I

83 3 0
                                    

     Um sonho terrível me alucina. Gritos vindos do profundo do meu travesseiro, sensações que tomam meu corpo com um toque de agonia e mãos gélidas que abraçam minha alma. Acordo olhando os lados, quando meu despertador toca para mais um dia de aula que insiste em vir. mais uma segunda feira, onde terei que ensaiar minha performance de halloween até cair cansada no chão. Me arrumo e estou pronta para ir, mesmo sem saber o motivo de estar indo, se já sei a coreografia e o que preciso fazer para que na hora, tudo saia perfeito. Ao descer as escadas, meus pais estão brigando novamente. Me olho no espelho aos sons dos gritos deles dois, mas acho que já me acostumei a vê-los daquele jeito sem saber pra quê tanta briga.
    Meu corpo parece maior que da última vez na qual me vi, sinto que tudo em mim pode desmoronar a qualquer momento e isso me assusta e me machuca. Meninas magras conseguem o que querem e sem nenhum tipo de merecimento, mas juro que tento ter sororidade. Preciso mesmo ser vista? ou será que é apenas meu ego diminuído que busca aparecer nos momentos mais inoportunos? É pedir demais fazer parte da orgia de olhares entre os meninos e as meninas? Sinto como se ninguém me visse, sou um ótima amiga. Péssima amante. 
   Gordon me tira de meu devaneio ao roçar nas minhas pernas com sua cauda peluda, mas não consigo resistir ao amor que sinto pelo gato. O pego no braço e começo a acariciar seus pelos e em resposta, tenho a mão mordida. Ele costuma fazer isso quando alguém acaricia, até quando conhece a pessoa. Tenho um total de cinco amigos de verdade, sim, meu grupinho tem 10 mas a maioria são meio que amigos de lancheira. Amo Melanie Martinez e pra ser meu amigo tem que entender pelo menos as referências que faço dela durante qualquer conversa que estou fazendo parte. Após passar o ano inteiro fazendo absolutamente nada em inglês, preciso simplesmente arrasar e chutar o balde pra ter nota suficiente me inglês se quiser passar de ano. Anjos é uma cidade grande que fica badaladíssima no halloween, mesmo que no Brasil não seja um evento muito lembrado. Anjos pode ser uma cidade como qualquer outra, mas ao mesmo tempo pode ser considerada uma cidade fantasma por literalmente nada de importante acontecer. Descobriram o caso que um professor teve com um aluno e simplesmente a cidade virou de cabeça pra baixo, eu sei que é algo sério, mas não acho que deveria ter tido tanta repercussão quanto teve.
    Hoje é o dia do meu pai me levar pra escola e não quero ouvi-lo falar mal da minha mãe mais uma vez, como sempre faz quando me leva. Ao entrar no carro, ele começa falando
   -Jen, eu não aguento mais sua mãe, ela pode ser insuportável as vezes. Você não faz ideia do que ela fez agora.
   -E também prefiro não saber, pai. Não me envolva nas brigas de vocês.
   -Incrível, tenho uma droga de uma filha que nem pra desabafar serve. Aposto que para as suas amigas como a Raquel, você dá o ombro e até se entrega nos problemas dela, mas para a sua própria família, você dá as costas. -é um saco perceber que ele se importa tanto comigo a ponto de saber que não falo com Raquel desde a oitava série e estou no segundo ano do ensino médio. Quando engordei e ela simplesmente ignorou minha existência, jogando seus cabelos negros e cacheados na minha cara enquanto seu corpo retinto esculpido tão cedo por um deus, se afastava de mim rebolando com seus passos de menina adulta. 

   Por simplesmente não suportar ouvir meu pai falando sobre a vida conturbada dele cujo ele sempre fala, ponho meus fones de ouvido pensando no que eu não daria pra ir de ônibus pra escola. Com The Beatles gritando em meus ouvidos, sigo as árvores com os olhos. Quando mal espero, vejo a minha escola se aproximando e quase que como em um filme, In My Life começa a dar o ar da graça. Minha escola tem arquitetura comum, paredes cinzentas em tons de beje, tendo a maioria sido feita com gesso e papelão. Temos um auditório no qual é feito todos os eventos, uma pseudoquadra no terceiro andar, onde ficam as salas de aula e apenas uma entrada que também é a única saída. Ao chegar na sala, a música acaba e tiro meus fones. Os 9 estão me esperando no lado esquerdo da sala, onde fazemos nossa própria fortaleza. Protegidos de qualquer perigo, Janay abre os braços para minha recepção calorosa de todas as manhãs. Pedro não gosta de abraços mas sempre me abraça quando quero dar um, mesmo sem admitir ele guarda uma cadeira para mim ao lado dele todos os dias. Definitivamente, ele é um dos meus únicos amigos de verdade. Sento na minha cadeira e como uma assombração do passado, Raquel chega perto de nós com um papel em mãos. 
   -Por que seus nomes estão no meu grupo do seminário de biologia? - diz ela com a voz de fresca que tem.
   -Porque a professora nos pediu para dividir a sala em dois e infelizmente você tinha sido rejeitada pelo seu grupinho de imbecis de novo, então com pena, te deixamos fazer parte do nosso grupo. Se quiser sair, ficaremos honrados em não ter alguém tão baixo e escroto como você. - era o que eu gostaria de ter dito na cara da vadia
   -Porque a sala foi dividida em dois. - Paula que é minha amiga desde o ano passado, disse
   -Não quero mais que isso se repita, quero ter autonomia no grupo para fazer o que eu quiser, sem ser contrariada. Espero que saibam que estão falando com a pessoa mais artística da sala. - diz a mesma cheia de si como se não lembrasse que tudo artístico que produziu foi uma ligeira chacota.
   -Raquel, a gente não tem que ouvir isso e aceite que você pode rir da gente nos ensaios o quanto quiser que nós não vamos nos diminuir nem nos amedrontar. Você late como uma cachorra de rua, mas não morde como tal. - Millena diz com todo ódio do mundo. acho engraçado por saber que ela é realmente desbocada e fala tudo na lata sem nem querer saber as consequências. Millena, escolhi te amar.
   
   Ela sai e todos rimos, é realmente engraçado como ela faz isso. Raquel é alguém verdadeiramente bonita mas sinceramente, a podridão de seu interior estraga tudo de bom que ela pode ter dentro de si. Espero que um dia ela se liberte do ego que carrega com tanto gosto.

***

   Após o soar do alarme e um dia inteiro cheio de ensaios cansativos e repletos de erros, sabemos que precisamos ensaiar mais, mesmo com tempo curto que temos. Como de costume, me encontro com os meninos na frente da escola para voltarmos juntos de ônibus. Exceto Jefferson que pela primeira vez, não aparece como de costume. É quando nossos celulares tocam e vemos uma mensagem no WhatsApp após conectarmos automaticamente no Angels Connect (Wi-Fi da parte rica da cidade) 
   -Espera, que estranho. Nossos pais se encontraram e estão falando nossos podres? Só minha mãe me manda mensagem. - diz Evellyn
   -Acho que não, os meus estão viajando. Os de vocês usam Skype? - diz Letícia
   -Era ironia, amada. - falo achando graça da situação
   -Vocês receberam a mesma mensagem? Certo, que eu estou assustada. - diz Gaby
   -Jenna? - diz Juliana com sua calmaria de sempre
   -Espera. - ponho os óculos que sempre coloco no bolso, já que não gosto da minha aparência com ele, apesar de precisar pra enxergar tanto de perto quanto de longe.
   -Rápido! - diz Pedro com um terror que nunca vi antes em sua voz enquanto todos me observam assustados
   -Tá, vou ler em voz alta. - falo já temerosa com o que vem a seguir. -"Melhor tomar cuidado com o veneno de cobra, ouvi dizer que se morder a língua, morrerá envenenado. Mantenham altas as expectativas, pois o grande show irá começar." Atenciosamente, Serpente. - dizemos todos juntos a última parte

   É quando cai algo pesado do teto da escola, à um metro de distância de onde estávamos. É um corpo, o corpo de Jefferson. Ele está completamente normal como se tivesse apenas escorregado num piso encerado, sem sangue em seu corpo já pálido além do que jorra de sua cabeça como um mar vermelho de dor. Eu não sei como reagir então apenas grito. Um grito que invade o profundo da minha alma que mal sei como soltar. Posso ver em seu pescoço, um ponto de como se uma agulha tivesse transpassado sua pele enquanto ainda vivia. Jefferson estava morto e eu não sei o que sentir.
   

Olhos FechadosWhere stories live. Discover now