Mikoto se lembrou que Yasha criara um daqueles buracos negros dentro dos limites da barreira e trouxera os youkai. Ela contou isso às primas, cujos rostos foram tomados pelo medo.

-- Ela é humana, pode passar pelo torii sem nenhum impedimento – Sayuri falou com os olhos arregalados – E trazer youkai para dentro da barreira.

-- Nenhum santuário está seguro – Takako pegou novamente o gohei e o suzu – Devemos criar uma nova barreira, pela qual ela não possa passar.

Takako começou a entoar uma oração que Mikoto não conhecia, e realizou uma sequência de passos tão intrincada e bela que a menina não teve como parar de olhar. Num momento, sua pérola começou a brilhar, e junto com a luz castanho-amarelada, Mikoto sentiu um arrepio por todo o corpo. Mas não era como o que Yasha provocara na noite anterior, Mikoto se sentiu bem ali, amparada.

Ao final da oração, ela teve um pequeno sobressalto, uma espécie de parede se materializa em volta do santuário, transparente e cintilante como se fosse feita de cristal. Então desapareceu como uma miragem.

-- A barreira foi restaurada, nem youkai nem aquela mulher poderão atravessá-la – Takako baixou os braços, suando como se tivesse corrido uma maratona.

-- Você está bem? – Mikoto estranhou seu estado.

-- É um ritual um tanto desgastante, requer muita energia e concentração – Sayuri pegou o gohei e Suzu da prima – É precisa ter experiência, por isso deixo a Takako fazer, ela é bem melhor nisso do que eu.

-- Foi incrível – Mikoto deixou escapar com uma animação infantil, e as duas reprimiram uma risadinha.

-- Quem sabe um dia você não fez isso também.

Ela achava pouco provável, mas não disse nada. Takako levou alguns minutos para recuperar o fôlego, e as três desceram a escadaria, onde encontraram Yukio montando guarda. Mikoto apertou a manga do quimono entre os dedos quando ele olhou em sua direção, a lembrança do que ele fizera apertou seu estômago como se um elástico o envolvesse.

-- Quanto ao pergaminho, os novos sacerdotes começarão a trabalhar nele assim que chegarem, e como não podemos ficar aqui e esperar, voltaremos quando estiver pronto.

Sayuri e Takako seguiram com a descida despreocupadamente, mas quando Mikoto passou por Yukio, ele pediu:

-- Por favor, perdoe-me por falhar em meu trabalho de mantê-la em segurança.

Ela congelou e ficou apenas olhando para ele, sem ter a menor ideia do que responder, pois nunca estivera numa situação remotamente parecida com aquela. Talvez devesse tentar fazê-lo se sentir melhor.

-- Eu que me afastei e entrei no jinja sozinha. E você ainda precisou me carregar de volta para o navio. Eu é quem lhe devo desculpas.

Yukio a encarou com um misto de surpresa e confusão, e terminou rindo.

-- Aquilo não foi trabalho nenhum, a senhorita não é nem um pouco pesada.

Foi a vez de Sayuri rir, sem fazer nenhum esforço para disfarçar, e concluiu:

-- Os dois erraram, então façam certo da próxima vez.

-- Na próxima vez, terá mais gente com vocês – Takako informou ao retomarem a descida – Agora que temos certeza que Yasha é uma inimiga de alta periculosidade, e que ela tem a nós como alvos, o clã exige que nós estejamos sempre acompanhadas por no mínimo três seguranças.

À tarde, outro navio do clã, o Seiryu, chegou à cidade e desembarcou um pequeno grupo de sacerdotes que cuidariam do santuário até outras pessoas se candidatassem. Eles se postaram lado a lado diante de Sayuri, que ergueu o suzu numa mão e levou a outra à pérola.

-- Concedo a vocês o poder para proteger nossa casa – ela disse ao fazer os guizos soarem, e a pérola brilhou verde por um instante.

O grupo agradeceu e seguiu para o santuário. Vendo o olhar intrigado de Mikoto, Takako explicou:

-- Sayuri compartilhou um pouco da magia da pérola com eles, para o caso de Yasha voltar e precisarem se defender. Com os youkai soltos no mundo de novo, todos precisamos de poderes sagrados para nos proteger. Nosso clã também recebeu um pouco antes de sairmos de lá.

Mikoto tirou a pérola de baixo da roupa e olhou para ela. Lembrava-se que brilhara ao realizar a dança para afugentar os bakenekos, mas depois não fora de grande utilidade contra o mujina. Uma ideia começou a se formar em sua mente.

-- As sacerdotisas já estão de saída? – Sujin veio vê-las quando a tripulação ainda se preparava para partir. Takako respondeu:

-- Acreditamos que Yasha não será mais uma ameaça para Aka, mas o mesmo não pode ser dito de Ao. Devemos alertar ao rei Ayahito sobre o que ela fez.

-- Soube que devo agradecer à jovem aprendiz também – ele apertou a mão de Mikoto – Tem algo que eu possa fazer para ajudar?

-- Acho que tem, sim senhor – ela falou em voz baixa.

Antes de anoitecer, o Genbu já estava pronto para zarpar. Momentos antes de Mikoto zarpar, um homem de vestes elegantes chegou apressado e entregou a ela o que havia pedido ao rei.

-- Espero que seja do seu agrado. Pertenceu a várias mulheres samurai de séculos passados – ele explicou enquanto Mikoto testava a naginata.

-- Está perfeita, o tamanho e peso também. Diga a sua majestade que agradeço muito, e cuidarei muito bem dela.

Ao embarcar, viu-se debaixo de uma miríade de olhares incrédulos, que alternavam entre ela e a arma em suas mãos. Sayurim mais próxima, indagou:

-- Foi isso que você pediu ao rei?

-- Eu quero poder me defender. E era uma das melhores do clube de naginata da escola.

-- Bem, parece que hoje é um dia para te dar presentes – Sayuri estendeu uma caixa para Mikoto – Você precisa de um celular.

-- Não, eu não posso aceitar...

-- Use-o pelo menos durante nossa missão, para mantermos contato se precisar. Depois, se não quiser mais, eu fico com ele.

O Conto da Donzela do SantuárioOnde histórias criam vida. Descubra agora