-- Talvez ela tenha saído da cidade – sugeriu Kurono. O capitão balançou a cabeça, pois as saídas da cidade também eram vigiadas.

Com a aproximação do anoitecer, o desespero lentamente começou a tomar forma nos rostos de todos. Mikoto se sentia tão inútil, incapaz de dar a menor contribuição.

Normalmente ela buscava conselhos de Megumi-sama quando ficava sem direção daquele jeito, mas ela estava a centenas de quilômetros de distância. Apertando as largas mangas de seu quimono, Mikoto novamente ansiou por alguma familiaridade.

-- Esta cidade tem um santuário? – ela perguntou ao capitão, que observava o sol poente do convés. Ele estranhou a pergunta, mas assentiu.

-- Tem, é claro. O Santuário Vermelho fica perto da nascente do rio, mas esses lugares são protegidos por encantamentos que barram os youkai, então Yasha não tem porque ir lá.

-- Eu sei, não acho que ela esteja lá, só pensei em visita-lo.

-- A essa hora é melhor levar alguém. Vou pedir para Yukio acompanha-la.

Mikoto protestou, alegando que podia muito bem ir sozinha, mas o capitão foi irredutível, e a jovem só deixou o Genbu com o guarda-costas em seus calcanhares.

-- Yasha nem sabe que eu existo, só tem duas miko oficiais – ela resmungou no caminho – As chances de algum youkai me atacar são minúsculas.

-- Ela também não conhece o rosto de Sayuri e Takako. Youkai farejam magia sagrada, senhorita, e a sua pérola está cheia dela – Yukio explicou.

-- Sabe-se lá como – Mikoto resmungou.

Nesse ponto da conversa os dois chegaram às escadas para o santuário. Alguém pusera uma placa com o aviso "santuário fechado, voltar depois". Mikoto franziu a testa, pois aquilo não era o tipo de coisa que se faria num templo. Pelo menos em casa.

-- Devemos voltar para o navio? – Yukio perguntou hesitante.

-- Não, vamos continuar – Mikoto subiu os primeiros degraus e ultrapassou a placa.

-- Mas o aviso...

-- Não somos meros visitantes, tenho certeza que os sacerdotes vão entender a situação. Mesmo quando já tínhamos terminado o dia, Megumi-sama acolhia os desamparados.

O rapaz continuou a segui-la, mas dava para ver como estava receoso. Mikoto, em contrapartida, subia a escada apressadamente, ver aquela placa estranha despertara uma suspeita dentro de si, tinha a impressão de que algo não estava certo.

-- Ei – Yukio tentou puxar conversa – Você não tem interesse em saber por que tem esse poder de miko e essa pérola extra?

-- Não sei se quero saber – claro que ela fizera essas perguntas em seus anos de infância, se questionara quem eram seus pais e como e por que fora parar numa canoa no oceano em meio a uma tempestade, mas conforme crescia, começou a pensar que os motivos para isso ter acontecido podiam não ser muito bonitos, e se concentrou em sua vida como era, sem se preocupar com o passado ou como poderia ter sido.

-- Sério? Porque todo mundo quer saber. Já começaram a circular as teorias.

-- Teorias?

-- Para explicar esse mistério. A Internet inteira está falando sobre isso.

Por isso Mikoto não esperava, sequer pensara nisso, estando há algum tempo longe de um computador, mas fazia sentido. Centenas de pessoas viram sua manifestação involuntária de poder no meio da cerimônia, a notícia devia ter se espalhado como fogo, talvez até Yasha já soubesse.

Um calafrio percorreu sua espinha, e não foi por causa da temperatura.

Ela tentou tirar esses pensamentos da minha cabeça e se concentrou nos degraus que ainda tinha que subir, mas Yukio ainda não terminara.

-- Quem sabe você não tem algum parentesco com o clã? E recebeu essa pérola porque os céus sabiam que você ia precisar.

-- Talvez você devesse ler menos folclore e romances dramáticos.

-- Como adivinhou que eu gosto de drama? – Yukio fingiu estar surpreso – Você é vidente, aí está a prova de que você é uma verdadeira miko, não acha?

Ele riu, mas Mikoto não respondeu. A escadaria se aproximava do fim, mas ela não via as luzes do santuário, que já deviam estar acesas, considerando que a última luz do dia partira há algum tempo. Havia mesmo algo de errado ali.

Ela pulou três degraus de cada vez, deixando Yukio para trás, e parou diante do jinja, completamente às escuras e num silêncio sepulcral. Era noite de lua nova, então só distinguia os contornos da construção se apertasse os olhos.

-- O que há com esse lugar? – Yukio chegou, ofegante.

-- Parece abandonado – Mikoto murmurou, então levantou a voz – Tem alguém aqui?

Sua voz soou alta como um tiro de canhão, mas não houve resposta. Mikoto de um passo à frente.

-- Olá...? O quê? – seu pé batera em algo mole – O que é isso no chão?

Estava muito escuro para distinguir qualquer forma menor, mas felizmente Yukio trouxera seu celular. O brilho azulado da tela ofuscou o rapaz por um momento e ele virou o aparelho para frente.

Mikoto sufocou um grito de horror. Seu pé esbarrara no cadáver de um homem em vestes sacerdotais, quase inteiramente encharcadas de sangue. E mais além, espalhados pela entrada, estavam os corpos de todos os funcionários daquele santuário.

O Conto da Donzela do SantuárioWhere stories live. Discover now