Prólogo

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I

Se existe algo que irritava os Soldados do reino de Midra era a gangue dos Tyraks, formada por desertores, bandidos e principalmente assassinos. Especialistas em espalhar o caos, da forma mais sorrateira possível e não foi diferente na pequena vila de Koren, onde a divisão do sargento Rogh foi encaminhada para evitar um possível assalto.
Foi-lhe fornecido 20 homens para formar uma guarnição que para Rogh, um excelente comandante, era suficiente. Chegaram na vila quando o Sol ainda estava no céu, as crianças brincavam nas ruas, as vizinhas contavam fofocas enquanto recolhiam as roupas postas no varal que agora estavam enxutas, e os homens voltavam do campo cantando após um exausto dia de trabalho. Rogh não perdeu tempo e foi falar logo com o ancião da vila, o qual já vinha de encontro com o comandante. Devia ter algo entre 50 e 60 anos, usava uma túnica marrom bem cuidada e amarrada na cintura com uma corda de cânhamo.
-Finalmente!-disse com ânimo-Já estava ansioso por sua chegada. Muito prazer, me chamo Eldgar, sou o ancião desta vila e o homem que chamou por vocês. Creio que ainda há tempo de discutirmos sobre o problema, venha comandante, vamos lá para dentro conversar.
-Homens! Estão dispensados, podem fazer o reconhecimento da vila, mas não se afastem demais, retornem aqui em 1 hora.-falou Rogh com grande autoridade.
Entraram na casa do ancião, à direita sua mulher estava cozinhando algo que lembrava o cheiro de um ensopado de carne e legumes, um garoto de talvez 4 anos brincava com um cavalinho de madeira à esquerda, à sua frente havia uma mesa com 6 cadeiras.
-Sente-se aqui, o senhor deseja beber algo?
-Meia caneca de cerveja seria bem-vinda, estou com sede, mas também estou em serviço. Vamos direto ao assunto: como ficou sabendo do plano dos Tyraks?
-Há 3 dias, eles vieram até nossa vila, pediram para falar comigo, me ofereceram proteção em troca de uma ''pequena taxa''-disse isso com entonação irônica-obviamente recusei na hora, conheço esse tipo de gente desde que tomo conta dessa vila, mas não se contentando com a minha resposta, o líder deles disse ''não se precipite, velho, lhe daremos 3 dias para pensar, e então voltaremos para receber a primeira taxa''. Preciso explicar algo?
-Não, isso já é o bastante, eles virão sem sombra de dúvidas, conheço a forma que eles trabalham-deu o último gole na caneca, se levantou e inspirou fundo-Ordene aos moradores que se recolham imediatamente para dentro das casas, faça o mesmo você também depois que falar com eles.

II

As tochas já estavam acesas, a lua cheia também ajudava a clarear a vila naquela noite,ouvia-se somente animais noturnos cantando, o orvalho se formava lentamente e a rua principal da vila que estava horas atrás cheia de crianças brincando entre si, agora estava repleta de homens equipados com armadura de couro, espadas curtas, escudos redondos e elmos que mantinham somente a face descoberta. Rogh havia posto estrategicamente 5 soldados junto a ele na porta da casa do ancião e os demais divididos igualmente em becos e locais que os criminosos pudessem fugir. Rogh estava ali em guarda já havia cerca de 30 minutos quando enxergou 3 silhuetas na penumbra, imediatamente fez sinal para os demais que sem hesitar, formaram uma espécie de ponta de flecha atrás do comandante que estava no meio da rua.
-Hm, vejo que Eldgar está recebendo visita, viram isso rapazes?
Agora era possível claramente ver o seu rosto, graças à lamparina que pendia no canto da casa do ancião, queimando óleo de baleia intensamente. O homem era um ser alto, com porte de uma pessoa forte, era careca e tinha diversas cicatrizes à mostra onde a sua roupa escura não cobria a pele. Os outros dois que o acompanhavam deram risada com o que ele disse, um deles tinha cabelos médios e castanhos, uma barba mal feita e era mais magro que o aparente líder, o outro parecia ser um plebeu recém-recrutado, pois demonstrava um pouco de medo e insegurança por estar ali naquele momento.
-Pois é, ele nos convidou, disse também que viriam alguns amigos dele, só que esses amigos têm uma má-reputação, por fornecerem serviços às pessoas e mesmo que elas recusem acabam cobrando de alguma forma-Andava poucos passos de um lado pro outro enquanto falava-E isso perante o código de lei em Midra é considerado crime, então se por acaso você presenciar algo assim, é melhor avisar a eles que soldados do reino estão prontos para pará-los, seja por uma grade de ferro ou uma vala cavada na beira de uma estrada.
O líder deles soltou uma risada prazerosa.
-Acha que você e seus 20 soldados nos impõem medo?
O comandante cerrou os lábios com tremenda força, o silêncio que até então era presente atrás de Rogh, se transformou em sons de ferro e couro rangendo junto a múrmuros dos soldados que acreditavam não terem sido descobertos. Imediatamente surgiram vultos nas cumeeiras dos telhados de palha, atrás do possível líder daquela guarnição e também atrás dos soldados que estavam nos becos. Com os olhos, Rogh estimou pelo menos 35 bandidos, todos com roupas escuras. Ambos estavam ansiosos e prontos para revidar qualquer golpe que viesse de um dos lados. O comandante praguejou. Estava pronto para desembainhar sua espada e correr pra cima do líder, que parecia estar com a guarda baixa, quando pensou em dar um passo a frente, sua atenção se voltou para o que acontecia entre eles, visualizou um feixe de luz azul que se materializou gradativamente entre ele e o comandante daquele grupo de Tyraks. Não fosse o rosto de espanto do criminoso, Rogh juraria que aquilo era algum feitiço feito pelo careca. Todos deram um passo para trás, sem se importar que estavam rodeados entre si por adversários, a luz formava um semicírculo no chão e se estendia até a parede de pedra da casa do ferreiro ao lado, teria não mais que 3 metros, e onde tal luz tocava parecia queimar tudo, emitindo um som de evaporação junto com pequenos estalos, imediatamente um forte cheiro de vapor, terra e minério misturado com um odor de enxofre se espalhou no ar, e pôde-se ver cerca de 9 ou 10 entidades surgindo naquele círculo, entidade essa que parecia ser uma projeção mágica de cor azul claro, pois se enxergava levemente através dessas criaturas. Suas aparências eram de um humanoide, uns com cabelos longos emaranhados e outros sem um fio sequer, o rosto juntamente com o corpo parecia ter sido sugado por alguma coisa, era possível ver nitidamente a curvatura dos ossos, mesmo que esses seres tivessem uma podre pele de composição espectral encobrindo todo seu corpo. Não possuíam pernas, pareciam flutuar sobre uma nuvem também de cor azulada em formato de um cone disforme virado para baixo. Estavam inertes e cabisbaixo, todos voltados para o lado de fora do círculo, e num piscar de olhos, dispararam em várias direções, 3 deles acertaram em cheio com suas garras o peitoral de soldados de ambos os exércitos, que pareciam ser feitos de manteiga perante aos golpes desses seres. Como Rogh estava pronto para sacar a espada, conseguiu milagrosamente desembainhá-la e aparar o golpe de uma das aberrações que tentou acertá-lo, mesmo que parecesse ser uma projeção, as garras da criatura causaram um estrondoso barulho quando impactou com a lâmina do comandante. Rogh por sua vez desfez o aparo e atacou lateralmente com grande maestria, acertou o alvo mas sentiu como se sua espada tivesse cortado o vento e não algo ou alguém, quando notou isso, tentou retornar o golpe para o outro lado, o resultado não foi diferente. Nesse momento havia se tocado que o espectro não era um ser materializado, e que qualquer golpe que tentasse desferir seria em vão, só lhe restou gritar para seus homens recuarem. Dezenas de homens agonizavam de dor no chão, outros já estavam mortos.
-Fujam seus idiotas, eles não são feitos de carne!-gritou o careca que também percebeu que golpes físicos eram inúteis nos espectros.
Não deu mais que 10 passos quando foi apunhalado pelas costas por uma criatura, assim que suas garras saíram de meio as costelas do bandido, ele caiu imediatamente ao chão, como se sua alma lhe fosse tirada num segundo. Rogh escapou do foco da criatura se misturando com alguns dos bandidos e já estava guiando seus soldados para outra rua, sabia que era errado um militar abandonar um campo de batalha, onde mais precisamente era uma vila, repleta de crianças, mulheres e trabalhadores, estes que por sua vez eram quem pagava os tributos que mantinham o governo de pé, logo era da mão deles que vinha o salário dos militares, então a primeira coisa que pensou foi em recuar para outra rua e pensar em algum plano, mas isso foi em vão, sobraram apenas 4 homens que estavam mais afastados do círculo e portanto conseguiram fugir enquanto os mais próximos eram vítimas. Rogh já não via esperança alguma em lutar mas seu orgulho patriota não lhe permitiu voltar com as mãos abanando para a capital, decidiu tomar iniciativa, desprendeu a capa vermelha que cobria as suas costas e mostrava sinal de superioridade, segurou sua espada com firmeza a ponto da sua luva de couro ranger, levantou-se e estufou o peito e começou a falar com grande autoridade.
-Ouçam-me, desde que foram recrutados, aprenderam que é o próprio homem que cria sua honra, então venham comigo, não deixem que as palavras de Atlas tenham sido em vão, mostrem sua bravura e determinação, defendendo com suas vidas a nossa população, por Atlas, por Midra e principalmente, por sua honra!
Os 3 que estavam ali gritaram com mesma intensidade que Rogh, o outro já havia fugido quando o comandante ainda estava pensando em que decisão tomar. Então correram em direção à rua que acontecera o combate, atravessando a esquina, pôde-se ver vários cadáveres no chão, espalhados por toda a rua e ao meio, 2 espectros que não pareciam de forma alguma estarem cansados ou feridos, os 4 partiram para cima, Rogh pegou um escudo do chão e correu em direção a um deles enquanto os demais soldados cercaram o outro, o comandante sabia que qualquer golpe era em vão, então tentou ficar na defensiva, bloqueou 2 golpes com o escudo e logo em seguida desferiu um de baixo para cima girando sobre o pé direito, diferente de antes, parece que esse golpe havia tido efeito no espectro, jurou tê-lo visto se contorcer de dor por alguns segundos, não perdendo a oportunidade, acertou uma estocada onde deveria ser a coluna do humanoide, tentou manter a espada dentro do corpo espectral, a criatura lançou um grito agudo e ensurdecedor, Rogh não cedeu e empurrou mais a espada, pareceu que o corpo exercia pequena força contra a lâmina, notou que o aço começou a escurecer onde tocava o espectro, como se ácido fosse derrubado sobre o metal, temendo que o metal se desintegrasse por completo, arriscou outro golpe, segurou com mais determinação o cabo da espada e o empurrou para cima, fazendo com que o corte terminasse no crânio. Escolheu sabiamente, a criatura caiu ao chão se desmaterializando numa espécie de pó que lembrava cinzas, ainda gritando de forma horripilante. O comandante estava exausto e acabou caindo sobre um dos joelhos, olhou para o lado e viu dois corpos ainda jorrando sangue, um pelo pescoço e outro com um rasgo do ombro até as costelas, com o pulmão e coração expostos, o outro estava no ar, com as garras do espectro perfurando o abdômen e saindo pelas costas, o monstro puxou o braço, fazendo o corpo cair violentamente ao chão e foi em direção a Rogh, que ainda de joelhos aguardava seu fim. A criatura vinha flutuando lentamente, com os braços em um movimento que parecia estar afiando a garras de uma mão na outra, provavelmente para intimidar o decaído militar. Próximo a ele, o espectro girou levemente o corpo e empurrou o braço exterior ao movimento para trás e retornou com extrema força e rapidez, com um som esmagador, as garras perfuraram completamente o crânio do pobre comandante, fazendo sangue e partes de órgãos serem jogadas para atrás. Poucos segundos após o corpo cair, ouviu-se gritos que não eram de soldados ou espectros, mas de trabalhadores, mulheres e crianças.

O retorno do mal: Uma crônica de EllyadWhere stories live. Discover now