Soco na cara

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Ele se chamava Frederico. Kiko para a família, Fred para os amigos, mas todo mundo na escola o conhecia por Fedôrico. Não que o apelido tivesse qualquer ligação com sua higiene, era limpo na medida que um garoto de onze anos podia ser. O apelido era pura implicância de Renato, ou Renatinho, para os chegados.

Logo na primeira semana na escola Nelson descobriu que era o novo Fedôrico. Estava na fila da merenda quando teve seu primeiro encontro com Renato. O garoto era gigante, muito mais do que um repetente deveria ser. Tinha músculos nos braços largos, exibidos com orgulho sob as mangas arregaçadas da camisa do uniforme amarelo.

― Ô! Deixa eu entrar na sua frente na fila. ― não foi um pedido, uma ordem. O bom senso dizia: obedeça e saia da frente. Mas, ao ver na mão de Renato um cachorro-quente do qual pingava uma mistura homogênea de catchup e mostarda, sua língua foi mais rápida:

― Se quer outro, pega a fila de novo.

     À resposta seguiu-se o silêncio. O gigante curvou-se para encará-lo nos olhos e Nelson deu uma boa olhada na cicatriz que dividia sua sobrancelha esquerda ao meio. "Pronto, é agora que perco a fileira de atacantes..."

Renato mordeu o lanche e virou as costas, a caminho do final da fila. Nelson mal pôde acreditar no que acabara de acontecer, e que suas pernas se mantiveram firmes e sua bexiga não esvaziou uma gotinha sequer. "Primeiro dia de aula: cachorro-quente, botei um gigante para correr! Incrível!"

― Cara, por quê você não deixou ele entrar na sua frente? ― perguntou o garoto com um par de óculos de lentes grossas. Bruce. Mais alguns dias e Nelson descobriria que só ali encontraria alguma amizade, no cara de aparência doentia e frágil.

Deu de ombros. De fato, não sabia o que tinha acabado de fazer.

― Sei lá, eu só... disse a verdade...

Bruce empurrou os óculos para trás com o indicador, fazendo com que seus olhos castanhos parecessem duas nozes num rosto bronzeado.

― Você tá tão ferrado... ele vai te transformar no novo Fedôrico.

Aquele era seu primeiro dia de aula e não tinha como saber de duas coisas. A primeira é que Frederico, ex-aluno da Escola Municipal de Cara Cosa, desapareceu em 21 de outubro do último ano e foi encontrado no dia primeiro de novembro num córrego perto da antiga fábrica Rezende e Silva, agora apenas Pescados e Silva. Estava irreconhecível. A segunda: rolava um boato entre os garotos do primeiro e segundo ano sobre Renato ter estrangulado o menino mais novo e escondido seu corpo, mas nunca acharam o verdadeiro culpado.

    Quando o sinal tocou, seguido pela marcha vagarosa dos alunos que voltavam para suas respectivas salas para mais duas horas e meia de estudos, Nelson sequer teve tempo de entender o que acontecia quando Renato se aproximou e acertou um cruzado em cheio na sua orelha esquerda. Primeiro ele ouviu o apito, como se um juiz tivesse pulado ao seu lado e marcado uma falta. Cambaleou para a direita e, antes de perder o equilíbrio, ouviu o som úmido de seu nariz sendo esmagado sob um punho que subia, cheio de ódio. A dor foi apenas uma consequência silenciosa da surra. Nelson achou que deixaria de senti-la quando desmaiasse, mas, assim como acreditou que Renato não levaria tão a sério seu comentário na fila da cantina, também estava errado sobre isso. Antes de apagar por completo, curvou-se como um tatu bola, contorcendo-se a cada pontapé. Parecia ter ficado acordado durante uma eternidade, mas em um piscar de olhos tudo ficou escuro e restava apenas uma dor aguda e quente, além de uma dúzia de rostos flutuantes de olhares vazios que acompanhavam tudo com frio interesse. Alguns dos rostos pareciam sorrir em divertimento. Mais tarde se lembraria de alguns dos comentários dos rostos que flutuavam:

Água e SalOnde as histórias ganham vida. Descobre agora