Belas águas tristes

126 4 2
                                    


Aquela tarde estava especialmente triste. Mesmo no meio da temporada de calor da floresta Amazônica, fazia um clima frio e bucólico. Ele andava por entre os comércios do centro, sem rumo, com poucas moedas no bolso e nenhuma esperança. Imaginava que a vida era mesmo aquilo, um monte de decepções, derrotas e erros cometidos, com alguns pingos de felicidade espalhados aleatoriamente, um total desequilíbrio. Pensou, "entendo agora porque muitos morrem cedo". Lembrou-se de que, quando jovem, seu pai lhe dissera que aquele mundo não era dos felizes, dos que estão satisfeitos, dos que sorriem facilmente, era um mundo dos feios, dos sofridos, dos mortos em guerras e dos parentes perdidos. Para aliviar as dores, ou promover fingimento, existia a arte, uma paixão que dividia com o pai.

Já eram umas 17h quando ele resolveu parar e sentar à beira do porto, num banco de frente para o enorme rio que se estendia a poucos metros. Aquelas águas lhe traziam algumas lembranças, algumas que pensava ter perdido, outras que preferia ter destruído. Nas vielas imundas do centro de Manaus, ele havia brincado até à exaustão, com garotos da sua idade mas que eram distantes de sua realidade, de seu mundo. Um mundo de cristais brilhantes, tecidos brancos e longos jantares, onde não havia espaço para garotos sujos de lama. Sua punição dependia de quem o descobria primeiro. Se fosse a mãe ele certamente receberia alguns fortes e calorosos tapas, era empurrado para o banheiro e vigiado por uma criada, que deveria garantir que em pouco tempo ele estaria apresentável para o jantar com o governador naquela noite. Se fosse o pai, haveria um curto discurso sobre a tristeza de fazer o que não queremos e um longo abraço, seguido da confirmação de um contrato antigo: "Direi para sua mãe que fui duro, faça uma expressão de inconformado".

As águas, turvas e silenciosas, sempre o levaram para lugares incompreendidos por ele, mas misteriosamente envolventes. Quando pintava o rio em suas telas, imaginava que mistérios estariam escondidos por entre aquelas águas negras, que monstros aguardavam para lhe tomar a alma. Numa bela noite de verão, quente como no deserto, a mãe lhe invadiu o atelier secreto da casa de veraneio. Seu rio pintado encontrou-se com o original. Outros, porém, não tiveram a mesma sorte e se encontraram com a ganância cruel do fogo. Os pais discutiram por horas e, no fim, o veredito, seguido de um abraço e o discurso sobre obrigações. Teve de se mudar para um internato para garotos.

"Na infância tudo parece o fim do mundo", ouvia isso a vida toda, mas não concordava com a afirmação. Era isso ou ele deveria ser mesmo um adulto infantil, pois ainda hoje aquilo parecia ser o fim do mundo. Descobriu que no internato conseguiria pintar escondido, mas as vantagens acabavam por aí, não tinha o pai para lhe defender dos punhos fechados de garotos sem lama na camisa de linho branco, nem das mãos de homens sujos, monstros do rio de águas negras que vinham roubar sua alma à noite.

Numa noite, enquanto pedia que nenhum monstro surgisse das sombras, ouviu um burburinho no salão central, passos na escada, depois no corredor dos quartos. Esperava o monstro, mas seu pai abriu a porta, - Arrume suas coisas. - ele disse. - Vamos embora, agora mesmo. Não falaram nada enquanto ele o levava para casa. Nunca soube o que ele sabia. Agora, enquanto observava o negro rio, perguntava a si mesmo se a mãe sabia também.

O dia começava a se despedir e os trabalhadores se movimentavam pelo porto feito uma triste colmeia num ritmo decadente. O trabalho chegava ao fim, e nos seus rostos ele via, o mundo era perfeito para eles. Motivado pelo incansável discurso das obrigações, ele se formara em direito. Era um jovem advogado, um grande partido, mas tinha no rosto a mesma tristeza que os trabalhadores do porto. Depois de formado foi trabalhar para o pai, tinha sua própria casa, que não era bem sua, mas podia pintar. A mãe achou que deveria, então, casar-se. - Você deve se casar com uma moça de família. Deve honrar seu nome. - ela dizia. Ele já não era um garoto triste pelos cantos, era um homem triste e com rancor. Discussões intensas, cristais quebrados e jantares interrompidos foram parte dessa época, mas já não tinha as palavras sobre obrigações do pai, somente os abraços. Depois de mais um jantar de dissabores, decidiu: iria em busca das cores dos rios e das brincadeiras sujas.

Belas águas tristesWhere stories live. Discover now