de ferro ao invés de uma corda, pois sabia que o fogo poderia queimá-la. E então, logo após Gilberto dormir, eu fui até a mata à procura de Miranda. E a encontrei. Corri em sua direção e, quando enfim me dei conta, já havia montado na dita cuja. Ela se esperneava brutalmente. Eu precisava apertar cada vez mais as correntes em seu pescoço para não correr o risco de cair. Como consequência, suas labaredas tornaram-se mais intensas devido ao estresse e começaram a se espalhar pelo pescoço, onde firmavam-se as ferrarias, que começaram a esquentar e queimar minhas mãos. Quando o fogo enfim começou a se expandir lentamente pelo corpo da mula, eu precisei sair de cima para não ser incediada também. E então observei a cena, até que a mula tornou-se pó e desapareceu como se nunca tivesse existido. Depois disso, voltei para casa e manti isso em segredo. Até agora.  

Finalizado a estória, Dona Gedalva estirou  ambas as mãos abertas para o garoto, mostrando suas cicatrizes como prova de que tudo o que contou fora verdade. Lucas tocou-as com cuidado. 

- Está tarde, vovó. Acho que vou dormir agora. - O menino disse num bocejo. 

- Boa noite, criança. 

- Boa noite, vovó. 

Com um beijo na testa, ambos se despediram antes de virar-se em direções opostas na cama. Dona Gedalva, encarou o pote de cinzas que se encontrava em sua escrivaninha antes de finalmente fechar os olhos. Foi quando uma pequena brasa se acendeu em meio aos restos cremados. 

Avaliações:

goldensnaker

A mula sem cabeça é muito comum e isso me tirou um pouco o ânimo, mas a história que fez para ela foi inovadora!

blasphemenox

O personagem popular e muito conhecido foi o motivo pelo qual você não recebeu um dos bônus. Foi meio desanimador quando comecei a ler mula sem cabeça, mas ao decorrer da história, me despertou uma vontade enorme de sair correndo e gritando (risos). Foi excepcional, diferente e muito criativo. E eu adorei. Esperamos uma continuação.

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