XIV

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Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele: apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por dá cá aquela palha.

Hum! hum! temos mouro na costa! rosnava o capadócio com ciúmes. Ora queira Deus que eu me engane!

Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da hora marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não podia demorar-se.

Estou muito apertada de serviço! acrescentava à réplica do amante. Uma roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar pronta esta noite! Já ontem fiz serão!

Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo.

E que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver do que como e com que pago a casa! Não há de ser com o que levo daqui!

Oressa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que te deu esse vestido que tens no corpo?!

Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo coisa alguma! Oh!

Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo e Rita não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito, pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda, passeando na estreiteza da miserável alcova, como um onça enjaulada, rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados. Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de torcê-la nas mãos!

À vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé numa bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um marro na cabeça.

Diabo!

Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do quarto uma palavra porca.

Pela rua, durante o caminho, jurava que aquela caro pagaria a mulata! Um sôfrego desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de São Romão, mas não se sentiu com animo de lá ir, e contentou-se em rondar a estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por aquele domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no Cabeça-de-Gato, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe a noticia de que na véspera o Jerônimo, tivera alta do hospital.

Firmo acordou com um sobressalto.

O Jerônimo?!

Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem.

Como soubeste?

Disse-me o Pataca.

Ora ai está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.

Que é o quê? interrogou o outro.

Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa?

Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:

O CortiçoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora