Uma ligação importante

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A chaleira no fogo apitou, interrompendo o fluxo de pensamentos mórbidos que invadiram os sonhos de Elisa e se arrastaram para fora da cama com ela. Sempre esquecia deles quando acordava, mas daquela vez levantou sentindo um medo real das sombras em seu quarto, por isso acendeu todas as luzes da casa e preparou o café em silêncio, tentando lembrar os detalhes mais distantes do sonho.

"Tava frio, molhado. Tava chovendo..."

Colocou o café numa caneca e foi até o quarto do tio. A cama estava arrumada, as roupas passadas e guardadas. A velha jaqueta de couro pendurada ao lado da porta. Frascos de remédios faziam parte da mobília, bem como os porta-retratos. Num deles, uma versão menor sua sorria para o pai — o fotógrafo. Outro mostrava o tio montado em sua antiga moto cheia de bolsas de couro preto e bandeiras dos clubes que frequentava. Noutra, um homem alto abraçava uma mulher de olhos castanhos e sorriso encantador, que segurava em uma mão um menino e na outra um bebê envolto numa coberta do Snoopy. Ainda tinha aquele velho cobertor dobrado no fundo de alguma gaveta. Não se lembrava como, de fato, aconteceu o assassinato dos pais. O tio nunca contou, ela nunca perguntou, e tudo ficou bem.

Sentou na beirada da cama e tentou lembrar do sonho.

"Tinha alguém afogando... no mar..."

Tudo que vinha eram resquícios confusos. Uma pessoa desaparecia como um bloco de concreto em um mar tão escuro quanto piche, e tinha uma voz. Um murmúrio contínuo que parecia falar numa língua estranha e grave. Um grito afogado subia à superfície e perdia-se entre as ondas.

Tomou o café e olhou para a janela fechada, contornada pela claridade baça da manhã. Era ele, seu tio quem se afogava e não havia nada que pudesse fazer para ajudá-lo, pois não estava lá, não tinha "corpo" para agarrar sua mão e puxá-lo de volta, afinal tudo não passava de um sonho. Não podia salvá-lo.

"Um pesadelo... só isso"

Elisa não saiu de casa naquele final de semana, queria estar ali quando o tio chegasse — ou qualquer notícia, uma ligação, uma visita, qualquer coisa. Sabia que cedo ou tarde ficaria sabendo, afinal, o tio mentia. Não sabia dizer como sabia, mas sentia sua tristeza, embora sorrisse a maior parte do tempo. Seus olhos, no entanto, não mentiam. Havia um vazio ali que jamais soube como preencher, e por isso sentia-se culpada. Ele não teve escolha depois da morte de seus pais: num dia era solteiro, noutro tinha uma filha pra criar. A moto foi a primeira coisa que vendeu depois de alugar aquele apartamento, depois os livros e as coleções de discos. Então ele largou o estilo de vida antigo de motoqueiro e e passou a dar aulas de história na rede pública de ensino.

Elisa sabia que o tio era tão sensível quanto qualquer outro homem na sua idade, mas a verdade é que uma parte dele se recusava a aceitar a realidade, a largar os vícios antigos, que hoje constituíam parte integral de sua personalidade, quase numa tentativa de preencher o vazio que sua vida se tornara no momento em que as coisas não saíram como planejado. Tinha dias que sentia pena e chorava sozinha pensando nele, mas tinha momentos em que sentia vontade de dizer umas verdade na cara dele.

"A vida  é difícil pra todo mundo! Cresça!", mas não era tão simples assim, afinal, ele era tão sensível quanto qualquer outro cara entre os dois e os noventa anos. "Meninos são assim mesmo" deve ser uma das frases mais escutadas durante o período de vida de um homem, por isso, quando cresce, o sentimento de ser "apenas meninos" permanece como uma desculpa inocente para qualquer comportamento infantil e, até mesmo, irresponsável. Um salvo-conduto para agir como bem entender e ter o direito de se sentir injustiçado quando qualquer coisinha desse errado ou fugisse ao controle.

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⏰ Last updated: Feb 20, 2020 ⏰

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Água e SalWhere stories live. Discover now