Parte II

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Havia cinco meses que eu morava com Marisol, depois de um ano de namoro. Agora, eu tinha vinte e dois e hoje, ela havia acabado de completar vinte e nove.

Seu trabalho ainda era no hospital público. Ela ainda chegava tarde de cirurgias complicadas, passava tempo demais no banheiro, chorando quando não conseguia finalizá-las e na maioria das vezes, eu entrava no jato congelante (porque era o único jeito que Marisol tomava banho, o que dificultava nosso sexo matinal no chuveiro), afagando suas costas, beijando sua nuca, lavando seu cabelo, que agora estava na altura do queixo (quando molhado), ainda uma aura crespa e volumosa ao redor de seu rosto. Ela chorava com a testa no azulejo rosa, como ela havia decorado quando encontramos esse apartamento e quando não havia mais lágrimas, ela deixava que eu abraçasse seu corpo pequeno contra o meu até que eu beijasse a marca de suas lágrimas e nos beijássemos e ela dormisse, vencida pelo cansaço. Nesses dias, eu pedia para Amani cobrir meu turno e quando eu chegava, tarde da noite da faculdade, havia um jantar imenso que Mar jurava que tinha cozinhado (o que era mentira porque sabíamos que ela mal conseguia cozinhar uma xícara de arroz).

Havia dias em que brigávamos como se o mundo pudesse acabar. A pior briga que tivemos, desde que começamos a namorar, foi quando ela decidiu realizar trabalho voluntário por um mês e meio na Faixa de Gaza. Sério. Literalmente, na porra da Faixa de Gaza. No caralho de uma guerra.

Acho que não me fiz entender direito: a mulher que eu amava estava indo para o meio de uma guerra.

Nesse dia, estava chovendo pra caralho na capital e eu tinha fechado as janelas do meu antigo apartamento enquanto ela bebia na sua xícara azul mil litros de café.

- Não é no meio da guerra, Anja.

- Não me chame de Anja quando você decide coisas importantes de sua vida sem me avisar.

- Porque eu sabia que você ia fazer isso.

- Surtar porque a mulher que eu amo vai para uma guerra?

- Eu não vou para uma guerra. É um acampamento médico em que eles não há nenhum tipo de conflito. Nada dessas coisas que você vê na TV.

- Marisol.

- Angela. – ela deu um daqueles sorrisos pequenos que me quebravam, sempre

- Por favor. – implorei, meus olhos já estavam cheio de lágrimas e eu não conseguia imaginar o que aconteceria comigo se ela não estivesse ali, se algo acontecesse e...

- Eu vou ficar bem. Venha cá. – ela deixou o café de lado e trouxe meu corpo para que fosse embalado pelo céu, como geralmente dormíamos – Eu te amo, Anja. Sempre, sempre, sempre. Eu já disse isso hoje?

- Não. – resmunguei

- É só um mês e meio. E vou voltar inteirinha pra você.

- E com muito tesão. Eu não vou encostar em você por outro mês.

Ela gargalhou, porque sabia que eu estava mentindo. Porque sabia que era impossível passar um segundo ao seu lado e não estar tocando em sua pele.

Quando ela voltou, Marisol parecia ter voltado de uma guerra – o que não deixava de ser verdade. Os pais dela obrigaram que passasse mais um mês no Rio, onde ela se atenderia com sua terapeuta de anos – e ficamos lá por mais um mês, em que conheci toda sua família. Seus pais médicos, seu irmão modelo (Marcelo), sua irmã advogada (Marla) e sua irmã mais nova (Mirella) eram uma família grande e barulhenta que me receberam imediatamente no mesmo quarto de infância dela.

Mar de Anjo.Where stories live. Discover now