CAPÍTULO 1 - Lacunas Mentais

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— E aí, eu acordo. — Elesis repetiu o sonho pela enésima vez para a mulher de olhos cálidos e compreensíveis à sua frente. Os cabelos escuros estavam, como sempre, presos em um coque e a maquiagem quase imperceptível da doutora Flickeen davam a ela o mesmo toque de sabedoria que já estava acostumada. Aquele dia, Elesis notou, ela usava um vestido bonito e olhava para o relógio mais vezes do que o comum, o que queria dizer que sairia com alguém depois dali, visto que sua consulta, como sempre, era a última.

— Você continua não reconhecendo as pessoas do seu sonho? As que estão caídas no chão? – Ela negou e a mulher anotou algo. – E nunca avançam?

— Sempre a mesma coisa, o mesmo sonho, a mesma sensação, o mesmo desespero ao acordar...

— As sessões de vômito pararam, pelo menos? — A garota ergueu os braços, como se pedisse que a mulher lhe enxergasse e notasse que não. Estava tão magra que os ossos da sua bochecha começaram a aparecer e tentava não achar que iria se quebrar quando se olhava no espelho a cada manhã. A psicóloga suspirou, anotando algo em sua cadernetinha. — Talvez seja hora de entrarmos com um tratamento diferente. Irei te indicar dois colegas meus, um psicólogo e um psicanalista...

— Você não é psicanalista? — Interrompeu a mulher, que ergueu os olhos para ela. Elesis as vezes tinha a impressão de que Sarah era quase cruel.

— Não, eu sou psicóloga e minha especialidade não é em entender sonhos, infelizmente. De alguma forma, seus sonhos te jogam em uma realidade alternativa que existe somente em sua cabeça, causada por traumas que nem mesmo nós entendemos.

Elesis suspirou, esfregando o osso do nariz. De novo aquele papo de traumas. Ela não tinha traumas, tinha pesadelos causados por sua mente doentia que gostava de lhe torturar, não tinha nada a ver com a perca que tinha sofrido.

— Sua negação em aceitar que essa pode ser a resposta te transtorna mais do que a mim, Elesis. Se eu quiser te ajudar, preciso entender que talvez eu não seja a profissional ideal para o seu caso.

— Talvez o ideal seja me internar logo em um quarto acolchoado, assim, quem sabe, eu possa parar de fingir que minha existência tem algum sentido. — Ergueu as sobrancelhas em sua direção, quase impondo um desafio.

Elesis sabia como parecia ao olhar para a mulher daquela forma. Os cabelos ruivos, tão intensos que quase pareciam vermelhos, as sobrancelhas grossas que emolduravam os olhos castanhos, quase tão vermelhos quanto seus fios, a pele branca quase cadavérica em vista da magreza assustadora causada por transtornos do sonho. Era assustadora. Pelo menos para algumas pessoas, e essas pessoas não eram Sarah Flickeen.

— Sua existência tem sentido, Elesis. A diferença é que você é uma adolescente rebelde que não gosta de entender isso muito bem. — Elesis ergueu as sobrancelhas para ela de novo, somente uma, reafirmando o desafio. Sarah sorriu. — Gostaria de falar sobre a faculdade? Falta pouco para decidir qual curso você vai seguir, já que o semestre preparatório está pronto para acabar. Suas notas continuam tão boas quanto antes? — Pousou as mãos sobre a caderneta, esperando que ela começasse a falar do novo assunto.

— Minhas notas estão ótimas.

— Já sabe qual curso vai escolher? Sua preferência em medicina continua? Soube que seu desempenho em primeiros socorros foi excepcional.

— Excepcional é uma palavra muito forte, mas fico feliz pelo orgulho que minha mãe diz sentir por eu saber fechar um talho no braço de alguém. — Sarah ergueu as sobrancelhas exatamente como ela havia feito instantes atrás. — E sim, minha preferência em medicina continua.

— Será uma drástica mudança para Manhattan então. O campus de medicina é realmente muito bonito, de toda forma.

— Eu acredito que sim.

Sangue de Ferro (Desgutação | Em breve)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora