Entre Folhas em branco

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Anna batia com a ponta de trás do seu lápis na mesa no mesmo compasso em que a goteira da calha caia por sobre uma garrafa vazia de água que estava do lado de fora. A chuva de verão era habitualmente assim naquela cidade, e costumava estragar jardins, desestabilizar casas, expectativas e sonhos. Mesmo a chuva tendo cessado, o estrago já havia feito, não só no seu quintal, mas também nos planos de voltar para casa de seus pais depois de um ano distante. Anna queria evitar contar toda a novidade por telefone para evitar ouvir os soluços do pai chorando e considerou que se expressar por meio de carta era a melhor opção.

Olhava o deserto da rua pela janela da sua casa, e voltava o olhar para as folhas em branco na sua mesa de canto. Não sabia por onde começar, os meses longe de casa não foram tão divertidos quanto ela achou que seria.

Nos poucos dias que foi feliz achava a vida incrível, morando sozinha, fazendo o curso dos sonhos, com o namorado dos sonhos, até ouvir uma palavra que mudou tudo "vagabunda... você é uma vagabunda", decretou Matheus, seu namorado, enquanto ela se esforçava em contar que o filho era dele e não tinha como ser de outro. Isso porque na noite em que Anna preparou o jantar com tanto carinho para sua primeira noite, Matheus chegou em casa alterado da cerveja que bebeu com uns amigos depois do trabalho. Mas Anna descartou a ideia de adiar, por ser sempre lembrada que adiou por tempo suficiente.

Anna julgou mal o caráter do jovem rapaz, assim que ele a deixou na calada da noite, Anna só lembrava do pai dela, e em como contar para ele. Nunca vai me perdoar, meu pai nunca vai me perdoar, só tenho 17 anos, ela dizia para si mesma todas as noites antes de dormir.

...

Quando Anna completou seus 16 anos, já havia terminado o colegial por ser uma das melhores alunas. Diferente dos outros alunos, ela sabia exatamente qual o próximo passo que ela deveria dar. Não havia traçado um plano completo para seu futuro, mas sabia que os acontecimentos precisavam acontecer um de cada vez. Sair da casa dos seus pais e ir para uma cidade grande estudar desenho era um desses passos. Isso porque a pequena cidade onde nasceu não oferecia muitos recursos e diversidade para estudo. Na época, a grande dificuldade de Anna era ter que ficar longe dos pais sendo tão nova e de ter que se adaptar a uma cidade grande.

Por que Anna de Paula iria preferir sair de casa ao invés de trabalhar na loja de Antônio de Paula, seu pai, ninguém sabia. Numa cidade pequena o que se espera é que a cidade continue pequena. Que os jovens se casem entre si, que os filhos herdam a casa dos pais, que os negócios da família continuem sendo administrados em família. Mas não para Anna que tinha uma outra visão de mundo, culpa de Antônio que contava histórias antes dela dormir. E a maioria dos contos não eram de fadas, mas histórias reais de pessoas que inspiravam superação e aguçava a mente da pequena Anna para novas descobertas.

"Eu não quero viver uma vida me culpando por não ter vivido o que sempre sonhei pai, a vida não é só essa cidade" Essas foram as palavras de Anna na época, e vinham à sua mente toda vez que tentava escrever a carta. Levantava da cadeira, andava de um lado a outro da pequena sala de estudos, e encarava as folhas de pé como se sua vida estivesse passando na frente dos seus olhos entre folhas em branco espalhadas pela mesa. Uma lagrima caia a cada lembrança que vinha. As histórias que seu pai contava, costumava vir acompanhadas de um final feliz, por mais que fossem reais, mas ela não teria nenhuma esperança sobre si mesma.

Antônio era um homem que amava muito sua filha. Por mais que seja isso que se espera de um pai, Antônio nunca tivera atenção de seu pai quando criança e desejou não seguir os exemplos dele. A única coisa que herdara do pai foi a habilidade de confeccionar sofás, mas se via cansado desse árduo trabalho. E foi quando sua filha nasceu que Antônio começou a produzir bonecos e bonecas de pano com uns remendos que tinha em casa de seus últimos trabalhos. Anna nasceu numa noite de natal e seus pais não sabiam se seria menino ou menina. Assim que descobriu, saiu pelas ruas da pequena cidade para comprar uma boneca para enfeitar seu berço. Como já era noite de natal, Antônio teve que esperar até o dia 26 para comprar. Passou a noite em claro, ansioso pela recém-chegada de Anna, e por ser a primogênita, se viu na obrigação de fazer ele mesmo uma boneca que poderia vir ser sua melhor amiga. E foi assim que a família começou a fabricar brinquedos na garagem da casa, onde saiam bonecos, ursos, almofadas e todo tipo de acolchoado. E Anna desde pequena sempre foi apegada a ele e adorava observar o pai trabalhando.

Entre folhas em brancoWhere stories live. Discover now