Encontro das águas

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Léo entrou na casa esperando que aquela fosse a última vez. Não era um homem de se apegar demais às lembranças, ou pelo menos pensava que não, porém aquele lugar mexia com ele.Não havia uma só foto sua nas paredes ou sobre os poucos móveis velhos, mas marcas de sua presença estavam estampadas no tempo.


O pai já morrera há anos e ele havia protelado a venda da casa por muito tempo. Era o único bem que o velho tinha e deixá-la para o filho talvez tenha sido um dos poucos atos de bondade que ele já direcionou a alguém em toda a vida. Francisco, o pai, era um homem simples, veio do interior ainda criança, nunca se dedicou aos estudos, mas era trabalhador e bastante criativo, embora gostasse mesmo era da vida boémia dos bares do Centro e da orla do São Raimundo. 

Na noite manauara, Francisco fez amigos de bebedeira que logo sumiam quando as garrafas ficavam vazias e conheceu também muitas mulheres que não lhe suportaram por muito tempo. Com sua mãe, foi um pouco diferente. Por mais que tentasse não tinha lembrança alguma dela naquela casa, a não ser quando a viu pela última vez. Enquanto arrumava os pertences do pai em caixas, pensava sobre essa imagem que tinha da mãe, uma mulher quase irreal, construída a partir de relatos de conhecidos, os que aceitavam falar dela. 

Falar da mãe, inclusive, causava esse efeito nas pessoas, um incômodo profundo. Liandra era de família "mais ou menos" como se costumava falar naquela época, seus pais eram imigrantes portugueses, donos de uma rede de supermercados local. Estavam em decadência por conta da vinda de outras redes nacionais para a capital amazonense, mas ainda usufruíam de algum prestígio entre a classe mais pomposa da alta sociedade, sempre figuravam entre os convidados de festas de casamentos de filhas de empresários e políticos locais, e carregavam aquele ar de quem tinha vivido os resquícios dos anos áureos da belle époque.

Liandra, como muitos diziam, "não era fácil". Tinha sérios problemas com a autoridade da mãe e nunca se submeteu ao treinamento para se tornar a esposa decente de um grande engenheiro ou médico, para completar possuía uma beleza estonteante, do tipo que "enlouquece" os homens, principalmente os casados. Ela frequentemente se aventurava, de bar em bar,provando dos beijos e da cachaça que lhe eram oferecidos. Era amiga dos artistas que cantavam bolero nas boates e de outras personagens da vida noturna, nunca estava só. Sua presença causava um desequilíbrio no ambiente e, como o efeito da própria gravidade, puxava para si a atenção de todos. Mesmo que discretamente, ninguém deixava de admirá-la.

Um dia topou com Francisco. Ele bebia sozinho em uma mesa, jogado como quem não liga para o amanhã. Não era um homem feio e carregava no rosto um ar de maturidade que garantia alguns olhares. Ficaram juntos naquela noite e muitas noites depois, apesar de Liandra ter sempre de voltar para a casa dos pais e para a vida indesejada que tinha. Eles se apaixonaram. Surgiam nos barzinhos mais sujos como dois adolescentes embevecidos pelo calor da juventude. Francisco tinha um pequeno barraco onde o casal se envolvia naqueles dias ardentes. 

As visitas ficaram muito frequentes e a mãe de Liandra não deu trégua: colocou em seu encalço um milico, acostumado a rastrear as inimizades do Estado. Numa noite tranquila, um bando invadiu o barraco, arrastaram Liandra até sua casa onde os pais aguardavam e espancaram Francisco. Ele passou por mais algumas sessões de espancamento durante os cinco dias que ficou preso e depois foi liberado. Depois do episódio, Francisco foi morar nos limites da cidade. Ele chegou a procurar Liandra nos bares da cidade, mas em vão, ninguém a via. Estava presa na casa dos pais, havia sido enviada para a Europa, casou-se com um ricaço de São Paulo, todos contavam uma história diferente. Quando um homem bateu à sua porta, meses depois, Francisco quase se jogou ao chão e jurou que nunca mais tinha se encontrado com Liandra, porém o homem não estava ali para lhe castigar e sim para levá-lo até o escritório do pai de sua amada. Ao encontrar com o velho português ele foi surpreendido pela presença de Liandra e de uma criança recém-nascida. 

"Tu some daqui com o moleque, eu te dou uma casa e não se fala mais nisso" - disse o velho. Não era como se ele tivesse escolha, mesmo assim exigiu uma condição: "Eu construo a casa, tu só me passa o dinheiro". Léo saiu dali nos braços do pai, um pouco mais rico e mais puto com "essa gente esnobe". Francisco construiu o lugar com a ajuda de um amigo mestre de obras, em outra invasão. A casa era bonita, por trás uma área de floresta se estendia e na frente a margem parada do rio que banhava a cidade. Era a única casa por ali de alvenaria, o que rendeu a Francisco a alcunha de "o fazendeiro". Léo ficava a maior parte do tempo com os vizinhos ou com a tia de Francisco que morava por perto, durante a construção da casa e mesmo depois de pronta, enquanto o pai trabalhava ou se afogava no álcool. 

Quando ele já tinha quase dois anos, Liandra apareceu. A tia contou a Léo que a sua mãe chegou ali "toda quebrada", foi espancada pelo homem escolhido pela família para ser seu marido, um empresário dono de uma grande serraria no Pará. Segundo o que soube, ela cuspiu no rosto do homem e o desafiou a encostar um dedo nela. Ele não só encostou todos os dedos, mas e também o cano frio de uma arma. Ela fugiu e encontrou Francisco por meio dos amigos de bar.

Passaram a morar os três juntos e no começo o casal era só prazeres, recomeçaram o romance que a família de Liandra havia interrompido e se entregaram ao futuro de uma vida a dois. A mãe cuidava da casa, mesmo com pouca experiência, se esforçava para viver aquela vida que ela tinha escolhido, enquanto o pai passava o dia trabalhando como vendedor na feira. Para os vizinhos e os parentes de Francisco a mulher era uma intrusa, mal educada e arrogante que não abandonava sua raiz de gente fina e cheia de frescura, nunca se acostumaram com ela e seu olhar julgador, olhar de mulher superior. E ela parecia adorar aquele jogo de não agradar.


A vida de casada não aquietou Liandra, apesar de tudo. Ela se arrumava para sair com ou sem Francisco e não era raro que flertasse com um homem enquanto o outro não estava por perto. Quando as piadas sobre o "fazendeiro ser corno" começaram a perturbar Francisco, começaram também as brigas. Eles pareciam competir pelo posto de quem gritava mais alto e os vizinhos acompanhavam tudo, preparados para o desfecho da tragédia. Mas essa tragédia não veio. 

Foi numa madrugada chuvosa de verão que Léo viu sua mãe partir. Levantou-se para fechar as janelas no meio do temporal, o pai jazia bêbado na sala após mais uma discussão com sua mãe. Quando ele subiu numa cadeira e se recostou no batente para alcançar a janela, viu Liandra andar em direção à rua carregando apenas uma sacola de feira. Ela olhou para trás e o viu parado, mas não voltou, continuou a andar pela estrada de barro. Os relâmpagos iluminavam aquela figura que se movia com passos determinados e na memória de Léo essa imagem pairava ainda hoje, fantasmagórica. 

Ele não conseguia lembrar, mas soube que mesmo antes da partida dela era como se os dois não tivessem um filho. A mãe não era carinhosa e o pai só o chamava pelo nome para lhe dar ordens ou castigá-lo. Depois daquela noite Francisco se entregou a quem ele realmente era, vestiu de vez o capuz de homem grotesco, ranzinza, de expressão eternamente insatisfeita. O silêncio, porém, era o que mais incomodava Léo. Não tinha bom dia, não tinha parabéns no aniversário, não tinha conselho. Ele foi crescendo assim, quase sem pai.

Naquela tarde, Léo tirou todo o lixo dos anos de acumulação de Francisco que preencheram a casa, um casal que estava interessado viria no fim de semana para avaliar o imóvel. Num caderno de anotações velho e de páginas amareladas, descobriu um recado da mãe, um vestígio de sua presença efêmera: "Cuida do garoto que eu não sirvo pros dois". Pensou em levar o caderno consigo, mas desistiu, colocou no lixo com as outras coisas e saiu dali, sem saber o que pensar sobre o seu passado. 

Caminhou pela orla maltratada daquele lugar que o pai escolhera para ser seu lar e lembrou do único companheiro que teve na infância. Ali, na beira do rio que agora era um esgoto, pôs para navegar seus barcos de papel e afundou pedras de todos os tamanhos e formatos. O rio acolheu seu choro, limpou seus ferimentos e lhe acalmou quando a raiva ousou dominá-lo. Embriagado com tantas lembranças, virou-se em direção à rua e deu adeus ao rio.

Belas águas tristesWhere stories live. Discover now