Parte 01

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Sempre que ele estava em casa, de férias do colégio interno, costumava vê-lo quase todos os dias, vistoque morava bem em frente do Anexo da Câmara Municipal, onde eu trabalhava. Via-o sair e entrar emcasa, freqüentemente, com sua irmã e, por vezes, com rapazes seus amigos, os quais, claro, não erammuito do meu agrado. Habituara-me, quando me libertava por um momento dos arquivos e dasestatísticas, a colocar-me à janela, e, através dos vidros embaciados pela geada, observava a rua,vendo-o então passar. À noite, já em casa, eu registrava a ocorrência no meu diário de observações,fazendo-o, de início, com um X e, mais tarde, ao descobrir qual era o seu nome. com um H.  Encontrei-o também, várias vezes, na rua.

 Uma das vezes foi à porta da Biblioteca Pública. em Crossfield Street, quando fiquei atrás dele numa fila. Não olhou para mim, mas eu vi bem a sua cabeça e o seu cabelo muito longo. Era de um tom bem castanho, parecendo quase de seda, ás vezes o enrolava no alto da cabeça. Só uma vez, uma única vez, antes de o ter como hóspede aqui, é que tive o privilégio de lhe ver o cabelo completamente solto; era tão belo como o de uma sereia, que até fiquei sem respiração. 

De outra feita, num sábado em que não tive de trabalhar e em que fui ao Museu de História Natural,regressei no mesmo trem. Vi-o logo sentado três bancos à minha frente, de lado para mim, tendo um livro,e, assim, foi-me permitido observá-lo durante trinta e cinco minutos. Vê-lo fazia-me sempre sentir comose estivesse capturando uma verdadeira raridade, como se me aproximasse com todos os cuidados,silenciosamente, de uma borboleta de cores difusas e muito belas. Sempre pensei nele como algoindefinível e raro, bem como refinado — não com outras palavras, mesmo as mais bonitas. Palavras deum autêntico conhecedor.
Eu nada sabia a seu respeito, quando ele ainda se encontrava no colégio interno, além de que seu pai erao Dr. Desmond e que, segundo ouvi contar, sua mãe bebia muito. Vi a mãe uma vez numa loja: tinha uma vozestridente e era evidente que, de fato, possuía o tipo de quem bebe, e, além disso, maquilava-se muito,etc.
Enfim, li depois no jornal local que ele ganhara uma bolsa de estudo, que era muito inteligente e
brilhante, e que possuía um nome tão lindo como ele próprio: Harry.
Soube, então, que estava emLondres estudando arte. Esse artigo no jornal foi imensamente importante para mim. Era como setivéssemos travado conhecimento, como se, subitamente, nos tornássemos íntimos, apesar de,naturalmente, ainda nem sequer nos conhecermos na forma usual.
Não sei por que, mas da primeira vez que o vi, fiquei logo sabendo que ele era o único. Não estou louco,claro, visto que sabia ser apenas um sonho, que o teria sido sempre, se não fosse o dinheiro. Costumavasonhar acordado a seu respeito, inventando histórias nas quais eu o encontrava, em que fazia coisas queele admirava, em que me casava com ele, e tudo o mais. Nunca senti quaisquer desejos inconfessáveis;isso só aconteceu mais tarde, conforme explicarei.
Ele pintava quadros, e eu cuidava da minha coleção (nos meus sonhos). Ele gostava tanto de mim comoda minha coleção, cujas peças desenhava e pintava; trabalhávamos juntos numa grande e bela casamoderna, numa sala imensa, com uma enorme parede de vidro.
As únicas vezes em que eu não tinha sonhos agradáveis a seu respeito era quando o via com um certojovem, pretensioso e barulhento, que tinha um automóvel conversível. Encontrei-o, certa vez, na sucursaldo Banco Barctays, enquanto esperava para depositar um dinheiro, e ouvi o dizer:"Dê-me tudo em notas de cinco libras. O cheque era só de dez libras, e o cara pensara que tivera muitagraça. São todos iguais! Pois bem, eu vi-o entrar, várias vezes, no carro dele e, nesses dias, era sempremuito desagradável para com os meus colegas na repartição. Recusava-me então a marcar um X no meudiário de observações entomológicas (isto tudo foi antes de Harry ir para Londres; desinteressou-se dele,depois). Era nesses dias que eu me permitia ter pesadelos. Ele chorava, então, ou ajoelhava-se diante demim. Uma vez, deixei-me até sonhar que lhe dera uma bofetada, tal como vira um homem fazer numa peçade televisão. Talvez fosse nessa altura que tudo começou ...


O meu pai morreu num desastre de automóvel. Eu tinha dois anos.
Isso foi em 1937. Ele estava bêbado, mas a Tia Jay disse sempre que foi minha mãe quem o levou abeber. Nunca me disseram o que aconteceu, na realidade, mas mamãe foi-se embora pouco tempo depoise deixou-me com Tia Jay. Só queria divertir-se. A minha prima Lottie contou-me, certa vez (quandoéramos garotos, durante uma briga) que ela era uma mulher das ruas e que se fora com um estrangeiro.
Fui estúpido e perguntei logo a Tia Jay se era verdade, e, claro, esta inventou uma mentira e nunca medisse o que quer que fosse sobre mamãe. Não me importo, agora, se ela ainda estiver viva; não a desejoconhecer. Não tenho o menor interesse nisso. A Tia Jay sempre pareceu julgar que eu tivera sorte emver me livre de mamãe e eu concordo inteiramente com ela.
Assim, fui educado por Tia Jay e pelo Tio Mark, juntamente com sua filha Lottie. A Tia Jay era a
irmã mais velha de meu pai.
O Tio Mark morreu quando eu tinha quinze anos, em 1950. Fôramos pescar na Represa de Tring e, comode costume, encaminhei-me para o outro lado com a minha rede. Quando senti fome, voltei para juntodele e vi uma multidão em volta do lugar onde eu o deixara. Pensei que ele pescara um peixe enorme,mas não. Sofrera um ataque cardíaco. Levamo-lo para casa, mas nunca voltou a falar ou a reconhecer-nos.
Os dias que passamos juntos, não exatamente juntos, visto que eu ia sempre à caça de peças para a minhacoleção, e ele ficava cuidando das suas canas e iscas, embora comêssemos freqüentemente juntos efizéssemos a viagem de ida e volta em grande conversa; esses dias (sem contar com aqueles que voudescrever) foram definitivamente os melhores da minha vida. Tia Jay e Lottie costumavam desprezaras minhas borboletas, quando eu era rapaz ainda, mas o Tio Mark defendia-me sempre. Admirava asminhas armações e sentia o mesmo que eu, ao ver as borboletas já secas e esticadas nos seus quadros.
Nunca me negava espaço na estufa do jardim para os meus frascos de lagartas e centopéias. Quandoganhei um prêmio com uma caixa de Fritilárias, o Tio Mark  deu-me uma libra, com a condição de eu nadacontar a Tia Jay. Enfim, não vale a pena dizer mais, o Tio Mark era como um pai para mim. Ao receberaquele choque, foi nele, além de Harry, claro este, em quem mais pensei. Eu ter-lhe-ia oferecido as melhores canas de pesca e equipamento que um pescador poderia ambicionar. Mas não foi possível fazê-lo.
Joguei sempre nas apostas mútuas do futebol desde a semana em que atingi os vinte e um anos. Concorritodas as semanas com a mesma aposta de cinco xelins. O velho Luke e Calvin, que trabalhavam no meudepartamento, e algumas das moças da Câmara Municipal, juntaram-se para fazer uma aposta maior, umbolo respeitável, insistindo sempre para que eu me juntasse a eles. Mas eu continuei jogando sozinho, umverdadeiro lobo solitário. O velho Luke é um ser desprezível, queixando-se sempre do governo municipal e, ao mesmo tempo, passando a vida a lisonjear o Sr. Stanley tesoureiro da Câmara.
Calvin é umcara sujo e mesmo obsceno, sádico também, troçando constantemente dos meus interesses, sobretudo quando havia moças perto. "Louis está com mau aspecto. Passou o fim de semana com uma lagarta decouve..." — dizia ele, ou então perguntava: "Quem era aquela Mariposa Sarapintada com quem o viontem à noite?" O velho Luke ria muito, e Eleanor, a namorada de Calvin, do Departamento de Higiene,que passava a vida no nosso escritório, também troçava de mim. Sempre detestei as mulheres grosseiras especialmente as mais moças.Foi por isso que continuei jogando sozinho nas apostas do futebol.
O cheque que ganhei foi de 73 milhões de libras. Telefonei ao Sr. Stanley  naterça-feira, logo que a empresa das apostas me confirmou a quantia. Percebi que ele ficara aborrecidopor eu me despedir assim de repente, embora me dissesse que tanto ele como todos os meus colegas dodepartamento haviam ficado muito contentes com a minha boa sorte, o que, eu bem o sabia, era falso.
Sugeriu até que eu investisse alguma coisa em letras municipais a cinco por cento! Alguns daqueles tiposna Câmara Municipal não têm o senso das proporções.
Fiz o que sugeriu o pessoal da empresa das apostas, fui passar alguns dias em Londres com a Tia Jay e Lottie, até que terminasse todo aquele sensacionalismo, visto que ninguém nos deixava em paz. Envieium cheque de quinhentas libras ao velho Luke e pedi-lhe que o dividisse com os outros do departamento.
Não respondi às suas cartas de agradecimento.
Vi logo que me achavam muito mesquinho.
A minha única dificuldade era Harry. Ele estava em casa, quando ganhei aquela fortuna, creio que emférias da escola de arte, e só o vi no sábado, na manhã do grande dia. Todo o tempo em que estivemos emLondres, gastando e gastando, eu só pensava em que talvez nunca mais o veria; pensei depois que metornara muito rico, que era, por conseguinte, um bom partido como marido; mas logo vi que era ridículo,pois Harry parecia ser do tipo que se casava somente por amor. Havia momentos em que eu pensava poder esquecê-lo. Contudo, esquecer não é uma coisa que possa nos fazer, é algo quenos acontece ou não.

A mim, não aconteceu.

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⏰ Última atualização: Aug 18, 2019 ⏰

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