E foi assim durante muito tempo até que em uma de suas viagens pela cidade em que cresceu, notou uma grande casa, pobre e simples. Queria destruí-la para nunca se lembrar quem foi, mas ao observar mais de perto, notou que era um orfanato para crianças. Mirtes tinha todo o poder para destruir em um fechar de mãos, mas notou algo que lhe fez parar.

Naquele lugar havia alguém como ela, uma garota assustada e frágil, que tinha perdido os pais, ela chorava muito e não se misturava com as outras crianças. Se aproximando mais de perto, Mirtes ouviu as freiras falarem que aquele ano não teriam condições de manter mais ninguém ali, "Os deuses devem estar furiosos conosco por tirarem tantas vidas e o que será dessas pobres crianças sem pais?", uma das moças falou. Mas não era apenas naquele lugar, as destruições causadas por sua ira haviam deixado centenas de orfanatos sobrecarregados de crianças sem lugar para ir, e foi nesse momento que ela sentiu algo molhando seu rosto. Eram lágrimas.

Mirtes sentiu algo doer dentro de si, algo que ela nunca tinha sentido quando humana, um desejo estranho que estava encoberto pelo véu negro de sua alma, despertando um dos desejos mais humanos que existe, amor materno. Ela nunca foi amada, sempre viu o lado ruim das coisas, mas ao ver aquelas crianças ali, inocentes e sem culpa, se sentiu tocada pelo que fez a elas, percebeu que o mundo não era apenas trevas, ainda havia luz na humanidade, e foi então que Mirtes jurou guardar a vida de cada uma das garotas e garotos que viviam ali, era pouco por ter feito tanta destruição, mas era um grande começo para um espírito maligno.

A garota por quem Mirtes se afeiçoou, era chamada de Jasmim, uma menina bem-comportada e tímida. A mulher passou a ficar sempre ao lado dela, observando tudo que acontecia naquela pequena vida.

Em uma noite muito fria, ladrões invadiram o orfanato para roubar alimentos, mas Mirtes os matou sem dó. Ela jamais deixaria algo assim acontecer, e foram diversos acontecimentos desse tipo, começo de incêndio, que misteriosamente se apagou, ventanias terríveis que destruíram vários telhados na vizinhança, menos no orfanato, entre outros acontecimentos que fizeram com que aquele lugar se tornasse conhecido, um lugar guardado por um deus.

Anos se passaram e Jasmim cresceu, se casou com um dos garotos do orfanato, teve uma menina muito bonita, tinha um trabalho e amigos.

Mirtes se imaginou o que teria sido dela se tivesse tido uma família amorosa, amigos e paz. Pensava onde estaria, se teria tido filhos? e netos? Para ela já não era mais possível viver aquilo tudo, mas poderia dar a cada criança daquele orfanato um futuro decente. Mesmo depois de adultos, Mirtes ainda os observava, sempre guardando de tudo que podia, e foi assim durante anos e anos até um por um morrer de velhice.

Jasmim estava sentada em uma jardineira, sentindo a brisa em seu rosto, Mirtes tinha agora toda atenção para ela, já que os outros se foram, se sentou ali do lado da protegida e foi quando ouviu algo que não acreditou.

— Até quando irá ficar aqui sem dizer nada? — disse a velha Jasmim, olhando para Mirtes como se a visse perfeitamente. — Eu sei que está aí, desde quando fui para aquele orfanato eu soube que tinha alguém ao meu lado, durante anos achei que fosse minha mãe, mas depois de um tempo descobri que era outra pessoa.

Mirtes se abalou profundamente com aquela revelação, estava tão acostumada ao silêncio de sua alma, que nunca imaginou que alguém poderia sentir sua presença.

— Não precisa falar comigo, só quero te dizer algo. — A velha olhou para o horizonte e sussurrou. — Obrigada. Obrigada por ter cuidado de nós, todos esses anos.

Mirtes novamente sentiu algo molhado em seu rosto, sentiu alegria aquecendo seu peito, sentiu amor, e uma vontade imensa de abraçar Jasmim, mas sabia que não conseguia tal proeza e ficou ali observando a velha amiga falar.

— Minha hora está chegando, meus filhos já tomaram rumo e vi meus netos crescendo. — encarou o lugar onde Mirtes estava. — Meu trabalho está pronto e o seu também. Descanse espírito, você está livre.

Aquelas palavras soaram de uma forma tão pura que fez algo mudar ali, Mirtes sentiu seu corpo se transformando, suas vestes negras se tornaram alvas e puras, ela estava deslumbrante e para sua enorme surpresa a velha agora a podia realmente vê-la.

— Você é linda? Como se chama? — perguntou a velha.

— Mirtes. — O espírito respondeu, ouvindo o som da própria voz pela primeira vez em anos. — Mirtes. — tornou a dizer, dessa vez sorrindo e chorando ao mesmo tempo.

— Pois bem, antes de ir, deixe me escrever tudo o que você fez por mim e por todos, e depois disso me leve para um lugar calmo.

Foi uma longa tarde, as duas conversaram horas, trocaram sentimentos e vivências que ambas tiveram naquela vida longa e calma. Jasmim anotou tudo que podia, queria deixar uma história para seus netos lerem depois que ela partisse, Mirtes estava radiante, pela primeira vez não se sentia movida pelo ódio, esses anos vividos ajudando as crianças do orfanato lhe fizeram bem, exorcizou seu demônio interior, descobriu que seus poderes sombrios poderiam ser usados para algo bom e foi o que fez.

Quando o sol já havia se posto no horizonte, Mirtes estendeu a mão para a alma de Jasmim, que retribuiu, e ambas subiram ao céu, desaparecendo nas nuvens, atravessando o véu da existência e começando em um novo amanhã.

Fim

Conto com selo Concurso/Fantasia Sobrenatural

Conto com selo Concurso/Fantasia Sobrenatural

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Notas do autor:

Olá, esse conto foi escrito para o sexto concurso do perfil FantasiaBR no Wattpad e obtive uma menção honrosa para ele, "Desafio das Anti-heroínas".

Espero que tenham gostado, ele também se encontra postado na minha antologia de contos de terror, não deixem de conferir.

Obrigado,

Att,

Lucas Aquino

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⏰ Última atualização: Jan 06, 2020 ⏰

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