XXII

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Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona e só trocava com o amigo um ou outro monossílabo inevitável no serviço da casa. Entre os dois havia agora desses olhares de desconfiança, que são abismos de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz vivia num sobressalto constante; cheia de apreensões, com medo de ser assassinada; só comia do que ela própria preparava para si e não dormia senão depois de fechar-se a chave. À noite o mais ligeiro rumor a punha de pé, olhos arregalados, respiração convulsa, boca aberta e pronta para pedir socorro ao primeiro assalto.

No entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali prosperava forte em grosso, aos contos de réis, com a mesma febre com que dantes, em torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vinténs choviam dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do armazém carroças e carroças com fardos e caixas trazidos da alfândega, em que se liam as iniciais de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de vinho e de vinagre, e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de manteiga e de sacos de pimenta. E o armazém, com as suas portas escancaradas sobre o público, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sair de novo, aos poucos, com um lucro lindíssimo, que no fim do ano causava assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e armarinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender a retalho. A sua casa tinha agora um pessoal complicado de primeiros, segundos e terceiros caixeiros, além do guarda-livros, do comprador, do despachante e do caixa; do seu escritório saiam correspondências em várias línguas e, por dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre servido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos comerciais, transações em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de empresas e privilégios obtidos do governo; e realizavam-se vendas e compras de papéis; e concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre hipotecas de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas adulados e mercadores falidos; corretores de praça, zangões, cambistas; empregados públicos, que passavam procuração contra o seu ordenado; empresários de teatro e fundadores de jornais, em aparos de dinheiro; viúvas, que negociavam o seu montepio; estudantes, que iam receber a sua mesada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e, destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miúda do foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto da boca.

E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a sua avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente, iam, por economia, desertando para o "Cabeça-de-Gato" e sendo substituídos por gente mais limpa. Decrescia também o número das lavadeiras, e a maior parte das casinhas eram ocupadas agora por pequenas famílias de operários, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratizava-se. Havia um alfaiate logo à entrada, homem sério, de suíças que cosia na sua máquina entre oficiais, ajudado pela mulher, uma lisboeta cor de nabo, gorda, velhusca, com um principio de bigode e cavanhaque, mas extremamente circunspecta; em seguida um relojoeiro calvo, de óculos, que parecia mumificado atrás da vidraça em que ele, sem mudar de posição, trabalhava, da manhã até à tarde; depois um pintor de tetos e tabuletas, que levou a fantasia artística ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em volta da sua porta, onde se viam pássaros de várias cores e feitios, muito comprometedores para o crédito profissional do autor; mais adiante instalara-se um cigarreiro, que ocupava nada menos de três números na estalagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais três operárias que preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco. Florinda, metida agora com um despachante de estrada de ferro, voltara para o São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito pé de limpeza e arranjo. Estava ainda de luto pela mãe, a pobre velha Marciana, que ultimamente havia morrido no hospício dos doidos. Aos domingos o despachante costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava os feitios da Rita Baiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de dança e cantarola, mas tudo de portas adentro, que ali já se não admitiam sambas e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrara um pouco de gênio depois da morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de moços do comércio, entre os quais havia um pretendente à mão de Nenen, que se mirrava já de tanto esperar a seco por marido. Alexandre fora promovido a sargento e empertigava-se ainda mais dentro da sua farda nova, de botões que cegavam; a mulher, sempre indiferentemente fecunda e honesta, parecia criar bolor na sua moleza úmida e tinha um ar triste de cogumelo; era vista com freqüência a dar de mamar a um pequerrucho de poucos meses, empinando muito a barriga para a frente, pelo hábito de andar sempre grávida. A sua comadre Léonie continuava a visitá-la de vez em quando, aturdindo a atual pacatez daquele cenóbio com as suas roupas gritadoras. Uma ocasião em que lá fora, um sábado à tarde, produzira grande alvoroço entre os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que se atirara ao mundo e vivia agora em companhia dela.

O CortiçoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora