1 - A verdade inacreditável (Rio de Janeiro)

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Eu nunca me atrevi a comprar óculos escuros caros porque eu os perco sem nem me dar conta. Aliás, eu só uso produtos de marca se ganhei de presente, paguei barato ou peguei emprestado. Foi assim com os óculos Arnette que o meu amigo capixaba Afonso esqueceu na minha casa no Rio de Janeiro. Nós combinamos que eu devolveria quando fosse ao Espírito Santo, mas achei que não havia problema em usá-los enquanto isso.

Eu era consultor em um projeto de Telecomunicações na Oi de Copacabana e certo dia eu resolvi ir trabalhar usando os óculos do Afonso. Era cerca de 8 da manhã, eu havia acabado de sair do metrô e estava caminhando pela rua com a cabeça ainda operando em baixa, dependendo de um café para pegar no tranco.

Foi quando eu ouvi um grito: "PEGA LADRÃO!" Eu olho pra trás e vejo um moleque correndo e alguns cidadãos que parecem tentar encalçá-lo. O delinquente vem na minha direção rápido como uma flecha, não tive tempo para pensar em nada. Coloquei o pé, o garoto tropeçou, deu uma cambalhota no ar e caiu no chão. Ele era tão leve e rápido que voou de maneira que seus pés rasparam no meu rosto. Ao cair no chão alguns homens o seguraram, o celular roubado foi recuperado e, finalmente, fui me dar conta do que havia acabado de acontecer. O sentimento era dúbio: felicidade pelo crime ter fracassado, mas tristeza por uma criança ter se submetido àquela situação.

Infelizmente, esse tipo de sentimento é comum entre os moradores de uma cidade grande e desigual como o Rio de Janeiro. Purgatório da beleza e do caos. Foi em meio a essas reflexões que entrei no prédio do meu trabalho e reparei que a iluminação não mudou bruscamente como deveria para quem estava de óculos escuros! Na adrenalina da situação eu nem percebi, mas os óculos devem ter caído quando o pé do rapazinho raspou no meu rosto. Ele estava mesmo frouxo na minha cabeça, talvez a armação tenha sido desenhada especialmente pro cabeção do Afonso.

Eu corri de volta ao local da ação, mas já não havia mais ninguém, era até difícil de imaginar que todo aquele drama havia se desenrolado em uma vizinhança tão pacata. Também não havia nem sinal dos caríssimos óculos Arnette. Perder algo de um amigo era ainda pior do que as derrotas que eu impunha a mim mesmo, o sentimento era péssimo.

Eu passei o dia pensando em como iria explicar aquela situação para o Afonso. No fim das contas eu cheguei à conclusão que não havia maneira fácil de dar aquela notícia. Resolvi que iria apenas explicar a situação da maneira mais simples possível e pedir desculpas.

"Fonsera, eu perdi seus óculos. Eu coloquei o pé pra um pivete ladrão tropeçar, ele acabou dando uma cambalhota que derrubou os óculos e eu nem percebi. Me desculpe, eu sinto muito."

Essa história é tão difícil de acreditar que ele deve ter entendido alguma coisa bem diferente:

"Fonsera, eu gostei dos seus óculos e não vou devolver. Na verdade, irei vendê-lo para comprar drogas, pra comprar crack!"

Ao encontrá-lo eu tentei dar algum dinheiro para compensar o prejuízo, mas ele não aceitou. Deve ter achado que eu estava passando necessidades, precisando de dinheiro pra comprar crack.

Não Mereço Coisa Cara: Perdendo Coisas em Grande Estilo pelo MundoWhere stories live. Discover now